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A etnografia na formação de um constitucionalismo dos povos Aymaras

14/06/2020 às 14:00
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Buscamos compreender os processos de criação do Estado Constitucional, a partir de trajetórias dos Aymaras, tendo por fundamento teórico o pluralismo jurídico, a identidade e a interculturalidade.

1. INTRODUÇÃO

Inicialmente, é importante ressaltar a relação entre identidade e interculturalidade aymaras, os direitos reivindicados e a sua concretização, a partir da constitucionalização, tendo em vista ser primordial para reverificação da instrumentalização da Constituição de Estados Plurinacionais. Para tanto, a presente pesquisa busca averiguar a possibilidade de uma interpretação pós-colonial da tese da constitucionalização simbólica das constituições de povos plurinacionais.

Assim, este trabalho justifica-se pela necessidade de se aprofundar os marcos epistemológicos que fundamentam as compreensões de pluralismo jurídico, de interculturalidade e, em uma perspectiva constitucional, os instrumentos normativos acerca das comunidades aymaras. Diante disso, surge o seguinte problema jurídico: qual a relação entre identidade e a tese da constitucionalização simbólica das constituições de povos plurinacionais?

Dessa forma, nomeou-se como hipótese inicial a possibilidade de se reconhecer os marcos epistemológicos que fundamentam as compreensões de pluralismo jurídico, de interculturalidade e, em uma perspectiva constitucional, os instrumentos normativos acerca das comunidades aymaras. Nesse sentido, a abertura possui uma orientação etnográfica, procurando (re)conhecer a dialética da identidade, os povos aymaras e sua mecânica na constituição do Estado Constitucional na América Latina, disputando com outros espaços de produção do direito.

Assim, inicialmente buscou-se estabelecer critérios objetivos para julgar a validade do sistema, como o núcleo de uma tradição/identidade que pode ser questionado. Posteriormente, demonstrou-se que se pode construir uma teoria crítica engajada em um projeto contra-hegemônico. Por fim, evidenciou-se que as constituições plurinacionais são um marco significativo para a reivindicação de direitos pelas comunidades indígenas e, assim, seria possível identificar processos de construção do Direito, a partir de trajetórias de vida de povos aymaras.


2. ETNOGRAFIA E IDENTIDADE PARA CRIAÇÃO DE UM CONSTITUCIONALISMO

Para análise da presente temática, é necessário definir identidade para além do conjunto de características que distinguem uma pessoa ou uma coisa e, por meio das quais, é possível individualizá-la. É necessário definirmos o que denominamos identidade étnica, ou seja, a identidade de grupos em situações de fricção étnica1.

Nesse sentido, o processo de identificação étnica inclui a noção de identidade contrastante, o que, no plano das relações interétnicas, implica a afirmação do nós frente ao outro, ou seja, as relações entre os grupos são de oposição ou de contraste2. Assim, o etnocentrismo é outra característica importante da identidade étnica, porque pressupõe relações sociais e um código de categorias destinadas a orientar o desenvolvimento da interação, na medida em que se constrói a identidade social.

Diante disso, podemos dizer que a ideia de identidade social, ela mesma, é uma ideologia e uma forma de representação coletiva, enquanto sistema social inclusivo que envolve a gramaticalidade das formas de identidade, como nação, que emerge de conjunto de pessoas ou coisas dispostas proximamente e formando um todo. Para nossa análise, a interação toma a forma do sistema de fricção étnica dos grupos aymaras3.

A noção de pertencimento da identidade nacional acontece em um cenário de unificação, onde a diversidade de formas e hierarquias se subordinam ao relato homogêneo. Dessa forma, a cultura nacional é identificada como fonte de significados culturais e um sistema de representações. A nação não é apenas uma entidade política, mas um sistema de representação cultural, sons e linguagem, dotado de símbolos que produzem sentidos. Assim, “as culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a nação, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades”4. Além disso, a linguagem tem como função unificar, no mesmo espaço histórico e cultural, as memórias que, em forma de imagens, representam as múltiplas vozes, as múltiplas identidades.

