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Ensaio sobre as contribuições do sistema constitucional tributário:

enfoque a partir da teoria dos tributos vinculados e não-vinculados e da esquematização formal da regra-matriz de incidência

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09/04/2006 às 00:00
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A necessidade de haver um realinhamento teórico

O primeiro passo necessário a tanto é se remover o óbice do art. 4.º, II, do CTN, que preceitua ser irrelevante para a caracterização da natureza jurídica do tributo a destinação do produto de sua arrecadação, e o do art. 5.º do CTN, que dispõe ser tributo apenas os impostos, as taxas e as contribuições de melhoria. Esses dispositivos não foram recepcionados pela nova ordem constitucional. As contribuições fiscais, parafiscais e extrafiscais – hoje já não existe nenhuma objeção doutrinária ou jurisprudencial séria contra essa afirmação – são tributos. E para se caracterizar algum tributo como uma dessas contribuições, é imprescindível que se analise a destinação do produto de sua arrecadação.

Essa observação já revela a relativa insuficiência da composição da regra-matriz de incidência quando nela não exista qualquer critério que se refira à destinação da receita oriunda do adimplemento da obrigação tributária. De fato, se tomarmos a regra-matriz de incidência tal como delineada por Paulo de Barros Carvalho teremos a seguinte disposição: [20]

Ht = Cm (v + c) + Ce + Ct

Njt


DSn DSn

Cst = Cp (Sa + Sp) + Cq (bc x al)

Os impostos, as taxas e as contribuições de melhoria podem ser decompostos perfeitamente a partir de tais critérios, não havendo coincidência total de critérios entre essas espécies tributárias e tampouco entre as suas subespécies. Ou seja, a partir da regra-matriz de incidência pode se decompor os critérios das normas jurídicas tributárias, a fim de que se diferencie um imposto de uma taxa, de uma contribuição de melhoria e vice-versa. Do mesmo modo, é possível se distinguir as diversas subespécies de impostos, de taxas e de contribuições de melhoria a partir exclusivamente da decomposição de suas regras-matrizes de incidência. [21]

E é precisamente essa a utilidade da ilustração da norma jurídica tributária, como reconhece Paulo de Barros Carvalho: "A esquematização formal da regra-matriz de incidência tem-se mostrado um utilíssimo instrumento científico, de extraordinária fertilidade e riqueza para a identificação e conhecimento aprofundado da unidade irredutível que define a fenomenologia básica da imposição tributária. Seu emprego, sobre ser fácil, é extremamente operativo e prático, permitindo, quase que de forma imediata, penetrarmos na secreta intimidade da essência normativa, devassando-a e analisando-a de maneira minuciosa. Em seguida, experimentando o binômio base de cálculo/hipótese de incidência, colhido do texto constitucional para marcar a tipologia dos tributos, saberemos dizer, com rigor e presteza, da espécie e da subespécie da figura tributária que investigamos." [22]

O mesmo não se pode dizer em se tratando das contribuições. Tome-se, desde logo, um exemplo: se procedermos à decomposição da regra-matriz de incidência da COFINS e da contribuição para o PIS/PASEP, acentuando o binômio base de cálculo/hipótese de incidência, não lograremos identificar qualquer traço que diferencie uma espécie tributária da outra. A base de cálculo tanto da COFINS quanto da contribuição para o PIS/PASEP é a receita bruta, nos termos dos arts. 2.º e 3.º, § 1.º, da Lei n.º 9.718/98 [23] e do art. 1.º da Lei n.º 10.637/2002. [24] O critério material da hipótese tributária, como se vê, é, também, o mesmo: auferir receita bruta. Ambas as contribuições parafiscais possuem idêntica matriz constitucional, que é o art. 195, I, "b", com a redação dada pela Emenda Constitucional n.º 20/98, sendo, por isso, classificadas como contribuições de seguridade social.

