I — NOSSA PROPOSTA
A realidade das unidades prisionais fluminenses apresenta àqueles que militam neste meio uma indisfarçável e profunda exclusão no que tange às atividades laborativas dos internos.
Não constitui demasia enfatizar, neste ponto, que disponibiliza o Estado ínfimas vagas para que os presos possam desempenhar este tipo de atividade. Ademais, precárias são as condições de trabalho e reduzido o número de internos que auferem remuneração em razão do exercício de suas funções.
Não obstante essa realidade, a LEP (Lei n.º 7210, de 11 de julho de 1984) representou, neste contexto, um significativo avanço da dogmática penal em relação ao tratamento dos indivíduos sujeitos à pena privativa de liberdade. A maior jurisdicionalização da execução penal mereceu aplausos da doutrina mais autorizada, restando ultrapassada a visão de que tal fenômeno era algo eminentemente pertencente à seara administrativa.
Neste sentido, é correto afirmar que a LEP é um diploma protetor do penalmente executado pelo Estado, um verdadeiro Estatuto do Preso, assegurando-lhe direitos e prerrogativas (sem, contudo, deixar de lhe impor diversos deveres). Ao buscar a promoção de valores centrais no nosso ordenamento jurídico, como a dignidade da pessoa humana, representou o referido diploma legal, ao menos no campo teórico, a humanização da execução da pena.
A sistematização na Lei 7210 da disciplina da atividade laborativa desenvolvida pelo preso (arts. 28/37) e da possibilidade de remição da pena em razão do trabalho (arts.126/130) constituíram, nesta perspectiva, um significativo avanço no projeto de ressocialização do ingresso no sistema carcerário.
O presente estudo pretende sustentar a possibilidade de obtenção de remição de pena para o trabalho do preso calculada também sobre os dias de repouso ou descanso semanal, com aplicação da sistemática legal comum a qualquer atividade laborativa, como veremos.
Antes de prosseguir no exame do tema proposto, cabe fixar a premissa básica que deve nortear a compreensão e interpretação de todos os dispositivos referentes ao trabalho dos presos: a concepção do direito ao repouso semanal remunerado como direito fundamental.
II — DO DIREITO FUNDAMENTAL AO REPOUSO SEMANAL REMUNERADO
A previsão legal do repouso semanal aos domingos transformou um costume da civilização ocidental, oriundo de preceito religioso, em regra cogente. Remonta, no nosso ordenamento jurídico, conforme assinalado em termos precisos pelo Min. Sepúlveda Pertence no seu voto proferido no julgamento da ADI 1675-MC, ao Decreto 21186/32, do Governo Provisório.
A Constituição de 1934 contemplou-o como direito fundamental do trabalhador em seu art. 121, alínea "e", o que foi repetido pelo disposto no art. 137, alínea "d" da Constituição outorgada de 1937, abrindo espaço para sua regulamentação na CLT (D.L. n.º 5.452, de 1º de maio de 1943).
No entanto, a atual formatação do art. 7º, inciso XV, dispositivo constitucional que regulamenta a matéria, teve origem no art. 157, inciso VI da Constituição de 1946, onde foi disciplinada a remuneração do repouso semanal, a ser concedido preferencialmente aos domingos.
Traçado este breve histórico, cumpre destacar, conforme argutamente apontado por Ivo Dantas [01], que o mundo contemporâneo, sobretudo no período posterior a 1917 (México) e 1919 (Weimar), assistiu a uma ampliação do conceito material de constituição, no qual se deve destacar a inclusão, em seus textos, dos chamados Direitos Sociais, em cuja abrangência conceitual encontram-se os Direitos Trabalhistas consagrados nos textos constitucionais.
Com efeito, a Constituição Federal de 1988, já em seu art.1º consagra "os valores sociais do trabalho" como um dos princípios fundamentais da República. Trata-se de um dos valores que o legislador reputou como mais básicos e essenciais da nação brasileira, para o qual se devem voltar todos os Poderes Estatais.
Neste passo, lógica é a conclusão de que o ordenamento jurídico nacional protege de forma incontestável o direito ao trabalho, que encontra guarida desde o ápice do sistema jurídico — a Constituição da República — até a normativa infra-constitucional.
