13- TÉCNICAS DECISÓRIAS
O controle de constitucionalidade através da ADI e ADC comporta múltiplas técnicas decisórias. Especial relevo deve ser conferido particularmente a ADI, na qual a decisão pode adquirir maior complexidade.
Uma primeira dicotomia que pode ser estabelecida embasa-se na presença, ou não, de declaração de nulidade.
A declaração de nulidade arrima-se na premissa de que o ato inconstitucional reveste-se de nulidade ipso iure. No direito brasileiro, conforme o magistério de Gilmar Ferreira Mendes, esta doutrina encontra antecedentes no direito norte-americano. Porém, como salienta o doutrinador, "a recepção da doutrina americana não contribuiu significativamente para o desenvolvimento de uma teoria da nulidade da lei inconstitucional no Direito brasileiro. Também a fundamentação dogmática na chamada nulidade de pleno direito, ou ipso iure jamais se afigurou precisa entre nós." [74]
Mas a decisão poderá dar pela procedência da demanda de inconstitucionalidade sem declarar nula a norma. Tal ocorre na interpretação conforme a Constituição e na declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto.
A interpretação conforme a Constituição ou "verfassungskonforme Auslegung" [75], consiste na técnica decisória segunda a qual o Tribunal afirma a constitucionalidade da lei desde que observada determinada interpretação, ou, ao revés, a inconstitucionalidade, se interpretada de forma diversa. [76]
Já a declaração de nulidade ou inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, a "teilnichtigerklärung ohne normtextreduzierung", marca-se pela declaração de que determinadas interpretações são inconstitucionais.
Embora pareçam a rigor a mesma coisa, há diferenças entre as soluções, o que é realçado por Gilmar Ferreira Mendes, verbis: "Ainda que não se possa negar a semelhança dessas categorias e a proximidade do resultado prático de sua utilização, é certo que, enquanto na interpretação conforme à Constituição, se tem, dogmaticamente, a declaração de que uma lei é constitucional com a interpretação que lhe é conferida pelo órgão judicial, constata-se, na declaração de nulidade sem redução de texto, a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinadas hipóteses de aplicação (Anwendungsfälle) do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal. Assim, se se pretende realçar que determinada aplicação do texto normativo é inconstitucional, dispõe o Tribunal da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, que, além de mostrar-se tecnicamente adequada para estas situações, tem a virtude de ser dotada de maior clareza e segurança jurídica expressa na parte dispositiva da decisão ( a lei x é inconstitucional se aplicável a tal hipótese; a lei y é inconstitucional se autorizativa da cobrança do tributo em determinado exercício financeiro.)" [77]
Não obstante, "é preciso salientar que, embora tenham diferenças, ambas as ‘técnicas’ – a interpretação conforme a Constituição e a nulidade parcial sem redução de texto – são espécies do gênero ‘decisões interpretativas.’" [78]
14- EFEITOS DAS DECISÕES
Cumpre, no presente tópico, identificar quais os efeitos das decisões proferidas nas ADI e ADC, estabelecendo a sua dinâmica de irradiação no tempo. A problemática mais sensível reside na declaração de inconstitucionalidade, sendo premissa fundamental estabelecer qual conseqüência para a lei inconstitucional em vista desta declaração.
O vício da inconstitucionalidade toma por base a ordem constitucional vigente, pois não há uma inconstitucionalidade superveniente. Logo, o vício decorre de circunstância que antecede a lei inquinada com a pecha de afronta à Constituição. Tem-se, assim, que a inconstitucionalidade opera no campo da validade da norma. [79]
Se a questão é de validade, então a questão posterior se materializa no dimensionamento desta invalidade. Em linha de princípio, o ato inconstitucional padece de nulidade, ou seja, de invalidade em grau máximo. O grande problema é que os atos normativas e as disposições legais devem ser considerados presumidamente legítimos e conformes a Constituição, mas se reconhecida a nulidade, os efeitos têm de retroagir, Gera-se, assim uma nulidade ex tunc. Então, a lei apontada como inconstitucional ficaria sob suspeita por uma período e seriam prejudicados, após a declaração de inconstitucionalidade, direitos que foram constituídos de boa-fé. Já a nulidade ex nunc traz o incômodo de contrariar o princípio de que o nulo "nulus efectu producit".