Os exemplos se multiplicam. A contribuição de seguridade social devida pelas empresas (art. 22, I, da Lei n.º 8.212/91) é, sob o ponto de vista do binômio base de cálculo/hipótese de incidência, idêntica à contribuição para o SAT (art. 22, II, da mesma lei): [25] a base de cálculo de ambas é o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas, durante o mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos. O critério material da hipótese tributária é o pagamento de tais remunerações, enquanto o lastro constitucional de ambas as contribuições de seguridade social é o art. 195, I, "a", da CR/88, com a redação dada pela Emenda Constitucional n.º 20/98. Para a doutrina, de um modo geral, esse é um falso-problema, pois que todas essas exações têm natureza jurídica de impostos, embora assim o legislador não as tenha nominado (mesmo o legislador constituinte!), exatamente por serem tributos não-vinculados. Essa postura doutrinária é, a nosso ver, censurável, pois equivale a despir de sentido inúmeros dispositivos constitucionais que cuidaram de estabelecer um regime jurídico-tributário detalhado para as contribuições (circunstância essa que sequer é controvertida pela doutrina!), sem embargo de incorrer no grave equívoco consubstanciado em designar por imposto qualquer tributo não-vinculado. Ademais, como se reconhecer, de um lado, a natureza tributária das contribuições se, de outro, não se consegue distinguí-las das outras espécies tributárias a partir da decomposição de sua regra-matriz de incidência?

Aliás, cabe aqui uma sutil observação. Dentre as possíveis significações da palavra tributo, Paulo de Barros Carvalho o identificou como norma jurídica tributária, no sentido de produto do exercício da competência tributária delineada no sistema constitucional. [26] Ora, apenas se pudermos identificar qualquer espécie tributária a partir de sua respectiva norma jurídica tributária é que estaremos diante de um tributo nessa acepção. E é na norma jurídica tributária que devemos encontrar os critérios para a identificação da espécie e subespécie tributária, como reconheceu o próprio Paulo de Barros Carvalho, sob pena de se estabelecer uma irremediável contradição doutrinária. Por isso, em que pese a louvável tentativa de sistematização, não nos parece acertada a conclusão de Eurico Marcos Diniz de Santi ao promover uma classificação relacional ou extrínseca dos tributos, cujo conteúdo, além de se valer de um sincretismo não recomendável na classificação das espécies tributárias, pauta-se também na equivocada premissa de que todo tributo não-vinculado tem natureza jurídica de imposto. [27]

Em verdade, não basta simplesmente esquadrinhar as contribuições no quadro geral da regra-matriz de incidência para mostrarmos de que espécie tributária estamos falando. Necessita-se de algo mais. Onde está, então, a falha da teoria? Parece-nos que falta ao esquema da regra-matriz de incidência: (a) um critério que oriente a distribuição do produto da arrecadação tributária, justificando a sua existência, que denominaremos de critério finalístico; e (b) um critério que se refira à destinação dessa receita, que poderíamos denominar de critério receita tributária.


Dois novos critérios para a regra-matriz de incidência: o critério finalístico e o critério receita tributária

A regra-matriz de incidência, em verdade, é uma unidade lógica e incindível. Compete ao exegeta extrair do sistema jurídico os seus aspectos, devendo estar consciente, porém, de que apenas os revela. [28] Isto é, o processo de formalização da regra-matriz de incidência decorre de uma análise essencialmente construtiva, no sentido de que se deve buscar, nos meandros do direito positivo, todos os critérios que a informam. A falha da esquematização tradicional da regra-matriz de incidência, a nosso ver, está exatamente no fato de que alguns de seus aspectos não foram revelados pela doutrina. Procuramos demonstrar essa circunstância a partir da testabilidade do esquema tradicional da regra-matriz de incidência, do que resultou uma relativa insuficiência ao aplicarmo-la na análise da fenomenologia de incidência das contribuições. Por isso, para nós, a ilustração da regra-matriz de incidência deve manter o seguinte esquema:

Ht = Cm (v + c) + Ce + Ct


DSn DSm

Njt

Cst = Cp (Sa + Sp) + Cq (bc x al)


DSn DSm

Cst’ = Cf (Sa + Sr) + Crt

Expliquemo-la: uma vez abandonada a equivocada noção de que o destino do produto da arrecadação tributária não compõe a norma jurídica tributária, é imprescindível situar o seu posicionamento no âmbito da regra-matriz de incidência.

Com a concreção da hipótese tributária no mundo empírico, ocorre, infalivelmente, a incidência da norma jurídica tributária, que inaugura a existência do fato jurídico tributário. [29] Estamos aqui a falar de um dever-ser interproposicional, neutro por excelência, segundo o qual, dado o antecedente da norma jurídica tributária, deve-ser o seu conseqüente. O conseqüente, por sua vez, diz respeito à eficácia do fato jurídico tributário, e traz em seu bojo um dever-ser intraproposicional, modalizado sob a forma de um modal deôntico, que cria para o sujeito passivo (Sp) o dever prestacional de adimplir a obrigação tributária, materializada monetariamente mediante o critério quantitativo (Cq), e para o sujeito ativo (Sa) o direito subjetivo de exigir seu cumprimento. [30]

