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Sobre o exercício da advocacia por juízes leigos dos Juizados Especiais

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1. CONSIDERAÇÕES GERAIS

A prática e aplicação do direito por todos aqueles que com ele operam é um constante desafio de nosso tempo, sempre envolto com a dificultosa composição de equilíbrio entre conteúdo e forma, consoante bem adverte EROS ROBERTO GRAU, ao prefaciar a magnífica obra do Prof. JUAREZ FREITAS (1).

Por vezes, como sabido, encontramos antinomias (2) entre normas do nosso ordenamento jurídico, tendentes a - aparentemente - afetar toda a estrutura do Sistema (3). Neste momento, especial atenção deve ter o operador do direito, por ocasião da adequada interpretação e aplicação da lei na prática de seu mister.

Para tanto, deverá conhecer como ninguém todo o Sistema, ou, ao menos, os princípios retores que o animam. E isto porque, como bem sustenta JUAREZ FREITAS, todas as frações do ordenamento jurídico estão em conexão com a inteireza de seu espírito, razão pela qual concluirmos que toda e qualquer interpretação de uma norma jurídica há de, necessariamente, ser efetivada à luz dos princípios gerais, normas e valores constituintes que fundamentam todo o Sistema (4).

Deverá ele escolher qual das duas normas conflitantes prevalecerá, adotando adequados critérios de hermenêutica e interpretação, bem como, muitas vezes, o bom senso, a fim de que possa assegurar, declarar ou realizar o direito com o menor gravame possível.

No estreito campo de análise do presente estudo nos deteremos a examinar tão-somente o conflito aparente entre as normas dispostas no parágrafo único, do art. 7.º, da Lei 9.099/95 (Juizados Especiais Cíveis e Criminais) e nos incisos II e IV, do art. 28, da Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil), que, à primeira vista, poderia inviabilizar o exercício da advocacia por aqueles advogados que atuassem como Juízes leigos dos Juizados Especiais, por incompatibilidade total (5).

Confiram-se os textos dos dispositivos legais citados:

Parágrafo único, do art. 7.º, da Lei n.º 9.099/95:

"Os Juízes leigos ficarão impedidos de exercer a advocacia perante os Juizados Especiais, enquanto no desempenho de suas funções."

Art. 28, da Lei n.º 8.906/94:

"A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as seguintes atividades: [...]
II - membros de órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos Tribunais e conselhos de contas, dos Juizados Especiais, da justiça de paz, Juízes classistas, bem como de todos que exerçam função de julgamento em órgão de deliberação coletiva da administração pública direta ou indireta; [...]
IV - ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a qualquer órgão do Poder Judiciário e os que exercem serviços notariais e de registro."

O Conselho Pleno do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em sessão ordinária realizada aos 12-02-96, por maioria de votos, ao apreciar a Proposição CP n.º 4.062/95, juntamente com o Processo CP n.º 4.093/95, em que foi Relator o Conselheiro Arx da Costa Tourinho, e Presidente o Dr. Ernando Uchoa Lima, acordou "considerar que os juízes leigos estão incompatibilizados para o exercício da advocacia" (6).

Sob o fundamento de que lei posterior geral (Lei n.º 9.099/95) não derroga lei anterior especial (Lei n.º 8.906/94), entendeu o Conselho que o exercício da advocacia por aqueles que exerçam a função de Juiz leigo dos Juizados Especiais estaria incompatibilizado, de forma primária e total, "[...] incidindo a norma prevista no art. 28, inc. IV, da Lei 8.906, de 04/07/95 (EOAB). Afastada, assim, a aplicabilidade do parágrafo único do art. 7.º da Lei 9.099, de 26/09/95, por aceitação do princípio de interpretação legal de que lex posterior generalis non derogat legi priori speciali [...]." (7).

Em obediência irrestrita ao acórdão proferido pelo Conselho Pleno do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (8), o Colégio Presidencial das Subseções da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional do Estado do Rio Grande do Sul - em reunião aos 11-09-98, na cidade de Pelotas, pelos seus respectivos presidentes, editou a Carta de Pelotas, tendo aprovado, por unanimidade, dentre outras, a seguinte indicação: "[...] 7. manifestar, de forma inequívoca, de que o exercício da advocacia é incompatível com a atividade de juízes leigos e conciliadores nos Juizados Especiais".

