O nepotismo ancora-se na ausência de uma pré-compreensão do que seja a finalidade do Estado, que, na modernidade, passa impreterivelmente por uma necessária separação entre o público e o privado. O sociólogo alemão Norbert Elias foi quem bem captou essa (ausência de) distinção, comentando inclusive a nossa precariedade cultural no que se refere à prática da nomeação de parentes para cargos públicos, ao afirmar que:
"A formação tradicional da consciência moral, a ética tradicional de apego à antiga unidade de sobrevivência, representada pela família ou clã – em suma, o grupo mais estreito ou mais amplo de parentesco -, determina que um membro mais abastado não deverá negar nem mesmo aos parentes distantes uma certa medida de ajuda, caso eles a solicitem. Assim, fica difícil para altas autoridades de uma nação recém-independente recusar apoio a seus parentes quando eles tentam conseguir um dos cobiçados cargos estatais, mesmo subalternos. Considerada em termos da ética e da consciência das nações mais desenvolvidas, essa nomeação de parentes no preenchimento de cargos estatais é uma forma de corrupção. Em termos de consciência moral pré-nacional, ela constitui um dever e, uma vez que todos a praticam na luta tribal tradicional pelo poder e pelo status, uma necessidade."
Todavia, quando levada para dentro do Estado, a satisfação dessa necessidade acaba chocando-se com a proposta trazida pelo Estado Democrático de Direito, originado a partir da Constituição Federal de 1988, que por sua vez, veio atender aos anseios de uma sociedade historicamente marcada por desigualdades e oprimida por elites que sempre se locupletaram valendo-se do Estado.
Dias atrás, a sociedade civil brasileira comemorou a decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou constitucional a Resolução n. 7 do Conselho Nacional de Justiça, determinando o fim do nepotismo no Poder Judiciário. Sem dúvida, referida decisão representou um grande passo qualitativo na evolução republicana do Estado Brasileiro, ainda mais se considerarmos que o Poder Judiciário, tradicionalmente, é aquele que mais incorporou antigas características da Monarquia, notadamente as da transmissão hereditária e vitalícia do Poder. No entanto, a árdua batalha contra o nepotismo ainda está longe de ser vencida e requer esforços ainda maiores para sua superação.
Prova do que se está a dizer foi o hercúleo esforço dos interessados em manter seus parentes nos cargos comissionados, ora recusando-se a cumprir a resolução que, diga-se, nada mais fez do que dar concretude aos princípios constitucionais vigentes, ora adotando a tática de enaltecer as virtudes intelectuais dos seus, o que teria sido cômico se acaso não tivesse sido trágico.
É justamente este apego à tradição, esta "falta de consciência da ilicitude do objeto" que nos preocupa, ainda mais numa conjuntura em que o Estado mais que nunca repõe os seus quadros mediante a realização de vários concursos públicos. Estes, mais do que nunca, requerem atenção e fiscalização, não só por entidades como a OAB, mas também pelos pleiteantes de cargos que não nasceram marcados pela insígnia do nome e por toda a sociedade que, afinal, é quem mais ganha com o preenchimento dos quadros pelos mais capazes. Sem esta atenção especial, corre-se o risco de se deixar a "ilicitude transitória" convolar-se em permanente, carimbada pela estabilidade do concurso.
Enquanto o firme passo republicano que demos não é acompanhado pela evolução da consciência ética de muitos daqueles que ainda "presentam" o Estado, tendo sido necessária a imposição do que deveria ter sido voluntário, há que se fiscalizar e denunciar eventuais desvios, a fim de que se garanta o que nas palavras John Rawls é uma exigência elementar do Estado Democrático de Direito: a de que os cargos estejam abertos a todos, em condições eqüitativas de oportunidades. Enfim, sem acompanhamento e fiscalização dos concursos públicos, a comemorada decisão do Supremo Tribunal Federal será inócua. A luz amarela da democracia está acesa.