A novidade proposta reside no conseqüente secundário da norma jurídica tributária, ilustrado no esquema por Cst’. Da mesma forma que ocorre com o conseqüente primário (Cst), o Cst’ é informado por um dever-ser interproposicional. Ou seja, dado o adimplemento da obrigação tributária (isto é, uma vez exaurido o objeto do Cst), a norma jurídica tributária irradia, infalivelmente, um novo efeito, qual seja, o Cst’, informado, também, por um dever-ser intraproposicional modalizado sob a forma de um modal deôntico, que cria para o sujeito ativo (Sa) o dever de entregar ao sujeito receptor (Sr) – ambos compõem o critério finalístico (Cf) –, total ou parcialmente, no tempo e do modo devidos, o produto da arrecadação tributária (Crt). Importa frisar, desde logo, que o sujeito receptor pode ser uma entidade personalizada ou não e pode até mesmo se confundir com o próprio sujeito ativo da obrigação tributária.

Tudo isso se passa no que denominamos de conseqüente secundário (Cst’). A proposta tem um objetivo claro: abranger as contribuições no esquema da regra-matriz de incidência, inserindo-as por inteiro no regime jurídico-tributário. Vejamos se a proposta é útil para tanto.

Voltemos aos exemplos dados no tópico anterior, sobre a COFINS, a contribuição para o PIS/PASEP, a contribuição de seguridade social devida pelas empresas e a contribuição para o SAT. Se decompusermos as respectivas regras-matrizes de incidência dessas contribuições parafiscais, agora com os novos critérios propostos, poderemos visualizar, seguramente, as distinções existentes entre elas, retomando, assim, "a função operativa e prática do esquema da regra-matriz de incidência", [31] ou seja, a sua única razão de ser.

Quanto à COFINS e à contribuição para o PIS/PASEP, já vimos que o binômio base de cálculo/hipótese de incidência é rigorosamente o mesmo, assim como a matriz constitucional de ambas as espécies tributárias. A distinção entre ambas repousa exatamente no critério finalístico: enquanto na COFINS o sujeito receptor é representado figurativamente pelo orçamento da seguridade social (art. 165, § 5.º, III, da CR/88), na contribuição para o PIS/PASEP o sujeito receptor é designado pelo Programa de Integração Social e pelo Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (art. 239 da CR/88), que embora integrem o orçamento da seguridade social, recebem um tratamento especial, pois se destinam apenas a custear o programa do seguro-desemprego e o abono anual de um salário-mínimo devido aos empregados que satisfazem os requisitos do § 3.º do art. 239 da CR/88. O critério receita tributária de ambas as exações corresponde à totalidade do produto da arrecadação tributária, devendo ser integralmente destinado a seus sujeitos receptores.

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Quanto à contribuição de seguridade social devida pelas empresas e à contribuição para o SAT, o binômio base de cálculo/hipótese de incidência também é idêntico, assim como o fundamento constitucional de ambas, como visto antes. Se tomarmos o critério finalístico, porém, veremos que enquanto o sujeito receptor da contribuição de seguridade social devida pelas empresas, assim como na COFINS, é representado figurativamente pelo orçamento da seguridade social (art. 165, § 5.º, III, da CR/88), na contribuição para o SAT o sujeito receptor é designado pelo Seguro Acidente do Trabalho, que também integra o orçamento da seguridade social, mas destina-se a financiar apenas o benefício previdenciário aposentadoria especial (arts. 57 e 58 da Lei n.º 8.213/91) e aqueles concedidos em razão do grau de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho. Do mesmo modo, o critério receita tributária de ambas as exações corresponde à totalidade do produto da arrecadação tributária, devendo ser integralmente destinado a seus sujeitos receptores.

Nos exemplos dados, os sujeitos receptores eram sempre entidades não-personalizadas (orçamento da seguridade social, PIS/PASEP e SAT) e o critério receita tributária de ambas as exações correspondia à totalidade do produto da arrecadação tributária. Mas nem sempre isso ocorre.

Como exemplo de contribuição cujo sujeito receptor é uma entidade personalizada e cujo critério receita tributária não engloba a totalidade do produto da arrecadação, temos a contribuição do salário-educação. Aliás, o binômio base de cálculo/hipótese de incidência da contribuição do salário-educação é o mesmo da contribuição de seguridade social devida pelas empresas, conforme se depreende do art. 15 da Lei n.º 9.424/96. [32] O que muda é a matriz constitucional, que da contribuição do salário-educação é o art. 212, § 5.º. Mas o sujeito receptor da contribuição do salário-educação é o FNDE, sendo o sujeito ativo o INSS (art. 15, § 1.º, da Lei n.º 9.424/96). [33] Quanto ao critério receita tributária, o sujeito ativo (INSS) [34] retém 1% a título de administração da cobrança e fiscalização inerentes à exigibilidade da exação (= exercício do direito subjetivo), repassando ao FNDE o restante, respeitando, porém, a distribuição da quota federal e da quota estadual (art. 15, § 1.º, I e II, da Lei n.º 9.424/96 [35] c/c art. 4.º, parágrafo único, da Lei n.º 9.766/98 [36]).