Para resolvermos esta questão, e, assim, podermos elaborar satisfatoriamente o que nos propusemos a fazer, mister se faz, inicialmente, bem classificarmos as normas ou regras jurídicas acima mencionadas, seja no que diz respeito a sua função e amplitude de conteúdo, seja no âmbito pessoal de validez, ou extensão, ou quantificação, para, após, quiçá solucionarmos o problema da aparente antinomia.


2. BREVE E CASUÍSTICA CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS

Entre as inúmeras classificações que poderíamos atribuir às normas jurídicas, para o correto desate da controvérsia ventilada, cumpre precisarmos se referidas leis (Lei n.º 9.099/95 e Lei n.º 8.906/94), no âmbito pessoal de suas respectivas validades, são de natureza geral ou especial, para só então iniciarmos o processo de solução da antinomia entre elas ocorrente.

CARNELUTTI, em sua Teoría General del Derecho, classifica os preceitos que constituem um ordenamento jurídico em concretos ou abstratos. Concretos, seriam toda vez que a norma jurídica se dispõe, em tese, a um caso existente. Abstratos, quando a regra se dispõe, ao contrário, a um caso possível, ou seja, para todos os casos existentes em que se manifestem a possibilidade considerada. As normas jurídicas concretas, por sua vez, também poderiam ser denominadas específicas ou especiais, ao passo que as abstratas se denominariam genéricas ou gerais (9).

Neste sentido, ressalvada a enorme divergência sobre este tema (10), que não diz respeito com o nosso propósito, poderíamos afirmar que o direito objetivo divide-se em geral e especial (11). Por direito geral entenderíamos "o conjunto de normas ordinariamente aplicáveis a todas as relações jurídicas da mesma natureza ou o direito que regula todo um vasto grupo de relações." Já o direito especial poderia ser caracterizado como "o conjunto de regras estabelecidas para certas e determinadas relações, entidades e instituições, por serem mais apropriadas à natureza das mesmas relações ou às circunstâncias exclusivas destas instituições." (12).

O direito especial, ainda na análise de CUNHA GONÇALVES, não é uma exceção, mas sim uma especificação, um desenvolvimento ou complemento do direito geral, determinado, inclusive, pela qualidade das pessoas ou classes sociais, com corpo autônomo de princípios, com orientação e espírito próprios, sendo, portanto, um direito novo ou com características diversas e específicas (13). BOBBIO afirma que "lei especial é aquela que anula uma lei mais geral, ou que subtrai de uma norma uma parte da sua matéria para submetê-la a uma regulamentação diferente (contrária ou contraditória)" (14).

KARL ENGISCH, na sua monumental obra Einführung in das Juristische Denken (15), traduzida para o português com o título de Introdução ao Pensamento Jurídico, já afirmava que a casuística constituía a configuração da hipótese legal que circunscreve particulares grupos de casos na sua especialidade própria, ou seja, como complementado em outra obra, a concreção específica, através da regulação de uma matéria mediante a delimitação e determinação jurídica em seu caráter especial de um número amplo de casos bem descritos, evitando generalizações amplas com as que significam as cláusulas gerais (16).

Ambas as leis (Leis n.º 9.099/95 e 8.906/94) têm caráter imperativo, haja vista serem regras de condutas sociais, que ordenam sempre, impondo obediência a determinado preceito. No caso específico do parágrafo único, do art. 7.º, da Lei n.º 9.099/95, podemos considerá-lo como norma negativa, ao impor certo limite jurídico ao exercício da atividade advocatícia, embora mediatamente possa ser considerada permissiva, uma vez que, em tese, autoriza o exercício da advocacia pelos Juízes leigos, desde que não o seja perante os Juizados Especiais. De qualquer forma, como bem salientado por CUNHA GONÇALVES, "mesmo as verdadeiras normas permissivas só se entendem em relação a um imperativo precedente, que limitam ou suprimem, e, por isso, ficam sendo normas negativas [...] Em suma, o juridicamente permitido não é conteúdo das leis, mas é um espaço vazio por entre as normas, e no qual os indivíduos podem livremente mover-se. É o lícito jurídico." (17).

