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Direito, paz e poder:

uma reflexão sobre a ocupação do Exército brasileiro nas favelas do Rio de Janeiro

29/03/2006 às 00:00
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A manifestação do poder em busca pela "paz"

Ao ouvir as notícias dadas, recentemente, pelos jornais, sobre a operação do Exército brasileiro, nas favelas e nos morros do Rio de Janeiro, à procura da pistola e dos dez fuzis FAL calibre 762 que foram subtraídos de uma de suas unidades, algo me soou familiar.

Lembrei-me, imediatamente, das notícias saídas de outras partes do mundo, como aquelas que agitaram o ano de 2003, e que ligaram o esconderijo, pelo Iraque, de potenciais "armas de destruição em massa", à causa principal da invasão daquele país pelos EUA.

Desde aquele período até este momento, em que se assiste o episódio do Rio de Janeiro, verifica-se o velho e, no entanto, sempre novo discurso da aliança com a guerra em defesa da "Paz".

Para fazer a varredura do mal, acaba justificando-se o poder ilimitado do homem. Parece não haver lei que imponha saciedade a esse desejo humano de combater o "mal", sempre localizado no outro.

Pergunto-me qual Direito poderá salvaguardar o mundo, se o homem carrega, em seu interior, um tal complexo de poder, mal trabalhado? Que delicada relação é essa, entre o "homem da Lei" e aquele que está "fora-da-lei", que, de alguma forma, mostra-se tão semelhante? Pois, no mínimo, somos obrigados a admitir que esse "homem da Lei" se deixa atrair pelos mesmos brinquedos e atrações que seduzem o "fora-da-Lei". Ou seria outra coisa o fato de aquele homem querer combater o problema utilizando-se da mesma força e da mesma medida que da atitude deste fazem parte?


A psicologia - o trabalho com a "sombra"

Reconhecer o que existe no outro e que a "mim" também pertence, embora deseje não possuir, é trabalho complicado e difícil, realizado apenas por alguns. Por isso, o mundo está tão confuso: ou seja, pelo excesso de pessoas que não conseguem entender que aquilo que elas querem constitui uma contradição. Isto é, desejam acabar com o poder dos traficantes, e dos "bandidos", a exemplo do que se tenta fazer dentro das favelas do Rio, porém com o uso de uma força e de um poder talvez ainda maior.

A psicologia nos sugere uma explicação para essa incongruência. Aquilo que não gostamos em nós – e que desvalorizamos porque não está conforme as regras e os costumes que a nossa época busca – evitamos reconhecer. Não obstante, muitas vezes essas qualidades existem em nossa personalidade e querem se manifestar. Como defesa, então, nós as negamos e as lançamos no outro, que nos é externo, razão pela qual afastamos a percepção que temos de nós. Dá-se a isso o nome de projeção. Em resumo, não observamos que aquilo que tentamos eliminar no outro reside, na maioria das vezes, justamente, em nós.

JUNG foi o responsável pela elaboração de conceitos que deram corpo ao que se convencionou chamar por psicologia analítica, havendo designado como "sombra" o arquétipo que contém os traços inferiores da nossa personalidade, ou os aspectos obscuros do nosso caráter, sendo este arquétipo um conhecido de todos nós. Não obstante a familiaridade, porém, reconhecermos a sombra, em nossa personalidade, diz aquele autor, é atividade complexa, pois se trata de um confronto individual de ordem moral. Quando consentimos o desafio de encarar, em nós, aquilo que nos recusamos a ver, num primeiro momento, um controle moral logo se instala, dificultando a tarefa.

Afirma JUNG (1988, p. 6): "A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender energias morais. Mas nesta tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade. Este ato é a base indispensável para qualquer tipo de autoconhecimento e, por isso, via de regra, ele se defronta com considerável resistência".

Por isso, não esperemos que o reconhecimento do "outro" que existe em nós, com a sua manifestação de poder, seja de fácil constatação. Mas nos esforcemos para isso. Vejamos.