O Estado, compreendido como uma forma de organização da sociedade civilizada, estrutura-se em função do indivíduo, forjado para permitir o convívio humano e a agregação social. O princípio do respeito aos valores sociais do trabalho representa a vitória da concepção de que o engajamento humano às atividades laborais enriquece o tecido social e fomenta no indivíduo o sentimento de inclusão em uma comunidade. Neste sentido, compreendido dentre os fins últimos do Estado, não pode estar tal princípio senão no ápice do catálogo valorativo da legislação nacional.
Mas o legislador constituinte não parou aí. Em seguida, no Título II, denominado "Dos Direitos e Garantias Fundamentais", mais precisamente no art.6º, diz a CF/88: "são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, (...)", consagrando o direito ao trabalho como direito fundamental. A barreira de proteção de tão relevante direito, verdadeiro pilar do nosso ordenamento jurídico, importa na tutela de outros direitos fundamentais diretamente dele decorrentes, verdadeiros consectários lógicos, mas não com ele confundíveis, como o direito ao repouso semanal remunerado.
A consagração dos direitos sociais como direitos fundamentais, todavia, não é restrita aos textos constitucionais e às obras doutrinárias, encontrando ampla repercussão também na jurisprudência dos tribunais de todo país. Isto fica bem evidente, por exemplo, nas ações movidas por pessoas hipossuficientes visando à obtenção de fornecimento compulsório de medicamentos de uso contínuo em face de entes públicos, que abarrotam as varas de Fazenda Pública da Justiça Estadual e têm sido amplamente admitidas, inclusive com deferimento de antecipação de tutela, com supedâneo no direito fundamental à saúde consagrado no art. 196 da Constituição da República. Tal entendimento encontra eco em recentes julgados do STJ e do STF [02], que já rechaçaram a tese de que a norma contida no referido dispositivo é tão-somente programática, não ensejando um direito subjetivo do cidadão oponível em face do Estado.
Corrobora esta tese o entendimento esposado recentemente no RE-436996 [03], em decisão da lavra do Min. Celso de Mello, tratando, na hipótese, do direito social fundamental à educação, vazada nos seguintes termos:
"A Turma manteve decisão monocrática do Min. Celso de Mello, relator, que dera provimento a recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra acórdão do Tribunal de Justiça do mesmo Estado-membro que, em ação civil pública, afirmara que a matrícula de criança em creche municipal seria ato discricionário da Administração Pública - v. Informativo 407. Tendo em conta que a educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível (CF, art. 208, IV), asseverou-se que essa não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. Entendeu-se que os Municípios, atuando prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º), não poderão eximir-se do mandamento constitucional disposto no aludido art. 208, IV, cuja eficácia não deve ser comprometida por juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade. Por fim, ressaltou-se a possibilidade de o Poder Judiciário, excepcionalmente, determinar a implementação de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sempre que os órgãos estatais competentes descumprirem os encargos políticos-jurídicos, de modo a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional". (RE 436996 AgR/SP, rel. Min. Celso de Mello, 22.11.2005).
Assim, de acordo com o entendimento amplamente prevalente, os direitos sociais são tidos como direitos fundamentais e, por conseguinte, a restrição a tais direitos deve conter limites, sob pena de se ferir de morte a cláusula pétrea disposta no art. 60, § 4º, IV, da CR que, ao se referir a "direitos e garantias individuais", deve merecer, segundo a doutrina mais abalizada [04], interpretação extensiva ("lex dixit minus quam voluit").
Esta constatação importa em inúmeras conseqüências relevantes, notadamente no campo da eficácia e interpretação dos dispositivos garantidores de direitos humanos.
III — DA DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: UMA BREVE INCURSÃO
Os direitos fundamentais possuem eficácia mais ampla que os direitos subjetivos clássicos, cunhados há séculos pelo direito romano e que até hoje habitam as páginas do direito privado. A sistemática dos direitos fundamentais está ligada ao direito público, não podendo ficar atada ao mero sinalagma privatista, que ao direito subjetivo liga, necessariamente, um dever jurídico análogo.