Esses olhares circunstanciados da etnografia da linguagem aymara são próprios da formação societária dos índios da Cordilheira dos Andes (Peru, Bolívia, Chile e Argentina) e denotam uma intensa transformação da identidade. No transcorrer dos anos, houve diversas modificações na linguagem pela influência de colonizadores – por exemplo, chamavam a terra de PachaAchachi; depois substituíram a expressão “Achach”’ por “Mama”, já na contemporaneidade, há uma inteira concordância entre autores que defendem que Pachamama traz em si o sentido de “tierra grande, diretora e sustentadora da vida”.5

Em perspectiva histórica de ligação entre colonização e linguagem, diz Luhmann que uma das características da sociedade colonial é a constante transformação, “a perda da representação natural” ou “perda de representação de linguagem”, ou seja, a incapacidade de uma “representatio identitatis6.

Nesse sentido, as Constituições de Estados Plurinacionais deveriam representar identidades coletivas indígenas ali reconhecidas – por exemplo, a Constituição boliviana reconhece os pueblos y naciones indígenas originários campesinos –, que encontram-se diretamente vinculadas a direitos de ordem coletiva sobre terras e territórios, bem como de seus próprios sistemas políticos, jurídicos e econômicos (art. 30, II, 14). Nota-se, então, que o constitucionalismo se vale de um discurso racional e argumentativo de justificação da ordem política e social vigentes em determinado tempo e espaço7. Nesse sentido, o sistema jurídico da sociedade mundial é multicêntrico, em um sistema de normas, cuja unidade é estruturada pelo fato de todas elas terem o mesmo parâmetro de validade8.

Essa reconfiguração da Constituição em países plurinacionais, como o Equador e a Bolívia, é fruto de processos constituintes que se basearam na luta contra problemas de exclusão social histórica e duradoura. No caso do Equador, admite-se, entre os direitos coletivos dos povos indígenas, a conservação da propriedade de suas terras e territórios ancestrais (art. 57, 4 e 5), bem como os direitos de “conservar y desarrollar sus propias formas de convivencia y organización social, y de generación y ejercicio de la autoridad, en sus territorios legalmente reconocidos y tierras comunitarias de posesión ancestral” (art. 57, 9). Diante disso, a “noção jurídico-política do território”, ou seja, uma identidade nacional única “derivada do conhecimento e da conquista do mundo”, foi a concepção “entronizada” pelo Estado-Nação9.

Nesse sentido, reconhece-se o caráter político-ideológico, pluriétnico, multicultural, o que denota um modelo de Estado-Nação construído por meio de uma noção de tempo homogêneo, segundo o qual, o conceito de povo e o discurso dos direitos tornaram-se generalizados no âmbito da ideia de nação, deixando de lado a identidade. O retrato empírico dessa identidade é como redes e conselhos indígenas se identificam e lutam com o objetivo de “reconstituir o ayllus, markas e suyus do Qullasuyu” e transformar o atual “Estado Uninacional” em “Estado Plurinacional”10 .

Nesse ponto, pela hermenêutica crítica da Constituição, é preciso compreender como essa proposição de Estado-Nação é formada11. Diante disso, no intento de (re)pensar os instrumentos constitucionais, cumpre reconhecer que “o modo de produção gera relações básicas e a divisão em classes determina um pluralismo cultural e identitário” e o pluralismo jurídico parece ser uma interpretação adequada para as estruturas sociais pluriculturais, especialmente na América Latina12. A ideia de pluralismo jurídico está implicada pela noção de interculturalidade, a qual não é um dado, mas sim processo em construção, que está além do mero respeito, tolerância ou afirmação da diversidade e, diante disso, é possível afirmar que ainda não seja concretizada efetivamente13.

