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Direito fundamental ao repouso semanal remunerado:

da aplicação na remição de pena

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07/04/2006 às 00:00
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V — DO REPOUSO SEMANAL

            O trabalho do preso, embora guarde peculiaridades em relação ao trabalho em geral, aquele típico das relações empregatícias disciplinadas pelo direito do trabalho, também deve ser realizado em respeito ao complexo de condições mínimas de dignidade que permitam o exercício de atividades laborativas, sem que isto represente situação ofensiva à sua saúde e integridade física.

            O repouso semanal, ou seja, um intervalo após uma semana de trabalho, foi idealizado, neste sentido, como meio de recompor as forças do trabalhador e proteger sua higidez física e psicológica das maléficas conseqüências que poderiam advir de uma ininterrupta e estafante rotina empregatícia, como os acidentes de trabalho.

            Visando a tutelar a saúde humana, o descanso semanal do trabalho pode ser compreendido como concretizador da dignidade da pessoa humana, guardando neste princípio seu fundamento constitucional.

            Não obstante decorrer deste importante preceito normativo, também o legislador infra-constitucional seguiu rumo semelhante. Se, por um lado, a LEP exclui a aplicação da CLT ao trabalho do preso, evidentemente buscou nos princípios e valores do direito constitucional e legal trabalhista a inspiração para a disciplina do labor carcerário. Logo, podemos colher dos ensinamentos dos autores trabalhistas o fundamento do direito ao repouso semanal, que, de toda sorte, é o mesmo para todas as formas de trabalho, ainda aquelas não diretamente tuteladas pelas leis trabalhistas. Em relação ao repouso, doutrina Arnaldo Sussekind:

            "Com a instituição do descanso semanal obrigatório do trabalhador, o Estado visa, sobretudo, a eliminar a fadiga gerada pelo trabalho (fundamento biológico); possibilitar a prática de atividades recreativas, culturais e físicas, bem como o convívio familiar e social (fundamentos sociais)". [10]

            Trata-se de direito irrenunciável do apenado, já que compreendido dentro do complexo mínimo de dignidade permitida pelo Estado – através da ingerência nas relações privadas, movimento conhecido por dirigismo contratual – para o desempenho de atividade laborativa. E, como se sabe, dentro desse estatuto mínimo, não pode o trabalhador renunciar ao descanso.

            Assim, estabelece a LEP, em seu art.33, a jornada de trabalho para os internos, assegurando-lhes o descanso nos domingos e feriados.


VI — DA RAZOABILIDADE COMO "MANDADO DE JUSTIFICAÇÃO OBJETIVA DAS DISTINÇÕES" [11]

            O principio da isonomia tutelado constitucionalmente no caput e inciso I do art. 5º da Constituição da Republica impõe tratamento igualitário àqueles que se encontram na mesma situação jurídica. Tal concepção substancial de igualdade, há muito referida por Rui Barbosa com inspiração na "equality of results" do direito constitucional norte-americano, nos permite utilizar a razoabilidade, no sentido de mandado de justificação objetiva das distinções, como forma de exigir uma justificativa objetiva para tratamentos diferenciados por parte do legislador ou da administração. [12]

            Com efeito, desta breve exposição compreende-se não haver no ordenamento jurídico pátrio preceito constitucional ou legal apto a afastar a interpretação ora propugnada, uma vez que, no que concerne à justificativa do direito fundamental ao repouso semanal remunerado acima analisada, não há uma diferença substancial da atividade laborativa exercida pelo trabalhador livre daquela exercida pelo trabalhador que cumpre uma pena privativa de liberdade, apta a ensejar a discriminação deste quanto à percepção de contraprestação pelo seu trabalho – consistente não apenas na remuneração, como também na remição de pena, apurada inclusive sobre os dias de descanso.

            Igualmente, ainda que houvesse um dispositivo legal afastando expressamente a possibilidade de a remição ser computada sobre os dias de repouso semanal, diante da acepção da razoabilidade supramencionada, pouco provável seria que tal preceito normativo pudesse escapar imune à declaração de inconstitucionalidade.