Não pretendemos tolher esta importante conseqüência dos direitos humanos: a possibilidade que se confere ao seu titular de exigir deveres para o respeito do que é garantido legal e constitucionalmente ao homem. No entanto, ao lado da eficácia dos direitos humanos como direitos subjetivos (públicos, mas direitos subjetivos), lugar comum na doutrina constitucionalista mais abalizada atualmente é a concepção da denominada eficácia objetiva (ou interpretativa) dos direitos fundamentais. A dimensão objetiva complementa a subjetiva e agrega-lhe, conforme ressalta José Carlos Vieira de Castro [05], uma "mais valia", conferindo proteção reforçada a tais direitos, por meio de esquemas que transcendem a estrutura relacional típica dos direitos subjetivos. Na esteira da lição de Robert Alexy [06], o reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais não significa desprezo à sua dimensão subjetiva, mas reforço a ela.
Nesta linha de raciocínio, pela teoria da dimensão objetiva dos direitos fundamentais — adotada com pujança na Alemanha do segundo pós-guerra — à medida que os direitos fundamentais concretizam os valores nucleares de uma ordem jurídica democrática, seus efeitos não se resumem à limitação jurídica do poder estatal. Os valores que tais direitos encarnam necessitam irradiar-se para todos os campos do ordenamento jurídico, impulsionando e norteando a atuação do Legislativo, Executivo e Judiciário. Passa-se a entender, a partir daí, que não basta que os Poderes Públicos abstenham-se de violar tais direitos, exigindo-se que eles os protejam ativamente contra agressões e ameaças provindas de terceiros.
Pode-se assinalar, assim, dois efeitos marcantes da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, ambos aplicáveis ao caso em tela: 1) a eficácia "irradiante" dos referidos direitos, e 2) a teoria dos deveres de proteção.
Extremamente significativa, a tal respeito, a observação de Sarmento, tratando especificamente do primeiro dos efeitos acima arrolados:
"(...) os valores que dão lastro aos direitos fundamentais penetram por todo o ordenamento jurídico, condicionando a interpretação das normas legais e atuando como impulsos e diretrizes para o legislador, a administração e o Judiciário. A eficácia irradiante, nesse sentido, enseja a ‘humanização’ da ordem jurídica, ao exigir que todas as suas normas sejam, no momento de aplicação, reexaminadas pelo operador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da igualdade substantiva e da justiça social, impressas no tecido constitucional" ("A Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamentais": Fragmentos de uma Teoria, in Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais – Coordenador José Adércio Leite Sampaio, Ed. Del Rey – Belo Horizonte – 2003, p. 279).
Neste sentido, o legislador infra-constitucional, ao editar a Lei de Execuções Penais, estabelece relação evidente entre o trabalho do apenado e os princípios constitucionais de proteção ao labor.
Por seu turno, ao abordar o segundo efeito supramencionado, complementa o eminente constitucionalista:
"A teoria contemporânea dos direitos fundamentais afirma que o Estado deve não apenas abster-se de violar tais direitos, mas também proteger seus titulares diante de lesões e ameaças provindo de terceiros. Esse dever de proteção envolve as atividades legislativa, administrativa e jurisdicional do Estado, que devem guiar-se para a promoção dos direitos da pessoa humana." (Op. cit., p. 294)
Nesta linha de raciocínio, o não-reconhecimento do direito fundamental ao repouso semanal do trabalhador apenado no computo da remição de pena, prática reiterada da Administração Penitenciária, configura patente coação ilegal, atentatória à liberdade de locomoção do trabalhador apenado, sanável pelo manejo do habeas corpus, verdadeira garantia constitucional (art. 5º, inciso LVIII, da CRFB/88), regulamentada nos artigos 647 usque 667 do CPP.
Do exposto, assume inquestionável valor a inarredável conclusão lógica de que, se ao Estado incumbe, através de seus três Poderes, o dever de proteção dos direitos fundamentais quando estes são violados por terceiros, com muito mais razão é imposto ao Estado Juiz a correção de práticas adotadas pelo Estado Administração em franco desrespeito a tal categoria especial de direitos.