Assim, a identidade aymara busca por direitos em suas comunidades e, assim, justifica-se uma investigação de caráter qualitativo e interdisciplinar, cuja abordagem metodológica a utilizada é a etnografia. Essa metodologia se constituiu na Antropologia, e não deve ser compreendida apenas como método, mas enquanto forma de conhecer que permeia o fazer antropológico14.

A etnografia se caracteriza pelo necessário contato com a realidade dos sujeitos que se pretende pesquisar; por possuir “objetivos científicos” e um modo de documentação e registro permanentes, realizados geralmente por intermédio dos diários de campo. De outra forma, é possível entender a etnografia como uma “descrição densa”, uma vez que interpreta a realidade estudada; ou ainda que a etnografia “consiste num processo de diálogo em que os interlocutores negociam ativamente uma visão compartilhada da realidade”15.

A observação-participante é um método característico da pesquisa etnográfica. O antropólogo James Clifford, ao analisar a autoridade da experiência etnográfica, afirma que a observação-participante “serve como uma fórmula para o contínuo vaivém entre o ‘interior’ e o ‘exterior’ dos acontecimentos, de um lado, captando o sentido de ocorrências e gestos específicos, através da empatia; de outro, dá um passo atrás, para situar esses significados em contextos mais amplos”16.

A interculturalidade consiste em um “movimento social e uma oferta ético-política que busca erradicar – mediante o manejo não violento dos conflitos – as causas estruturais das injustiças ancestrais e socioculturais que atravessam as sociedades pós-coloniais latino americanas” 17. Esse projeto ético se relaciona com uma concepção de pluralismo jurídico que articula as diferentes práticas de criação do Direito, não somente a partir do Direito do Estado-Nação, mas por meio dos Direitos Humanos.

Diante disso, impõe-se, para solução de conflitos com numerosas relações de interdependência ou de subordinação de direitos indígenas e de distintas ordens jurídicas, que se abra cognitivamente, de forma que um processo constitucional se estabeleça como freio para a hiperexpansão de direitos trans e supranacionais com potenciais destrutivos e reconhecidos déficits democráticos.

Por fim, é importante ressaltar que os indígenas misturam traços culturais étnicos e ligação com um território para resistir e, no caso de uma normatização simbólica, constata-se que as Constituições só poderiam adquirir concretização efetiva se houvesse “uma transformação social no plano estrutural” com “desentrincamento e lei, poder e saber”. É, justamente, um momento de ruptura com a ordem de poder estabelecida, com implicações politicamente contrárias à diferenciação e à identidade/autonomia do Direito18.


3. CONCLUSÃO

A ciência de pertencimento da identidade nacional advém em um panorama de unificação, onde a diversidade de diversas configurações e hierarquias se subordinam ao relato homogêneo. A nação não é apenas um instituto político, mas um sistema de desenho cultural, sons e linguagem, dotado de símbolos que produzem sentidos. Além disso, a linguagem tem como cargo unificar, no mesmo espaço histórico e cultural, as memórias que, em forma de imagens, simulam as múltiplas vozes, as múltiplas identidades.

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Nesse sentido, as Constituições de Estados Plurinacionais deveriam conceber identidades coletivas indígenas ali reconhecidas, ou seja, o constitucionalismo se vale de uma alocução racional e argumentativa de justificação da ordem política e social vigentes em determinado tempo e espaço.

Diante disso, reconhece-se o caráter político-ideológico, pluriétnico, multicultural, o que denota um modelo de Estado-Nação construído por meio de uma noção de tempo homogêneo, segundo o qual o conceito de povo e o discurso dos direitos tornaram-se generalizados no âmbito da ideia de nação, deixando de lado a identidade.

A ideia de pluralismo jurídico está indiciada pela noção de interculturalidade, onde se é possível entender a etnografia como num processo de diálogo em que os interlocutores negociam ativamente uma visão compartilhada da realidade. A interculturalidade consiste em um “movimento social e uma oferta ético-política" e se articula em diferentes práticas de criação do Direito, não somente a partir do Direito do Estado-Nação, mas através dos Direitos Humanos.