A respeito da definição da natureza do ato inconstitucional, sustenta José Afonso da Silva que o sistema brasileiro estruturou-se a partir de técnica peculiar, que não se filia à teoria norte-americana. Segundo o constitucionalista: "Milita presunção de validade constitucional em favor de leis e atos normativos do Poder Público, que só se desfaz quando incide o mecanismo de controle estatuído na Constituição. Essa presunção foi reforçada pela Constituição pelo teor do art. 103, § 3º, que estabeleceu um contraditório no processo de declaração de inconstitucionalidade, em tese, impondo o dever de audiência de Advogado-Geral da União que obrigatoriamente defenderá o ato ou texto impugnado" [80]
Paulo Bonavides assinala que a doutrina da anulabilidade é tradicionalmente associada a Kelsen [81], e tem servido de arrimo para avanços jurisprudenciais na mitigação do princípio da nulidade, citando o exemplo específico de decisões da Corte Karlsruche. Segundo o eminente constitucionalista, reportando-se à análise doutrinária acerca dos precedentes da citada corte: "A doutrina constitucional tem constatado na jurisprudência daquela Corte um abrandamento de posições quanto ao rigor com que dantes sentenças de inconstitucionalidade incidiam sobre a norma formulada pelo legislador. Já não se trata simplesmente de uma saída hermenêutica pelo método de ‘interpretação conforme a Constituição’ (Verfassungskonforme Auslegung) para declarar inconstitucional uma lei unicamente se não for possível por nenhuma via preservá-la incontaminada do vício removível, mas de não declarar em qualquer hipótese e em todos os casos por inválida uma norma que é inconstitucional, ou seja, sem primeiro fazer, em face de situações concretas e sobremodo complexas, ‘um apelo’ vinculado a ‘diretivas’ para obter do legislador uma atividade subseqüente que torne a regra inconstitucional compatível com a Constituição. Nesse ínterim, poderá a Corte manter ao mesmo passo a provisória validade da lei. Evitar-se-ia, por conseguinte, que a norma, após a constatação judicial de inconstitucionalidade, fosse de imediato retirada da ordem jurídica." [82]
Prepondera, no entanto, no direito brasileiro, a noção de que a nulidade decorrente da inconstitucionalidade é absoluta e retroativa. Exemplificativamente, na doutrina, cita-se Alexandre de Moraes, que assertoa que "declarada a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo federal ou estadual, a decisão terá efeito retroativo (ex tunc) e para todos (erga omnes), desfazendo desde sua origem, o ato declarado inconstitucional, juntamente com todas as conseqüências dele derivadas, uma vez que os atos inconstitucionais são nulos e, portanto, destituídos de qualquer carga de eficácia jurídica, alcançando a declaração de inconstitucionalidade da lei ou ato noramtivo, inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados (efeitos ex tunc)." [83]
No mesmo diapasão, Gilmar Ferreira Mendes assevera que "a lei declarada incosntitucional é considerada, independentemente de qualquer outro ato, nula ipso iure e ex tunc" [84], mas ressalva que "na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal pode-se identificar, todavia, tentativa no sentido de, com base na doutrina de Kelsen, abandonar a teoria da nulidade em favor da chamada teoria da anulabilidade" [85], a qual, porém, não vingou, "até porque, consoante entendimento do supremo Tribunal Federal, o princípio da supremacia da Constituição não se compadece com uma orientação que pressupõe a validade da lei inconstitucional." [86]
A Lei nº 9.868/99, em seu artigo 27, consagra uma fórmula de limitação de efeitos, podendo ser admitida a declaração com efeitos ex nunc ou mesmo fixar a data de retroatividade para dentro do período compreendido entre a produção de efeitos da norma e a publicação da decisão no diário oficial [87], caracterizando a denominada inconstitucionalidade de efeitos pro futuro [88]. Estas hipóteses, porém, demandam votos de 2/3 dos Ministros.