A guerra entre os EUA e o Iraque, e a ocupação do Exército brasileiro nas favelas

Em 2003, o Brasil condenou o Presidente norte-americano pela invasão do Iraque, pelos EUA. Os motivos, na época da invasão, dados por George W. Bush foram os seguintes:

1- o governo iraquiano não cumpria a lei (naquele caso, a lei estava representada pela determinação, estabelecida pela ONU, de desarmamento); 2- a não intervenção militar resultaria na confirmação do desrespeito da lei, pelo Iraque; 3- a fantasmagórica noção de "perigo para o mundo", tão presente no imaginário norte americano; 4- finalmente, como conseqüência, era necessária a ação militar pela conquista da "paz", com autorização, inclusive, para se perscrutar, deliberadamente, os redutos suspeitos de produzirem as armas que buscavam.

Comparemos, agora, de forma breve, a semelhança dessas argumentações com as últimas declarações prestadas pelo Exército brasileiro, no episódio recente do roubo das armas, no Rio de Janeiro. As declarações foram encontradas em algumas matérias de jornais:

1- fazia-se necessário usar todos os meios para a recuperação do material roubado, como demonstração de moralização das Forças Armadas, inclusive com invasões domiciliares arbitrárias, com toques de recolher, agressões, mortes (constituindo todos esses atos violações a direitos humanos que, deixamos de dizer, também ocorreram no episódio dos EUA X Iraque); 2- a ação não comportava prazo para acabar, somente quando fossem encontradas as armas; 3- estava presente a noção de que o mal (no nosso caso a criminalidade e a violência) devia ser combatido e eliminado, consolidando-se a política que visa eliminar o adversário, como um mal; 4- a ação se justificava pela defesa daquela que é tão sonhada, mas que já se faz tão distante, paz.

Tudo isso sem falar das imagens que nos chegaram, ao tomarmos conhecimento dos fatos: os bloqueios em rodovias de acesso à cidade, as revistas realizadas, os veículos blindados. Houve até alusões a facções criminosas, com suas siglas reconhecidas – o CV (Comando Vermelho) – fazendo-nos lembrar a insinuação, anos atrás, feita por Bush, das ligações existentes entre Saddam Hussein e a rede Al Qaeda, suspeita dos ataques do 11 de setembro de 2001, nos EUA. É uma coincidência e tanto, não achamos? Só não houve "chuvas" de panfletos caindo do céu, incitando a população local à evacuação do espaço, e ameaçando destruir os focos militares resistentes, mas bem que assistimos algo semelhante se realizar, também no caso brasileiro, com os folhetos distribuídos, pelos soldados, jogados dos helicópteros, solicitando a colaboração da população com a "boa ação" da delação – sem prêmios, é claro – isto é, bem ao nosso estilo.

Ainda diante de tantas evidências, não conseguimos enxergar, porém, o nosso núcleo de poder, a nossa fascinação por ele. Quer nos parecer que o problema é que o confronto com a nossa consciência não nos deixa posar de "mau" para o espelho.


Alternativas à repressão

Melhor seria, em atitudes que afrontam o poderio da Lei, deixar a "fenda" nele criada – pois o poder, nesse caso, ameaçado, foi um poder militar. Isso tem um significado.

As Forças Armadas devem constituir símbolo já ultrapassado de defesa da Nação e da proteção do nosso patrimônio, ao menos se quisermos considerar os padrões civilizados esperados pelas sociedades. Também já é tempo de entendermos que o nosso patrimônio é também a gente pobre e o infrator diante da Lei, e que a sua preservação se faz com a educação, com a saúde, com o desenvolvimento das oportunidades sociais. É hora de nos desfazermos da concepção de que deve ser defendido apenas o "homem de bem". A defesa da sociedade é menos uma questão de segurança e de coerção, ou de afastamento do "mal", e muito mais de educação, de proteção, e de inclusão social. O pensamento tacanho que temos acerca das causas da violência e acerca dos motivos do aumento da criminalidade, e que aponta para a falta de poder policial e não para questões relativas à estrutura social é que nos faz um país de terceiro mundo. Postamo-nos de guardiões diante da Lei, impedindo a entrada do outro, marginalizado, no seu império, e achamos que é essa investida aguerrida que transformará o Brasil!

