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Distribuição de lucros da pessoa jurídica.

Multa regulamentar. Débito não garantido

21/03/2006 às 00:00
Leia nesta página:

            O artigo 32 da Lei nº 4.357/64 pontua que as pessoas jurídicas enquanto estiverem em débito, não garantido, por falta de recolhimento de tributo no prazo legal, não poderão:

            "Art 32. As pessoas jurídicas, enquanto estiverem em débito, não garantido, para com a União e suas autarquias de Previdência e Assistência Social, por falta de recolhimento de imposto, taxa ou contribuição, no prazo legal, não poderão:

            a) vetado

            b) dar ou atribuir participação de lucros a seus sócios ou quotistas, bem como a seus diretores e demais membros de órgãos dirigentes, fiscais ou consultivos;

            c) vetado"

            A matéria em exame encontra amparo legal no 889 do RIR/99, que assim dispõe:

            I – distribuir quaisquer bonificações a seus acionistas;

            II – dar ou atribuir participação de lucros a seus sócios ou quotistas, bem como a seus diretores e demais membros de órgãos dirigentes, fiscais e consultivos.

            No apagar das luzes do ano de 2004, foi publicada a Lei nº 11.051 que, entre outros aspectos, alterou substancialmente a questão ora em debate, especialmente no tocante à multa imposta às pessoas jurídicas distribuidoras de lucro e também aos destinatários dos referidos lucros - diretores e demais membros da administração superior - que porventura vierem a desobedecer o comando legal posto no "caput" do artigo 32 da Lei nº 4.357/64.

            Da leitura da novel lei, verifica-se que a inobservância do dispositivo legal em relação ao impedimento da distribuição de lucros importa em multa que deverá imposta nos seguintes termos:

            Art. 17. O art. 32 da Lei nº 4.357, de 16 de julho de 1964, passa a vigorar com a seguinte redação:

            "Art. 32...

            § 1º. A inobservância do disposto neste artigo importa em multa que será imposta:

            I – às pessoas jurídicas que distribuírem ou pagarem bonificações ou remunerações, em montante igual a 50% (cinqüenta por cento) das quantias distribuídas ou pagas indevidamente; e

            II – aos diretores e demais membros da administração superior que receberem as importâncias indevidas, em montante igual a 50 % (cinqüenta por cento) dessas importâncias.

            A grande novidade, pois, se encontra estatuída no § 2º do artigo 17 da Lei nº 11.051/2004, que limita a multa acima declinada respectivamente a 50% (cinqüenta por cento) do valor total do débito não garantido da pessoa jurídica:

            § 2º. A multa referida nos incisos I e II do § 1º deste artigo fica limitada, respectivamente, a 50 % (cinqüenta por cento) do valor total do débito não garantido da pessoa jurídica.

            Essa inovação está promovendo acalorados debates eis que há corrente doutrinária que afirma que este dispositivo afronta certos princípios constitucionais, outra entende que o contido na lei nº 4.357/64 não foi recepcionado pela atual ordem constitucional, e ainda outros que defendem a plena incidência da norma eis que esta beneficiou os agentes envolvidos.

            Os que advogam a inconstitucionalidade da referida lei, entendem que a limitação da distribuição dos lucros das empresas não se insere no âmbito do poder de intervenção do Estado na economia, sendo, conseqüentemente, inconstitucional. Ademais, a garantia do débito para que se possa fazer a distribuição de lucros só poderia ser exigida para o fim de parcelamento do débito ou para apresentação de embargos do devedor na execução fiscal, conforme legislações específicas. Caso contrário estar-se-ia interferindo na liberdade de empresa, mais especificamente, na liberdade de lucro, assegurada pela Carta Magna.

            De modo semelhante, existe linha doutrinária que se posiciona no sentido de que a recente alteração legislativa promoveu a repristinação da lei nº 4.357/64, que não foi recepcionada pela atual Constituição por ofender diretamente o direito de propriedade. Tendo-se em conta que o instituto da repristinação, regra geral, é vedado no ordenamento jurídico pátrio (artigo 2º, § 2º da LICC), tal corrente defende portanto que a recente lei se encontra eivada de inquestionável inconstitucionalidade.

            Não obstante tais ponderações, oportuno tecer alguns breves comentários sobre a natureza da multa regulamentar preconizada nos dispositivos já alinhavados.

