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O dogma da nulidade da lei inconstitucional e os problemas intertemporais no controle concentrado de constitucionalidade

31/03/2006 às 00:00
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BREVÍSSIMA INTRODUÇÃO

            O ato normativo incompatível com a constituição é, em regra, nulo, o que significa que não terá gerado efeitos. Essa é a doutrina oriunda de casos inaugurais de controle de constitucionalidade nos Estados Unidos da América, onde o mecanismo desenvolveu-se a partir do modelo difuso, pelo qual todo juiz pode declarar a inconstitucionalidade e a decisão final cabe à Suprema Corte.

            O modelo adotado no Brasil, inobstante a coexistência das formas difusa e concentrada de controle de constitucionalidade, sofreu forte influência da experiência norte-americana. Estabeleceu-se, então, o dogma da nulidade absoluta da norma inconstitucional, que seria inapta para gerar efeitos válidos.

            A tese da nulidade, em termos absolutos, vem sofrendo restrições e passando por modificações que a coloquem mais de acordo com as conseqüências advindas do controle concentrado de constitucionalidade, com análise abstrata. Um estudo despido de preconceitos dogmáticos permite constatar que a flexibilização da nulidade absoluta é plenamente defensável do ponto de vista da lógica do sistema jurídico, tendo sido inequivocamente adotada no direito brasileiro, a partir das Leis nº nº 9.868/99 e nº 9.882/99.

            Então, chega-se às três idéias centrais deste artigo – adiante abordadas como antecedentes da sucinta conclusão – que são a supremacia da constituição, a anulabilidade da norma inconstitucional e a constitucionalização superveniente.


SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO

            O ordenamento jurídico, entendido como conjunto articulado de normas adotadas em certo âmbito territorial, tem configuração hierarquizada. Implica que uma determinada camada normativa tem sua validade aferida a partir de sua conformidade com as camadas superiores. Chega-se, então, à necessidade conceitual de uma norma fundamentadora de validade de todas as outras, o que, por seu turno, significa a superioridade e maior grau de generalidade dessa norma.

            Como tipo normativo fundante e dotado do maio grau de generalidade, a constituição é o paradigma de comparação de validade para todas as demais espécies normativas possíveis em certo ordenamento. Em curtas palavras, significa que outras normas não devem conflitar com a constituição, porque retiram dela seu último fundamento de validade.

            A supremacia constitucional adquire mais importância nos sistemas com alguma rigidez, ou seja, naqueles dotados de regras mais rígidas para alterações constitucionais que aquelas prescritas para a feitura de leis ordinárias. E, principalmente, naqueles em que há um conteúdo que se diz imutável sem rompimento da ordem vigente, chamado de núcleo intangível, onde estariam as cláusulas pétreas.

            Com efeito, o conceito de constituição demanda intrinsecamente uma certa rigidez, sob pena de não se ter propriamente uma norma superior que possa servir de paradigma de aferição de validade de outras. Se todo o ordenamento jurídico positivo se fizesse de normas do mesmo nível, sujeitas todas elas às mesmas regras de processo legislativo, não se poderia falar de controle de constitucionalidade.

            Enfim, a supremacia constitucional pressupõe um grau maior de dificuldade formal na elaboração da norma superior e uma reserva material, pelo que se pode exigir das normas hierarquicamente inferiores conformidade àquela. Logicamente, não se poderia falar em uma espécie normativa buscar seu fundamento em outra do mesmo grau.

            O controle de constitucionalidade dos atos normativos, então, é uma garantia do próprio ordenamento jurídico, na medida em que se defende a supremacia da constituição como fundamento último de validade do restante das espécies normativas.


A NULIDADE ABSOLUTA DA NORMA DECLARADA INCONSTITUCIONAL

            A partir da experiência norte-americana, criou-se e difundiu-se a doutrina da nulidade do ato normativo inconstitucional. No modelo adotado nos EUA, com predominância do controle difuso, a inconstitucionalidade pode ser declarada por qualquer juiz que se lhe depare, na apreciação de uma lide intersubjetiva.

            A nota da predominância do controle incidental nos EUA permite entrever uma facilidade para a consagração da tese da nulidade da norma inconstitucional, sempre com total retroação de efeitos. Tratando-se de decisão proferida em processo concreto entre partes, a nulidade tem campo de efeitos bastante limitado em comparação com o ocorrido na declaração emanada de controle abstrato, com subtração retroativa da norma do ordenamento.