Diante disso, impõe-se concluir que, para solução de conflitos com numerosas relações de dependência ou de subordinação de direitos indígenas e de distintas ordens jurídicas constitucionais, é imperioso que se abra cognitivamente para a formação de um processo democrático aymara.


4. REFERÊNCIAS

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WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo: Alfa Omega, 1994.


Notas

1 Um sujeito, ou um grupo, afirmam sua identidade contrastando-a com uma etnia de referência, seja que possui caráter tribal (Terena, Tukuna) ou nacional. No caso da identidade étnica, esta se afirma “negando” a outra identidade, que é visualizada de forma “etnocêntrica”. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Etnicidad y estrutructura social. Mexico D.F.: CIESAS, 2007. p. 91.

2 OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Etnicidad y estrutructura social. Mexico D.F.: CIESAS, 2007. p. 91.

3 DAL POZ, João. A etnia como sistema: contato, fricção e identidade no Brasil indígena. Soc Cult, v. 6, n. 2, p. 177-88, 2003.

4 HALL, S. Identidades Culturais na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.

5 PAREDES, M. Rigoberto. Mitos, superticiones y supervivencias populares de Bolivia. La Paz: Arno Hermanos, 1920.

6 LUHMANN, Niklas. Soziologie des risikos. Berlin: de Gruyter, 1991.

7 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. São Paulo: Florense, 2013. p. 30.

8 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Batista Machado. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

9 SANTOS, Milton. O retorno do território. In: Milton Santos; M. Adélia SOUZA e M. Laura SILVEIRA (Orgs.). Território: Globalização e Fragmentação. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998. p.15.

10 Conselho Nacional ayllus de Markas e Qullasuyu. Disponível em: https://conamaq.nativeweb.org/reformas.html. Acesso em: 08 ago. 2018.

11 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

12 LYRA FILHO, Roberto. O direito que se ensina errado. Brasília: Centro Acadêmico de Direito, 1980.

13 TUBINO, Fidel. El interculturalismo frente a los desafios del pluralismo juridico. 2007. Disponível em: https://red.pucp.edu.pe/ridei/libros/el-interculturalismo-frente-a- los-desafios-del-pluralismo-juridico/. Acesso em: 21 ago. 2016.

14 PEIRANO, Mariza. Etnografia não é método, Porto Alegre, Horizontes Antropológicos, v. 20, n. 42, p. 377-391, jul/dez 2014. Semestral. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S[010]4-71832014000200015&script=sci_arttext. Acesso em: 03 ago. 2016.

15 GOLDMAN, Márcio. Como funciona a democracia: uma teoria etnográfica da política. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.

16 CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX: Sobre a autoridade Etnográfica. In: CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. p. 17-62.

17 TUBINO, Fidel. El interculturalismo frente a los desafios del pluralismo juridico. 2007. Disponível em: https://red.pucp.edu.pe/ridei/libros/el-interculturalismo-frente-a- los-desafios-del-pluralismo-juridico/. Acesso em: 21 ago. 2016.

18 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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Sobre a autora
Luana Bispo

Doutoranda em Direito Constitucional pela UNB. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Goiás (2015), com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG). Advogada com experiência na área de Direito Público e de Direito Privado. Foi pesquisadora e bolsista pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em projetos com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA). É pesquisadora e Líder do Grupo de Pesquisas Interdisciplinares em Direito (GEPID), registrado no Diretório de Pesquisas do CNPq. É professora na Faculdade Metropolitana de Anápolis (FAMA) na disciplina de Direito Constitucional. Tem interesse nas seguintes temáticas: Direito Constitucional e Direito Processual.Tem experiência como Assistente Voluntária de decisões em Vara Criminal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BISPO, Luana. A etnografia na formação de um constitucionalismo dos povos Aymaras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6192, 14 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82180. Acesso em: 21 nov. 2024.

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