            Incontestavelmente, vê-se que dita norma afronta o contido no artigo 170 da Constituição Federal, que disciplina a ordem econômica eis que tolhe o direito da empresa, que tem uma função social a cumprir, de distribuir seus lucros do modo que lhe aprouver.

            Isso porque o reconhecimento da função social da empresa existe porque ela é geradora de atividade econômica. É ela, em sentido amplo e em última análise, a grande contribuinte tributária, a maior geradora de empregos, a produtora de riquezas, e por isso, é a locomotiva do desenvolvimento. Outrossim, a propriedade dos bens de produção está intimamente relacionada com os princípios norteadores da ordem econômica arrolados no artigo 170 da Constituição Federal.

            De outra banda, verifica-se que a multa aqui em comento contraria ainda o direito de propriedade, consubstanciado no artigo 5º, inciso XXII e no artigo 170, inciso III da Carta Magna.

            Ora, a Constituição Federal inscreveu a propriedade privada e a sua função como princípios da ordem econômica. Tais princípios são pré-ordenados à vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Se é assim, então a propriedade privada, que tem que atender à sua função social, fica atrelada à consecução daquele fim.

            Extrai-se dos diversos conceitos, que função social relaciona-se com o exercício da propriedade de maneira a satisfazer não somente os interesses do proprietário, mas também beneficiar a coletividade.

            Importa ainda destacar que o artigo 1.071 do Código Civil pátrio reza que cabe aos sócios a deliberação sobre as questões da sociedade, mormente a distribuição de lucros. No tocante às sociedades anônimas, o art. 121 e seguintes da Lei nº 6.404/76, diz que à assembléia geral "tem poderes para decidir todos os negócios relativos ao objeto da companhia e tomar as resoluções que julgar convenientes à sua defesa e desenvolvimento".

            Em vista de todo o exposto, verifica-se que a multa regulamentar fere o direito de propriedade, a liberdade de iniciativa econômica e a ordem econômica de modo glogal, eis que indubitavelmente tolhe o direito da pessoa jurídica.

            Neste viés, vê-se que a multa é punitiva, confiscatória e, portanto, não remuneratória.

            Sendo assim, vê-se que a aludida cominação é diverso do posicionamento do Supremo Tribunal Federal, eis que o Pretório Excelso manifesta-se contrário à meio coercitivo de cobrança de tributos, conforme se vê das Súmulas nºs 70, 323 e 547, por ele editadas.

            Caminhando mais além, destaca-se que a multa nos moldes como está estatuída, não tem condão tributário, mas sim econômico e o que é mais grave, tem natureza punitiva.

            Deste modo, flagrante a ofensa ao contido no artigo 3º do Código Tributário Nacional, que aduz que o tributo não tem natureza sancionatória.]

            Independentemente ainda da linha de pensamento acolhida, torna-se imperioso elucidar o conceito da expressão "débito não garantido", com o fim prescípuo de dirimir controvérsias a respeito do tema.

            Ora, o débito somente surge a partir do lançamento (art. 113 do CTN). Ademais, há que se diferenciar "obrigação tributária" de "crédito tributário".

            A obrigação é uma categoria jurídico-positiva, ou seja, todos os seus contornos são definidos pelo direito positivo. Na obrigação o comportamento do sujeito se articula em relação ao direito de outro sujeito. O dever consiste em que o particular adote certo comportamento (fazer ou não fazer) que não implica em prestações forçadas ou obrigação patrimonial.

            Da ocorrência do fato jurídico tributário surge a obrigação, traduzida em uma relação jurídica que une o sujeito ativo ao passivo, estabelecendo um crédito do lado ativo e o correspondente débito passivo. O crédito existe desde então, mas para que o sujeito ativo possa exigir a prestação, é preciso que emita uma norma individual e concreta, com fundamento na norma geral e abstrata, vigente à época do fato; ou que o sujeito passivo formalize o crédito, quantificando-o por meio de um ato-norma formalizador ou então através de um procedimento de apuração.