Essas considerações ganham especial relevo e têm profundas conseqüências no campo do direito processual tributário.

Sempre que o sujeito receptor for uma entidade não-personalizada, eventual ação de repetição do indébito tributário, que consubstancia uma pretensão condenatória, deverá ser dirigida em face apenas do sujeito ativo da obrigação tributária. Ao revés, se o sujeito receptor for uma entidade personalizada, a ação de repetição do indébito tributária deverá ser dirigida apenas contra ele. A exceção fica por conta da hipótese (como na contribuição do salário-educação) de o sujeito ativo vir a receber parte do produto da receita tributária, quando, então, deverá responder, na medida exclusiva de sua participação, por eventual repetição, assumindo, juntamente com o sujeito receptor, o pólo passivo da demanda. Em se tratando de ação anulatória de débito fiscal, que revela uma pretensão anulatória do ato de lançamento tributário, também o sujeito ativo é quem tem legitimidade passiva ad causam, tendo em vista que o lançamento é ato de expressão do exercício de sua capacidade ativa tributária. Por outro lado, se se tratar de hipótese de mandado de segurança, que exprime uma pretensão mandamental, o sujeito receptor, seja ele entidade personalizada ou não, jamais integrará a relação processual mediante a presentação (= que o faz presente) [37] de alguma autoridade administrativa sua que se revista da qualidade de autoridade coatora. Apenas o sujeito ativo da obrigação tributária se reveste dessa qualidade, exatamente por ser a autoridade administrativa incumbida por lei de proceder à fiscalização e a cobrança dos créditos tributários postos à sua administração, competindo-lhe, para tanto, tomar as medidas necessárias para a sua satisfação, titularizando os meios coercitivos de cobrança (autuação, inscrição em dívida ativa, propositura de ação fiscal). Daí por que, enfeixando os poderes administrativos suficientes para exigir, compulsoriamente, o recolhimento da exação, abre-se o ensejo para discussões sobre a legitimidade de sua conduta. Por fim, se houver simultaneidade de pretensões (condenatória, anulatória e mandamental), como nas hipóteses em que se ajuíza uma ação ordinária com vistas tanto à declaração de inexistência de relação jurídica tributária ou de anulação do lançamento tributário, quanto à repetição do que já houver sido pago a título do tributo questionado, a solução deverá ser combinada: havendo a emanação de um provimento mandamental (típico das decisões que antecipam os efeitos da tutela relacionadas a pretensões declaratórias e constitutivas), deverá o sujeito ativo ser oficiado na qualidade de responsável executivo secundário para dar cumprimento à decisão judicial, a fim de que observe a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, enquanto, ao fim da demanda, o provimento condenatório de repetição do indébito será dirigido apenas ao sujeito receptor. É óbvio que se o sujeito ativo desempenhar, também, o papel de sujeito receptor, será o destinatário de todas as pretensões que puderem ser deduzidas em juízo pelo sujeito passivo e, por conseguinte, dos provimentos jurisdicionais dantes aludidos.

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Sobre o autor
Rodrigo Francisco de Paula

advogado em Vitória (ES), militante na área tributária e aduaneira, sócio da Advocacia Abreu Júdice, professor de Direito Comercial e Tributário nos cursos de Direito e Relações Internacionais do Centro Universitário de Vila Velha (UVV), professor convidado do curso de pós-graduação lato sensu em Direito Tributário da UVV em convênio com a Secretaria de Estado da Fazenda do Espírito Santo, professor convidado do curso de pós-graduação lato sensu em Direito Tributário, Processual Tributário com ênfase em Tributos Estaduais e Municipais da Faculdade Cândido Mendes/Consultime Instituto de Ensino, pós-graduando lato sensu em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULA, Rodrigo Francisco. Ensaio sobre as contribuições do sistema constitucional tributário:: enfoque a partir da teoria dos tributos vinculados e não-vinculados e da esquematização formal da regra-matriz de incidência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1012, 9 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8218. Acesso em: 26 abr. 2024.

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