Ambas as disposições aparentemente conflitantes são, igualmente, normas coativas, ao usarem a fórmula "ficarão impedidos" (18) e "é incompatível" (19).

É norma modificativa o parágrafo único, do art. 7.º, da Lei 9.099/95, ao estabelecer especialidade para o caso regulado nos incisos II e IV, do art. 28, da Lei n.º 8.906/94, impedindo aos Juízes leigos de exercerem a advocacia perante os Juizados Especiais, enquanto no desempenho de suas funções, e, ao mesmo tempo, permitindo a atividade da advocacia desde que os Juízes leigos não a exerçam diante dos Juizados Especiais.

Importante salientar que do caráter imperativo da regra social resulta logicamente a sua generalidade e abstratividade, ambas como características essenciais: "Lex est commune praeceptum" na definição de PAPINIANO (20). Essa generalidade, por outro lado, é precipuamente objetiva, isto é, malgrado a lei seja aplicável a todos os casos idênticos aos nela previstos, somente o é àquelas pessoas que estejam abrangidas nos mesmos casos ou se encontrem nas mesmas condições (21).

DUPEYROUX, autor da famosa monografia que introduziu a teoria da impessoalidade da norma jurídica, intitulada Da Generalidade da Lei, relativizou a concepção dessa generalidade, afirmando que esta, por sua vez, transmuda-se em impessoalidade da lei: "a lei é geral, afirma-se, quando determina sem consideração de pessoa, ainda que tenha em mira, expressamente, certa categoria de pessoas ou de fatos." (22).

Feita essa breve e despretensiosa classificação, possível nos é afirmar que a Lei 9.099/95 é norma geral, mas em seu dispositivo legal do parágrafo único do art. 7.º possui norma de caráter especial, uma vez que essa regra é estabelecida para determinadas situações específicas. Já o EOAB, Lei n.º 8.906/94, é norma de caráter especial, detendo em seus incisos II e IV do art. 28 norma de conteúdo genérico, eis que aplicável a uma vasta gama de relações da mesma natureza.

Cabe a nós, então, analisarmos e ensaiarmos uma sistematização da eventual e aparente antinomia criada entre essas duas normas, sufragando, dentro de nossos estreitos limites, a solução para o desate da questão posta.


3. CRITÉRIOS PARA A SOLUÇÃO E SUPERAÇÃO DA APARENTE ANTINOMIA

Já são de todos conhecidos os três critérios tradicionais para a solução de antinomias criadas em determinado ordenamento jurídico: cronológico, hierárquico e da especialidade (23).

LÊNIO LUIZ STRECK, um dos poucos a tratar da matéria ora versada, após cuidadosa exposição acerca do problema e das regras para (re)solução das antinomias, afirma que o Estatuto da OAB é uma norma especial - anterior -, ao passo que a Lei dos Juizados Especiais é uma norma geral - posterior - (24).

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Segundo essa colocação, teríamos a seguinte hipótese, graficamente:

NAE   

    NPG

NORMA ANTERIOR ESPECIAL   

    NORMA POSTERIOR GERAL

(Lei n.º 8.906/94)   

    (Lei n.º 9.099/95)

Qual delas deve prevalecer, no que com a outra for incompatível, segundo as tradicionais técnicas para a solução das antinomias?

Conforme acentua JUAREZ FREITAS, neste caso, teríamos a ocorrência de uma antinomia de segundo grau, que se dá especificamente entre os próprios critérios que teríamos para solvê-las, devendo ser utilizado, mais do que nunca, o critério da hierarquização para a mais adequada solução do conflito. Assim, segundo o sistema tem hierarquizado, o critério da especialidade é superior, porque se entende, como FRANCESCO FERRARA, que o direito especial "é un sistema autonomo di principi elaboratosi per un particolare attegiamento di certi rapporti" (25).

Segundo a lição de BOBBIO, essa antinomia, criada pelo relacionamento entre uma lei geral e uma lei especial, segundo a maior ou menor extensão do contraste entre as duas normas, seria do tipo total-parcial, significando que quando aplicarmos o critério da lex specialis não acontecerá a eliminação total de uma das duas normas incompatíveis, mas somente daquela parte da lei geral que é incompatível com a lei especial: "Por efeito da lei especial, a lei geral cai parcialmente" (26).