A regra, frise-se, continua a ser a nulidade, sendo que "o princípio da nulidade somente há de ser afastado se se puder demonstrar, com base numa ponderação concreta, que a declaração de inconstitucionalidade ortodoxa envolveria o sacrifício da segurança jurídica ou de outro valor constitucional materializável sob a forma interesse social." [89]
Neste norte, Juliano Taveira Bernades, ao lembrar a adoção do princípio da nulidade, que encontra berço no direito norte-americano, e ressaltar a mitigação jurisprudencial de sua aplicação, conclui: "Reparar que o legislador não alterou a diretriz segundo a qual o princípio da nulidade dos atos inconstitucionais deva ser ordinariamente observado, nem determinou quando serão ou não aplicados efeitos meramente prospectivos à decisão de inconstitucionalidade. A questão se mantém sob o alvedrio do guardião maior da constitucionalidade, que deverá dizer quando é que o princípio da nulidade deixará de prevalecer. Ademais, este princípio não poderá ser obtemperado por singelos motivos. A permissão carece de quórum e justificativas adicionais." [90]
Já no que diz respeito à amplitude dos efeitos, as decisões proferidas no controle de constitucionalidade concentrado ou abstrato operam erga omnes e têm efeito vinculante, por força do artigo 28, parágrafo único, da Lei nº 9.868/99. O mencionado artigo veio corrigir falta do legislador constitucional, que estabeleceu previsão de efeito vinculante somente para a ADC (artigo 102, parágrafo 2º, da CF/88). O processo de controle concentrado via ação direta tem vista o superior interesse de dirimir situação de controvérsia constitucional, de modo que a paridade de soluções legitima-se.
A Emenda Constitucional nº 45/04 procedeu à parificação dos efeitos da ADC e da ADI, que, na nova redação do artigo 102, 2º, da CF/88 "produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal".
A propósito, leciona Gilmar Ferreira Mendes: "Proferida a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei objeto da ação declaratória, ficam os tribunais e órgãos do Poder Executivo obrigados a guardar-lhe plena obediência. Tal como acentuado, o caráter transcendente do efeito vinculante impõe que sejam considerados não apenas o conteúdo da parte dispositiva da decisão mas a norma abstrata que dela se extrai, isto é, a proposição de que determinado tipo de situação, conduta ou regulação –e não apenas aquela objeto do pronunciamento jurisdicional – é constitucional ou inconstitucional e deve, por isso, ser preservado ou eliminado." [91]
O efeito vinculante recebe a crítica percuciente de Lênio Luiz Streck, através de argumentos que suscitam reflexão. Diz ele: "Trazendo a questão para p âmbito da ontologia fundamental, matriz teórica destas reflexões, é possível afirmar-se que, se se conceder efeito vinculante à decisão em sede de interpretação conforme a Constituição, estar-se-á entificando o sentido dado ao texto jurídico-normativo. Da vinculação exsurgirá um significante-primordial-fundante (ponto pré-fixado de sentido), que impedirá o aparecer da singularidade de (outras) hipóteses de incidência do sentido do texto objeto da interpretação conforme. O efeito vinculante, nesse caso, aprisiona o tempo e a história do sentido do ser do ente (texto normativo). No fundo, atribuir efeito vinculante a um texto (proposição jurídica exsurgente de uma decisão) significa em retorno (melancólico) à jurisprudência dos conceitos, espécie de ‘paraíso dos conceitos do formalismo’ tão bem criticado por Hebert Hart em seu ‘O Conceito de Direito.’" [92]
A crítica é pertinente, pois o instituto pode conduzir à "ossificação" do Direito, mas sob o prisma da funcionalidade do controle concentrado, o efeito vinculante é logicamente sustentável. Há que se compatibilizar a vinculatividade com mecanismos que permitam a revisão dos paradigmas. Em outra oportunidade já ressaltei a necessidade de revisão periódica do precedente vinculante. [93]
Problemática diversa observa-se nas ações de inconstitucionalidade por omissão, onde há eficácia mandamental além da eficácia declaratória. Consoante o artigo 103, § 2º, da CF/88, declarada a inconstitucionalidade por omissão, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, o prazo será de trinta dias.
A fórmula baseia-se na asserção de que ao julgador é defeso irrogar-se em legislador positivo, o que poderia gerar um desequilíbrio institucional. [94] Mas somente no caso de órgão administrativo, em havendo delimitação de prazo, é que alguma conseqüência poderá ser aventada. Tratando-se de mora legislatoris, não há sanção. Esta mesma celeuma também se instalou acerca do mandado de injunção, dividindo-se a jurisprudência em duas correntes, uma, concretista, admitindo o papel colmatador do Poder Judiciário, a outra, não concretista, postulando a mera constituição em mora. [95]
Vale referir que a decisão na ação declaratória de controle concentrado não requer providência externa alguma para ter plena eficácia. Por outras palavras, a providência de comunicação ao Senado, para suspensão de lei declarada inconstitucional é pertinente ao controle difuso somente. Cumpre gizar, por fim, que as ações diretas apresentam natureza dúplice. [96]