A postura animosa que visa eliminar o adversário pode ser encontrada dentro de um país, e entre países, também. Para comentar a postura norte-americana, por exemplo, dentro de um contexto relacional com outros países, vale citar Luigi ZOJA, analista junguiano. O autor discute a postura desejada dos E.U.A para enfrentar a hostilidade dos outros povos. Sugere, em vez da conhecida ação de inteligência norte-americana, investida contra seus "inimigos", uma reflexão sobre o país, e sobre certas atitudes próprias, fáceis de serem consideradas arrogantes pelo observador externo – entre elas, a exclusão que os EUA fazem dos outros países da América, quando se intitulam simplesmente "americanos". Sobre o tema, afirma ZOJA (2003, p. 35): "(...)Para enfrentar a hostilidade de muitos outros países, o governo dos EUA derrama oceanos de dólares na chamada intelligence. Por que não organiza um debate, um congresso ou uma simples mesa-redonda sobre esse tema tão importante? Um tema que não exige rios de intelligence, mas apenas bom senso". (grifado no original).

Bem se aplicaria, também, essa alternativa de debate, ao futuro brasileiro. Em lugar de confrontar o confronto, o confronto do poder com ele próprio, a análise do que esse poder representa para a população marginalizada, abandonada pelo desenvolvimento sócio-econômico, sem escola, sem saúde, sem oportunidades, apenas receptor da projeção autoritária estatal, da perversidade e da arrogância da Lei. Bem por isso, talvez, explique-se a provocação dos "bandidos", a investida "ninja" dos homens encapuzados que, ao roubarem os fuzis, fizeram questão, também, de demonstrar, com isso, o aparato de seu próprio poder, fazendo uso, portanto, da mesma linguagem, como inimigos da Lei, caçoando do poder do Estado e ameaçando o sucesso econômico e social alcançado apenas pela elite de nosso país.

Seguindo, ainda, as palavras de Luigi ZOJA (2003, p. 57): "(...)a punição da hybris-nêmesis manifesta-se como uma inversão natural da marcha da arrogância, que acaba por golpear o arrogante". O par de palavras gregas é utilizado para significar a punição da arrogância, mito de origem grega que parece muito bem servir nessa situação.

Também parte dos que trabalham com o Direito percebem o excesso e a arrogância da lei. Transcrevemos, a seguir, interpretação jurídica, a nosso ver adequada, sobre os excessos cometidos pela invasão do Exército brasileiro, nas favelas cariocas. O comentário vem de uma nota pública elaborada pelo Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal, publicada no jornal FOLHA de SÃO PAULO, e retirada da página do jornal, na internet, em 19/03/2006, de onde extraímos alguns trechos:

"Em primeiro lugar, que mandado de busca será este que expõe à vigilância e à invasão dezenas de milhares de domicílios? Se por acaso tratar-se de um daqueles mandados genéricos, abrangentes de ruas ou mesmo de bairros, o juiz-auditor que o expediu transbordou o Código de Processo Penal Militar, e no âmbito da Justiça ordens ilegais não devem ser cumpridas.

Seria requisito do mandado expedido pelo juiz-auditor ‘indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do seu morador ou proprietário’ (art. 178, al. a CPPM). A ordem de violação do domicílio não pode ser expedida contra todos os moradores de uma área!"

O texto alude, também, ao fato de que a busca domiciliar, conforme o art. 179, III, parágrafo 3º, do CPPM, deverá ser realizada durante o dia, e sem molestar, desnecessariamente, os moradores. Concluem os autores da nota: "A lei está sendo escandalosamente desrespeitada, e constitui uma contradição moral tentar impor a lei através de infrações à própria lei (...)".