VII — DO CÁLCULO DE TODOS OS BENEFÍCIOS LEGAIS SOBRE O PERÍODO DE REPOUSO

            Ora, ao mesmo tempo em que intervém nas relações laborais, impedindo que haja trabalho ininterrupto e impondo o descanso obrigatório, não pode o Estado negar ao trabalhador que todos os demais direitos que aquele, através da lei, lhe assegura, sejam conciliados com o repouso. Vale dizer, não pode o ente estatal "dar com uma mão e tirar com outra".

            Portanto, após a universalização do direito fundamental ao repouso (inclusive com previsão nos textos constitucionais, consoante assinalado acima), fixou-se rígido entendimento no sentido de que todos os demais benefícios legais do trabalho seriam calculados também sobre os dias de descanso. Assim ocorre, diuturnamente, com a remuneração, férias, etc. O trabalhador, v.g., apesar de descansar semanalmente, recebe seu salário com base em 30 dias, e não somente sobre os 20 ou 24 que efetivamente trabalhou.

            Torna-se imperativa, no campo da execução penal, a aplicação da mesma sistemática também para o benefício da remição de pena. Imposto ao preso o descanso semanal, sendo-lhe defesa a prática de atividade laborativa neste tempo, deve o Estado considerar tal período para fins de remição de pena.


VIII — DA CONTAGEM DA REMIÇÃO NA DICÇÃO DA LEP

            Com efeito, a LEP dispõe, em seu art.126, que a remição dar-se-á na proporção de "1 (um) dia de pena por 3 (três) de trabalho".

            Primeiramente, em se tratando de direito fundamental, expressão da dignidade humana e, além disso, de uma norma concessiva de direitos, devem os preceitos referentes ao trabalho do apenado, como visto, serem interpretados sempre em favor do sujeito de direitos — o homem. Logo, a expressão legal "dias de trabalho" deve ser compreendida como "dias trabalhados somados aos dias de descanso obrigatório".

            O legislador não optou por utilizar a fórmula "dias efetivamente trabalhados", o que decerto excluiria a possibilidade de remição dos dias de repouso. E, diante dessa opção legislativa, não se pode interpretar a lei — frisemos: um direito fundamental — em desfavor do indivíduo.

            Também não se pode argumentar que os demais benefícios legais utilizados como parâmetro analógico — o salário, por exemplo — são calculados com base em meses e não em dias, como a remição.

            Ora, quando um trabalhador falta um dia de serviço é descontado de seu salário a fração ideal de 1/30 (um trinta avos), e não 1/22 (um vinte e dois avos) ou qualquer outra semelhante, prova de que também o salário é contabilizado em dias, computando-se, porém, no cálculo da remuneração, os dias de repouso.

            Impende salientar ainda que o trabalhador diarista, ou mesmo o horista, tem também seu direito ao repouso remunerado assegurado pelo ordenamento jurídico.


IX — DO DISPOSTO NO ART. 28 §2º DA LEP

            A Lei de Execuções, em seu art. 28, §2º, exclui o trabalho dos apenados da incidência das leis trabalhistas, o que poderia ser argumentado contra a tese exposta no texto.

            No entanto, o simples fato da LEP ter excepcionado a aplicação da CLT ao trabalho dos apenados não retira validade da tese exposta, já que a lei somente procura disciplinar as peculiaridades do labor carcerário, como, aliás, ocorre nas diversas modalidades especiais de trabalho. Por exemplo, os regimes dos agentes públicos em sentido amplo, dos servidores públicos, dos militares, etc., todos excluídos da disciplina da CLT, também comportam o descanso semanal remunerado e prevêem o cálculo dos demais benefícios e direitos também sobre os dias de repouso.

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            Assim dispõe, na esteira do que foi exposto acerca da contagem da remuneração com base em dias, por exemplo, a Lei 8112/90, reguladora do regime dos servidores públicos federais, no capítulo I do título III (remuneração):

            "Art.44 — O servidor perderá:

            I — a remuneração do dia em que faltar ao serviço, sem motivo justificado."

            Por outro lado, cabe ressaltar que nenhuma disposição legal existente ordena o desconto dos dias de repouso do salário dos presos, o que importa em compreender que o próprio Estado admite o cômputo dos dias de repouso para fins salariais do apenado, o que deve ser aplicado também à remição.