            O problema da subtração de eventuais efeitos e desfazimento de situações jurídicas constituídas, em decorrência da inconstitucionalidade declarada incidentalmente, é muito menos drástico entre partes, ensejando recomposições mais fáceis de se fazerem.

            Ao se tentar a utilização plena da tese da nulidade em controle abstrato de constitucionalidade, surgem vários problemas, alguns de ordem lógica, alguns de ordem prática. Inobstante os problemas propriamente fáticos chamem mais atenção e sejam de mais evidente percepção, a tese da nulidade não pode ser encarada como imperativo lógico.

            A nulidade absoluta não é uma categoria lógica válida sob a ótica jurídica, mormente se a considerarmos como inaptidão para geração de efeitos. Inapta a gerar efeitos é apenas a lei que nunca se aplicou. Caso se tenha aplicado, efeitos foram gerados, ainda que a lei seja inconstitucional.

            Embora alguns pretendam distinguir, predomina a noção de que a nulidade se assemelharia à inexistência, o que ensejaria a falta de validade de tudo aquilo que se praticou a partir da norma inconstitucional que, segundo a tese, nunca chegou a existir. Aí está o cerne da questão: a norma inconstitucional supõe-se que nunca existiu porque, desconforme à constituição, dela não retira validade.

            A pretensa inexistência da norma constitucional não resiste à constatação simples de que dela surtem efeitos. Por outro lado, não se admitem efeitos sem causas antecedentes e a lei inconstitucional nessa hipótese é a causa. Ora, pode-se dizer que tais efeitos, originados pela aplicação de norma inconstitucional, são indesejados ou que devem ser revistos na medida das possibilidades de recomposição, mas não se poderá dizer que não ocorreram ou que não tiveram causa.

            A única saída para total defesa da tese da nulidade, com manutenção da coerência lógica, seria a negativa dos efeitos da norma inconstitucional e, consequentemente, da possibilidade de qualquer reparação ou recomposição das situações constituídas.

            Seria necessário admitir-se, por exemplo, que pagamentos de supostos tributos instituídos por lei inconstitucional não seriam passíveis de repetição porque, inexistente a causa, inexistentes os efeitos.

            Não se mostra possível a desconsideração pura e simples de todos os efeitos do ato normativo inconstitucional, principalmente considerando-se que não se poderia exigir de todos aqueles que tiveram situações jurídicas constituídas que analisassem a constitucionalidade da norma.

            Com efeito, a norma edita-se munida de presunção de constitucionalidade, até porque emana – no caso emblemático da lei ordinária – do poder a quem se conferiu a atividade soberana de legislar. Ademais, completa-se o processo legislativo com a sanção do Presidente da República, que poderia apor vetos por inconstitucionalidade. Por tais razões, passa a ser aplicada, gerando alterações nas situações jurídicas dos mais diversos sujeitos que se encontrem de alguma forma sob suas prescrições.

            Para que se respeitem, tanto a lógica formal, quanto as situações constituídas, deve-se admitir que a inconstitucionalidade gera anulabilidade, ao invés de nulidade. Tal abordagem está plenamente consagrada nas Leis nº 9.868/99 e nº 9.882/99, cujos artigos 27 e 11, respectivamente, prevêem a chamada manipulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.

            Os dispositivos mencionados acima deram uma solução elegante ao problema, na medida em que se manteve grande cuidado terminológico. Fala-se em restrição de efeitos da declaração ou fixação de momento de eficácia da decisão. A defesa da segurança jurídica ou do excepcional interesse social é o antecedente necessário da manipulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.

            A possibilidade de se afastarem os efeitos clássicos da nulidade visando-se a proteger interesses que podem ser maiores é suficiente para concluir-se que a nulidade não é absoluta. Trata-se, a toda evidência, de anulabilidade, porque não se manipulam nulidades absolutas.

            A possibilidade aberta pelas normas mencionadas deixa claro que na esfera do direito, principalmente no âmbito da atividade legislativa negativa, como é o controle abstrato de constitucionalidade, tudo remeterá, em última análise, a uma comparação axiológica. Trata-se, enfim, de fazer opção de predomínio de um ou outro princípio.

            Na verdade, o âmbito dogmático quanto aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade proferida em controle abstrato encontra-se restrito à sua eficácia contra todos e ao efeito vinculante relativamente ao judiciário e à administração.