            Sobre a constituição do crédito tributário, importante colacionar o entendimento doutrinário de HUGO DE BRITO MACHADO [01]:

            "No Código Tributário Nacional o crédito é algo diverso da obrigação tributária. Ainda que, em essência, crédito e obrigação sejam a mesma relação jurídica, o crédito é um momento distinto. É um terceiro estágio na dinâmica da relação obrigacional tributária. E o lançamento é precisamente o procedimento administrativo de determinação do crédito tributário. Antes do lançamento existe a obrigação. A partir do lançamento surge o crédito. O lançamento, portanto, é constitutivo do crédito tributário, e apenas declaratório da obrigação correspondente"

            Oportuno transcrever, no mesmo sentido, os ensinamentos de HELENO TAVEIRA TORRES [02]:

            "O conceito de "crédito tributário" qualifica o direito subjetivo, de que é portador o sujeito ativo da relação jurídica obrigacional, relativo à prestação de tributo, que se apresenta como objeto da obrigação tributária. Esse direito de crédito surge com a ocorrência do fato jurídico tributário, o qual, por ser dependente de formalização para obter os efeitos de exigibilidade, fica sujeito ao ato de aplicação do direito definido como ato administrativo do lançamento tributário".

            Ademais, não se pode igualar a mera inadimplência da pessoa jurídica para com o fisco com o conceito de "débito não garantido"; sendo necessária ponderação no emprego da norma.

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            Veja-se, acerca da matéria, o entendimento doutrinário de EDVALDO BRITO [03]":

            "Isto porque o auto de infração é um dos elementos do procedimento de lançamento, este assim definido como a atividade da Administração Pública tendente a constituir o crédito nascido com a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária. Vale dizer: a lei descreve um fato que, ao acontecer, gera a obrigação, na qual surgem o crédito do Estado (sujeito ativo) e o dever de cumprir a prestação pecuniária (débito do sujeito passivo = contribuinte) (...)Consequentemente, sem lançamento, não há débito da pessoa jurídica, porque não há constituído o crédito correspectivo. (...) Logo, a pessoa jurídica somente estará em débito, quando o crédito tributário já tiver sido constituído, pelo lançamento, ou seja, quando esta atividade administrativa tiver sido concluída e quando o sujeito passivo tiver, regularmente notificado e não o tenha impugnado ou não tenha havido qualquer providência questionando-o, v.g., um recurso de ofício (cf. o art. 145 do CTN). (...) Débito garantido há de ser, sempre, aquele que é objeto de parcelamento porque essa é uma providência que suspende a exigibilidade do crédito tributário, ex vi do item VI do art. 151 do CTN" (grifos nossos).

            Destaque-se, por demais importante, que segundo entendimento exarado em recentíssimo julgamento [04] da 4ª Câmara do 1º Conselho de Contribuintes e Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda, a adesão ao REFIS – como modo de parcelamento do débito – por empresa distribuidora de lucros, garante seu débito, de modo que eventual distribuição de lucros não está sujeita à penalidade imposta na Lei nº 4.357/64 e suas alterações posteriores, à pessoa física destinatária dos dividendos.

            No mesmo vértice de pensamento foi a decisão exarada pelo Tribunal Regional da 3ª Região, que manteve a liminar concedida em favor da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB –SP) contra a aplicação da multa imposta pela Lei nº 11.051/2004.

            Diante do exposto, espera-se que o conceito de "débito não garantido" seja corretamente aplicado nos futuros entendimentos jurisprudenciais pátrios, evitando-se assim quaisquer distorções neste sentido, o que possibilitará a regular distribuição de lucros pelas pessoas jurídicas, na forma positivada na legislação nacional.


Notas

            01

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros. 2000. p. 135

            02

TORRES, Heleno Taveira. Crédito Tributário e Lançamento. In Curso de Direito Tributário. São Paulo: Celso Bastos. 2002. p.189

            03

BRITO, Edvaldo. O conceito de débito não garantido nos campos tributário e previdenciário in Revista Dialética de Direito Tributário nº 119. agosto 2005. p. 137

            04

Recurso Voluntário nº 144297
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Sobre a autora
Maria Izabel de Macedo Vialle

advogada tributarista, associada ao escritório Amaral & Advogados Associados em Curitiba (PR), especialista em Direito Tributário Contemporâneo pelas Faculdades Integradas Curitiba, pós-graduanda em Contabilidade e Auditoria pela UniFAE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIALLE, Maria Izabel Macedo. Distribuição de lucros da pessoa jurídica.: Multa regulamentar. Débito não garantido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 993, 21 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8138. Acesso em: 2 mai. 2024.

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