IX — CONCLUSÕES

            1. Prevalece no direito contemporâneo, por forte influência do eminente jusfilósofo pós-positivista Karl Larenz, o movimento denominado "jurisprudência dos valores", que busca, através de uma interpretação baseada na pluralidade metodológica, traduzida na inexistência de proeminência de determinado método de interpretação sobre os outros, um maior equilíbrio entre os dois valores que estruturam toda a ordem jurídica: a segurança e a justiça.

            Nesta perspectiva, seja pela interpretação literal do artigo 126 da LEP (que não exige expressamente o dia efetivamente trabalhado para fins de remição), seja pela interpretação teleológica da LEP (verdadeiro diploma protetor do executado penalmente em face do Estado), e, sobretudo, pela interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais aplicáveis à matéria (tendo em conta, especialmente, a eficácia irradiante do direito ao repouso remunerado), a exegese proposta mostra-se calcada em sólidos fundamentos.

            2. O desrespeito do Estado Administração a tão basilar direito fundamental — repita-se: de espeque constitucional — exige uma postura combativa dos operadores do direito que militam na execução penal, com o acolhimento da tese ora defendida. A omissão do Poder Executivo em observar de forma reiterada os ditames constitucionais e legais que regulamentam a matéria deve ser submetida à apreciação jurisdicional pela via do habeas corpus, remedium juris [13] destinado a tutelar, de maneira rápida e imediata, a liberdade de locomoção.

            A disciplina do remédio constitucional autoriza, inclusive, a expedição de ofício pelos juízes e tribunais da ordem de habeas corpus, sempre que se verificar no curso do processo que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal ao direito de ir e vir (v. CPP, art. 654, § 2º). Tal dispositivo coaduna-se perfeitamente com o prestigiado dever estatal de proteção dos direitos fundamentais, segundo consectário lógico da dimensão objetiva desta relevante categoria de direitos.

            3. À guisa de conclusão, cabe relembrar o sempre atual ensinamento de Clemerson Mérlin Cléve, no sentido de que os direitos fundamentais não são concessão, não estão a disposição do Estado, não são aquilo que o Estado diz. Pelo contrário, este sim deve estar à disposição dos direitos fundamentais para buscar a sua plena concretização. [14]


NOTAS

            01

DANTAS, Ivo. Jurisdição Constitucional e a Promoção dos Direitos Sociais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey: 2003.pp. 439/442.

            02

Vide, a título exemplificativo, o RE 393175/RS.

            03

Informativo STF n.º 410.

            04

Neste sentido, DANTAS, Op. Cit, p. 440.

            05

ANDRADE, José Carlos Vieira. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976". Coimbra: Almedina, 1998, p. 165. Apud. SARMENTO, D. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In: SAMPAIO, José Adércio Leite.Op. cit. p 256.

            06

ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Galzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 508. Apud. Idem, ibidem

            07

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 3ª ed.:São Paulo: Saraiva: 1999. p. 188.

            08

Idem, ibidem.

            09

Ana Paula de Barcellos, embora tratando de princípios fundamentais, traça raciocínio análogo in BARCELLOS, A. P. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional. In BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Renovar: Rio de Janeiro: 2003. pp. 62/63.

            10

SUSSEKIND, Arnaldo et alii. Instituições de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 11ª Ed., vol. II, p.740.

            11

A expressão é de SAMPAIO. José A. Leite. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey: 2003. Retorno às tradições: a razoabilidade como parâmetro constitucional. p. 83

            12

Idem, ibidem.

            13

TOURINHO Filho, Fernando da Costa. Pratica de Processo Penal, São Paulo: 20 ed.: Saraiva: 1998. p. 583.

            14

CLÉVE. Clémerson Merlin. O Controle de Constitucionalidade e a Efetividade dos Direitos Fundamentais. In SAMPAIO. José A. Leite. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey: 2003. p. 392.
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Sobre o autor
Flávio Pavlov da Silveira

defensor público do Estado do Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVEIRA, Flávio Pavlov. Direito fundamental ao repouso semanal remunerado:: da aplicação na remição de pena. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1010, 7 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8219. Acesso em: 28 mar. 2024.

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