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Para quem acha, contudo, que essa situação de confronto entre os "bandidos" e a Lei não apresenta outra solução que não o incremento da força policial, a ser apresentada, sempre, em peso maior, deixamos transcrita, aqui, a última referência que trazemos de ZOJA (2003) a este artigo, para uma possível reflexão. O seu comentário volta-se, dessa vez, à atitude dos EUA, diante do episódio de 11 de setembro de 2001. Comenta o autor:

"É muito difícil, diante de acontecimentos dessa dimensão, dizer coisas que resistam à pressão do tempo. Como analista, sinto-me condenado a fazer críticas sem apresentar propostas verdadeiras. Depois do 11 de setembro, a necessidade de reconstruir as Torres Gêmeas, talvez mais altas do que antes, predominava nos discursos públicos que se ouviam em Nova York. Eu gostaria de ter gritado: ‘Deixem o Marco Zero como um santuário, como um alimento para a memória. Aceitemos a ferida, sem tentar eliminar as cicatrizes, sem eliminar a tristeza, os sentimentos de luto que, em um momento como esse, são justos e necessários. Não voltemos imediatamente ao otimismo unilateral de que a cidade se alimenta. Não reconstruam as Torres Gêmeas! " (p. 63) (grifamos).

Na análise do autor, as Torres Gêmeas encarnam o símbolo da conquista expansionista norte-americana, e do seu poderio econômico, que, aliados à sua falta de auto-análise e de submissão nas relações com outros países, acabam atraindo a agressividade de outros povos. Também a contradição entre a política legalista norte-americana e suas investidas militares sem conexão com o afamado "estado de direito", que, justamente, pregam em suas ações, contribui para o levantamento de sentimentos hostis contra os EUA.

Quanto às nossas "Torres", elas também existem, alimentando o ódio e a guerra entre as classes sociais, dentro das nossas cidades. Olhemos o tratamento desigual da população marginalizada, a criminalização da pobreza, a contrapartida dos carros blindados, dos portões de ferro dos condomínios de luxo, em conjunto com o descaso da elite e do poder público por essa população. Ou então, se não quisermos subir tanto, desçamos aos lixos dos bairros nobres das grandes cidades e visitemos, ali, as lojas suntuosas que os alimentam, servindo, com desperdício, aos imensos bolsões da miséria.

No entanto, apesar da nossa demonstração – arrogante, diga-se - de poder, o desafio dele, pelo grupo marginalizado de nossa sociedade, tem sempre como resposta da elite e do Estado o desejo não pelo debate, nem pela inclusão social, mas sim por medidas ainda mais fortes, como a elaboração de leis mais duras, a repressão policial, o desejo pela eliminação dos bandidos, a construção de presídios de "segurança máxima", etc. Em vez de fazermos fila no Congresso Nacional e exigirmos a garantia, através de leis, da aplicação de planos para a educação, preferimos trabalhar em favor de projetos legislativos que alijem ainda mais o indivíduo excluído do sistema. A ocupação recente do Exército, nas favelas do Rio, quer nos parecer, incorpora essa empreitada.

Como ZOJA, gostaria de pedir para que parássemos com essa atitude, para que aceitássemos a ferida, partindo, assim, para alternativas como o "mea culpa", como o debate social, e como a criação de uma nova concepção de poderio estatal. Se o resultado da política militar norte-americana ainda não nos bastou, com seus frutos, tentemos aprender um pouco aqui mesmo, dentro das nossas cidades, enquanto ainda é tempo...


Referências Bibliográficas:

JUNG, C. G. Aion: estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 1988.

ZOJA, Luigi. Manhã de setembro: o pesadelo global do terrorismo. São Paulo: Axis Mundi, 2003.

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Sobre a autora
Aydil da Fonseca Prudente

mestranda em Filosofia do Direito pela PUC/SP, bacharel em Direito e em Psicologia pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PRUDENTE, Aydil Fonseca. Direito, paz e poder:: uma reflexão sobre a ocupação do Exército brasileiro nas favelas do Rio de Janeiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1001, 29 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8169. Acesso em: 23 dez. 2024.

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