Na esfera previdenciária tem sido corriqueira a exigência de depósito recursal equivalente a 30% do valor do débito para aqueles contribuintes que desejam ver seus recursos voluntários apreciados pelo e. Conselho de Recursos da Previdência Social – CRPS. A Secretaria da Receita Previdenciária faz aludida exigência calcada no art. 126, § 1º, da Lei nº 8.213/91.
Todavia, a despeito da previsão normativa contida em mencionada legislação, é perfeitamente possível sustentar que referida exigência é descabida e até mesmo inconstitucional.
É descabida, em primeiro, porque se pode encontrar argumentos suficientes para defender a substituição deste depósito recursal pelo arrolamento de bens.
Neste particular, é importante relembrar que o Decreto nº 70.235/72 – que rege o processo administrativo fiscal – foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 para tratar dos tributos da União, assim compreendidos como aqueles pertencentes ao Sistema Tributário Nacional. [01]
Com efeito, se se tiver como premissa a classificação pentapartite [02] das espécies tributárias, inegável será a natureza de tributo das contribuições previdenciárias, e, como tal, também ficam sujeitas às regras do Decreto nº 70.235/72, mormente em virtude da aplicação subsidiária que a este deve ser dada em relação ao Regulamento da Previdência Social (art. 304, Decreto nº 3.048/99).
Aprioristicamente, o Decreto nº 70.235/72 não previa a possibilidade de arrolamento de bens como requisito de admissibilidade de recursos em processos fiscais. Entretanto, em 19 de julho de 2002 foi publicada a Lei nº 10.522/02, que, dentre outras disposições, trouxe em seu art. 32 algumas inovações, que deixaram o art. 33 do aludido decreto com a seguinte redação:
"Art. 33. Da decisão caberá recurso voluntário, total ou parcial, com efeito suspensivo, dentro dos trinta dias seguintes à ciência da decisão.
§ 1º No caso de provimento a recurso de ofício, o prazo para interposição de recurso voluntário começará a fluir da ciência, pelo sujeito passivo, da decisão proferida no julgamento do recurso de ofício. (Incluído pela Lei nº 10.522, de 2002)
§ 2º Em qualquer caso, o recurso voluntário somente terá seguimento se o recorrente arrolar bens e direitos de valor equivalente a 30% (trinta por cento) da exigência fiscal definida na decisão, limitado o arrolamento, sem prejuízo do seguimento do recurso, ao total do ativo permanente se pessoa jurídica ou ao patrimônio se pessoa física. (Incluído pela Lei nº 10.522, de 2002)
§ 3º O arrolamento de que trata o § 2º será realizado preferencialmente sobre bens imóveis. (Incluído pela Lei nº 10.522, de 2002)
§ 4º O Poder Executivo editará as normas regulamentares necessárias à operacionalização do arrolamento previsto no § 2º. (Incluído pela Lei nº 10.522, de 2002)" (g. n.)
Percebe-se que numa atitude louvável do legislador o Decreto foi alterado pela Lei nº 10.522/02 visando justamente atenuar as dificuldades encontradas pelos contribuintes para acesso à segunda instância administrativa, que se encontrava obstaculizado em decorrência do valor excessivamente alto do depósito exigido, e que acabava contrariando inclusive princípios e garantias contidos na própria Constituição Federal.
FERNANDO AURÉLIO ZILVETI e LUIS AUGUSTO DA SILVA GOMES corroboram a assertiva, afirmando categoricamente que "referida alteração foi criada, diga-se de passagem, para atender ao atual cenário político e econômico do país, exatamente para viabilizar o acesso do contribuinte à ampla defesa administrativa, antes vedada para alguns (em pior condição financeira que outros, ferindo o princípio constitucional da isonomia), com a exigência do depósito em dinheiro no percentual de 30% do valor que se pretendia discutir". [03]
Assim, a partir da edição da Lei nº 10.522/02 é perfeitamente possível e adequada a substituição do depósito recursal previsto no art. 126, § 1º, da Lei nº 8.213/91 pelo arrolamento de bens trazido pelo novel dispositivo incluído no art. 33 do Decreto nº 70.235/72.