IV — DA INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DAS NORMAS TRABALHISTAS QUE TUTELAM A FIGURA DO TRABALHADOR
Não poderia um exame dos princípios constitucionais relativos ao trabalho escapar de uma interpretação sistemática da constituição, conjugando os preceitos específicos das relações de trabalho com outros que denotem o projeto desenhado pelo legislador constituinte.
Luís Roberto Barroso assinala que "a Constituição não é um conjunto de normas justapostas, mas um sistema normativo fundado em determinadas idéias que configuram um núcleo irredutível, condicionante da inteligência de qualquer de suas partes". [07]
A concepção de sistema, aplicável ao ordenamento jurídico como um todo, projeta-se sobre a Lei Maior através do princípio da unidade da constituição, que impõe ao intérprete o dever de conciliar harmonicamente seus preceitos, ainda que frutos de interesses e representantes de valores conflitantes. [08]
Neste sentido, existe profunda conexão entre o direito fundamental ao trabalho e a dignidade da pessoa humana, também erigida, pela Carta de 1988, ao patamar de princípio fundamental, e que determina a opção ideológica do Estado brasileiro, de proteção, integração e socialização do homem, bem como a proteção de sua higidez corporal e mental.
A dignidade da pessoa humana, migrando do texto constitucional, foi absorvida pelo legislador da execução penal, sensível ao espírito que a Constituição quis incutir no ideário normativo brasileiro.
Inicia o legislador da execução penal o capítulo que rege o trabalho do apenado com o seguinte preceito:
"Art.28. O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva."
De fato, a finalidade do trabalho do apenado, além de representar considerável fonte de renda para a família do preso, que tanto sofre com as repercussões econômicas da custódia de um de seus membros, deve incentivar sua ressocialização, motivando o apenado a aprender novos ofícios e se ocupar com atividades saudáveis durante sua vida carcerária, evitando que sua custódia, ao invés de representar sua reinserção na sociedade, transforme-se em uma "universidade do crime" diante de perene e degradante ociosidade.
Ademais, é lugar comum na doutrina mais autorizada [09] que a estrutura do direito fundamental pode ser delineada através de uma circunferência externa chamada de limite imanente ou âmbito de proteção, possuindo dentro de si uma circunferência menor chamada de núcleo essencial. A primeira circunferência diria respeito ao que o direito protege, ao que se descobre com base no texto e através de interpretações teleológica e sistemática. O núcleo essencial, por seu turno, seria aquilo sem o que o direito não existe, que não pode ser restringido, justificando uma tutela de proteção mais intensa.
Fixada essa premissa, podemos concluir que na restrição dos direitos fundamentais não impera a lógica do "tudo ou nada", pois existem diversas intensidades de afetação desta especial camada de direitos. A questão ganha contornos de maior complexidade em relação à ponderação porque ela envolve também a análise da constitucionalidade de normas que, por exemplo, regulamentem o exercício de direitos fundamentais conflitantes.
Vale assinalar, ainda, a propósito do tema, que a restrição ao direito fundamental pode ocorrer, com base na ponderação, tanto pelo operador do direito no caso concreto como pelo legislador, de uma forma mais abstrata, não sendo o campo dos direitos fundamentais um campo refratário a intervenções legislativas.
Com base na estrutura dos direitos fundamentais supramencionada, verifica-se que é aceitável, em determinadas hipóteses, restrição a tais direitos, atendidos os seguintes pressupostos: (1) ocorrer no âmbito do limite imanente do direito fundamental, desde que amparada por um outro valor prestigiado constitucionalmente; (2) tratar-se de matéria sob reserva de lei, não podendo ato administrativo normativo restringir direitos fundamentais; (3) respeitar ao princípio da proporcionalidade, nos três cânones em que o mesmo se desdobra (adequação ou idoneidade, necessidade ou exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito); (4) por fim, não pode atingir o núcleo essencial do direito fundamental.
Diante desse mini-roteiro que a doutrina traça quanto à restrição dos direitos fundamentais podemos concluir que a exclusão do cômputo dos dias de descanso do cálculo da remição da pena, por importar na violação do núcleo duro (ou essencial) do direito fundamental ao repouso semanal remunerado, jamais poderia vir a ocorrer.