CONSTITUCIONALIZAÇÃO SUPERVENIENTE

            As conclusões que se podem extrair de quanto foi dito anteriormente, levam, de passagem, ao tema da constitucionalização superveniente. Exatamente por conta da anulabilidade da norma inconstitucional, deve-se considerar que a realização do controle abstrato de constitucionalidade somente se pode fazer a partir de paradigma atual e contemporâneo.

            A mutação constitucional pode acarretar a constitucionalização superveniente da lei outrora desconforme à carta política. Com efeito, se tal norma não fora extirpada do ordenamento por força de declaração de inconstitucionalidade – com os efeitos de regra a ela atribuídos – é certo que sua presunção de constitucionalidade permaneceu inabalada.

            Permanecerá ainda presumivelmente constitucional a norma que, ainda que declarada inconstitucional em julgamento de recurso extraordinário no STF, não tenha sua execução suspensa por resolução do Senado Federal. O mecanismo preserva o sistema de incoerências maiores, na medida em que se demanda a atuação da Casa da Federação para a extirpação da norma cujo controle deu-se de forma definitiva pela via de incidente.

            Então, sem a declaração proferida em ADIn ou ADC, a lei permanece válida e aplicável, inobstante quaisquer controvérsias que se ponha acerca de sua constitucionalidade, mesmo que se tenha decidido incidentalmente por sua inconstitucionalidade. A partir dessas premissas, põe-se o problema da alteração do texto constitucional naquilo com que a norma inferior conflitava.

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            A conclusão é que, se a norma se conforma ao novo texto constitucional, terá havido sua constitucionalização superveniente à sua edição. Se se decompuserem os elementos presentes à proposição da tese da constitucionalização superveniente, concluir-se-á pela sua validade, conforme adiante se faz.

            Admita-se, à título de exemplo, uma lei que foi incidentalmente declarada inconstitucional, em decisão final de recurso extraordinário. Deixou, portanto, de ser aplicável entre os litigantes, mas permaneceu válida nas outras relações jurídicas a ela submetidas.

            Posteriormente, faz-se emenda à constituição, alterando-se a norma com que a lei conflitava. Desta feita, de acordo ao novo molde constitucional, não se vêem incompatibilidades. Por fim, após a emenda, propõe-se uma ação direta de inconstitucionalidade da referida lei.

            Se a emenda suprimiu a norma constitucional com que a lei conflitava, anteriormente, temos aí efeitos semelhantes aos de uma revogação, ou seja, não se aplica mais, nem serve mais como parâmetro de controle. O controle se realizará a partir da conformidade, ou não, com a nova disposição constitucional relativa à matéria. Se se constata que a lei não agride a norma resultante da emenda, impõe-se concluir que é constitucional.

            Caso se adotasse o dogma inflexível da nulidade absoluta este controle de constitucionalidade seria impossível, porque seria necessário admitir que a lei já era nula. Mas, tal singela solução deixaria a decisão na suposta ADIn em aberto, o que se afigura inviável.

            Inviável também seria o julgamento a partir da norma constitucional já superada, ou seja, confrontando a lei com o paradigma contemporâneo à sua edição. Não se afere validade de uma lei a partir de um parâmetro inexistente e, portanto, inválido ele mesmo. O controle de constitucionalidade faz-se perante a norma constitucional contemporânea à propositura da aferição de constitucionalidade, senão sua inutilidade seria flagrante.

            Acontecendo a constitucionalização superveniente da lei, resta somente a possibilidade de sua impugnação, por inconstitucional no momento de sua edição, mediante argüição incidental no bojo de uma lide concreta entre partes. Abstratamente, somente se poderá utilizar a nova redação da constituição.


CONCLUSÕES

            A lei editada em desconformidade a seu fundamento de validade constitucional contemporâneo é anulável, seja entre partes, seja considerada abstratamente, como parte do ordenamento jurídico.

            Nesse último caso, o Supremo Tribunal Federal poderá manejar os efeitos cronológicos da impropriamente chamada declaração de inconstitucionalidade. Havendo a possibilidade de tal manejo, que deixa antever verdadeira natureza mista declaratório constitutiva da decisão, conclui-se que não se pode tratar de nulidade absoluta.

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Sobre o autor
Andrei Lapa de Barros Correia

procurador federal em Campina Grande (PB), lotado no órgão de arrecadação da Procuradoria Geral da Fazenda

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORREIA, Andrei Lapa Barros. O dogma da nulidade da lei inconstitucional e os problemas intertemporais no controle concentrado de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1003, 31 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8180. Acesso em: 19 abr. 2024.

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