Amparando esta possibilidade, aliás, há reiteradas decisões da Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Algumas destas podem ser conferidas no Agravo de Instrumento nº 2003.04.01.037085-8/SC, na Apelação em Mandado de Segurança nº 2003.72.01.005317−3/SC, no Agravo de Instrumento nº 2004.04.01.005728−0/RS, e mais recentemente no Agravo de Instrumento nº 2006.04.00.000760-4/SC.
ZILVETI e GOMES reforçam mais uma vez a tese asseverando que "o Decreto nº 70.235/72 e a Lei nº 10.522/2002, que regulam o processo administrativo em geral, e a Lei nº 8.213/91, com redação dada pelo artigo 10, da Lei nº 9.639/98, combinado com o Decreto nº 3.048/99, devem ser interpretadas como um sistema único de processo administrativo fiscal. A unidade da ordem jurídica assegura a justiça". [04]
Sob um outro prisma, pode-se constatar que a exigência de depósito não poderia subsistir nem mesmo frente ao ordenamento constitucional vigente, eis que acaba afrontando princípios consagrados em nossa Carta Magna.
Validamente, o art. 5º, LV, garante o acesso ao duplo grau de jurisdição, e é preceito inarredável da Constituição Federal de 1988:
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos e ela inerentes. (g. n.)
A Carta Constitucional ainda é clara em legitimar o direito de petição independente do pagamento de taxas, posto que o art. 5º, XXXIV, "a", prescreve:
XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. (g. n.)
De feito, a exigência de depósito recursal no âmbito previdenciário para acesso ao e. CRPS, consoante se vê, além de descabido afronta princípios constitucionais como o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, e até mesmo a isonomia, e põe em xeque garantias individuais do contribuinte como o direito de petição, ao duplo grau de jurisdição e, por via oblíqua, o próprio acesso à justiça.
Este debate tem sido levado até o Superior Tribunal de Justiça, sendo que este Sodalício já teve oportunidade de se manifestar vedando qualquer possibilidade de substituição do depósito recursal pelo arrolamento de bens, sustentando ser inaplicável o Decreto nº 70.235/72 às contribuições previdenciárias. Seu precedente jurisprudencial ficou firmado no recurso especial nº 550.505.
Também o Supremo Tribunal Federal indeferiu os pedidos de liminar formulados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e pela Confederação Nacional da Indústria, que através das Ações Diretas de Inconstitucionalidades nº 1.922 e 1.976 discutiam a cobrança de depósito recursal no âmbito federal.
Mas a questão não está selada.
Em razão de alteração recente no quadro de Ministros do STF a matéria está sendo remetida para manifestação do Plenário do Pretório Excelso (RE 389.383 e RE 390.513). Acontece que desde 28/04/2004 estes processos estão com pedido de vista pelo Ministro Joaquim Barbosa. A expectativa, portanto, é que a qualquer momento haja nova decisão sobre o assunto, e, para alegria geral, espera-se que seja em favor dos contribuintes.
Deste modo, ainda resta aos contribuintes um lampejo de esperança, que devem lutar até a última instância a fim de não ver expropriado o seu constitucional direito de recorrer.
Notas
01 Art. 1° Este Decreto rege o processo administrativo de determinação e exigência dos créditos tributários da União e o de consulta sobre a aplicação da legislação tributária federal.
02 Para os defensores desta classificação, com o advento da Constituição Federal de 1988 o Sistema Tributário Nacional passou a ter cinco espécies tributárias, a saber: I) os impostos; II) as taxas; III) as contribuições sociais; IV) os empréstimos compulsórios; e, V) as contribuições de melhoria.
03 ZILVETI, Fernando Aurélio; GOMES, Luis Augusto da Silva. O Recurso Administrativo Voluntário ao INSS – Possibilidade de Arrolamento de Bens como Garantia de Admissibilidade. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, v. 106, jul. 2004, p. 11.
04 Idem, ibidem, p. 12.