Logo, a partir da premissa elaborada acima, fácil concluirmos, sem contudo afirmarmos a validade desta conclusão para o caso concreto, que a regra para bem resolver a questão é a da norma especial, que tem, precipuamente, o condão de prevalecer sobre a de caráter geral: lex specialis derogat generali. Uma vez existindo aparente antinomia entre a regra geral e a peculiar, específica, esta tem a supremacia. Preferem-se as disposições que se relacionam mais direta e especialmente com o assunto de que se trata: In toto jure generi per speciem derogatur, et illud potissimum habetur quod ad speciem directum est - "em toda disposição de Direito, o gênero é derrogado pela espécie, e considera-se de importância preponderante o que respeita diretamente à espécie", conforme PAPINIANUS, apud Digesto, liv. 50, tít. 17, frag. 80, citado por CARLOS MAXIMILIANO (27).

Entende-se, deste modo, que a Lei n.º 8.906/94, de direito especial, se sobrepõe à Lei n.º 9.099/95, de direito geral, afastando, por conseqüência, toda e qualquer incompatibilidade entre elas eventualmente existentes, logo, impedindo aos advogados que exerçam a função de Juiz leigo perante os Juizados Especiais o exercício regular da atividade advocatícia.

Outra, no entanto, foi a análise elaborada pela pesquisa solicitada pelo Dr. Artur Ludwig, e realizada por Carla Maria Petersen Herrlein (28), embora partindo de uma premissa falsa, haja vista ter entendido que a decisão do Conselho Pleno do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil sobre a proposição CP 4.062/95, apreciada juntamente com o processo CP 4.093/95, afirmou que a Lei 9.099/95 é lei especial, e não geral, como deveria ser, para bem adequar-se ao princípio invocado na ementa acima referida (29). Conforme conclusão da pesquisa, "a lei n.º 9.099/95, que é posterior, e que possui dispositivo incompatível com o EOAB, que é lei mais velha, revoga estas disposições em contrário de maneira tácita, vigindo, então, o que dispõe a Lei n.º 9.099/95 - lei mais nova - sobre o assunto"(30).

Essa conclusão foi tomada, ao que se infere da pesquisa, com fundamento único e exclusivo no critério cronológico (31), que é utilizado para quando duas normas incompatíveis são sucessivas, preponderando a lei posterior sobre a lei anterior, no que com ela for incompatível - lex posterior derogat priori -, ou seja, havendo incompatibilidade entre as novas disposições e as precedentes, revogam-se as mais antigas (32).

Nesse sentido, a disposição normativa da Lei dos Juizados Especiais (parágrafo único, do art. 7.º,) revogou (33), tacitamente, o dispositivo previsto no EOAB (incisos II e IV, do art. 28,) (34), uma vez existente a flagrante incompatibilidade entre os dois textos, devendo prevalecer a dos Juizados Especiais, possibilitando o exercício da advocacia para aqueles advogados que atuem perante os Juizados Especiais como Juízes leigos, excetuada a atuação nos próprios Juizados.

No entanto, pode acontecer que em determinada antinomia possam ser aplicados mais de um desses critérios concomitantemente, e, em outros, nenhum desses autorizem a mais adequada solução (35), como ocorre no caso vertente.

A conclusão do Dr. Lênio Luiz Streck é esta, entendendo que resta inviável o uso das "técnicas clássicas-convencionais" para solvermos referida antinomia (36).

Adotando os princípios constitucionais do acesso à Justiça e do devido processo, sustenta que a disposição do art. 28 do EOAB é regra restritiva de direitos, não guardando a devida razoabilidade no sistema, uma vez que, ao considerar incompatível o exercício da atividade advocatícia com a função de Juiz leigo dos Juizados Especiais, "restringiu indevidamente direitos de um determinado número de advogados", tornando inviável os Juizados Especiais (37).

Assim, valendo-se do princípio da proporcionalidade e do paradigma da principiologia constitucional, afirma que "[...] do sopesamento entre as duas normas tidas como antinômicas, prevalece àquela que vai ao encontro da construção de condições de possibilidades de um melhor acesso à Justiça aos cidadãos." (38), ou seja, prevalece a Lei dos Juizados Especiais, que autoriza aos Juízes leigos, enquanto no exercício de suas funções perante os Juizados Especiais, a atividade advocatícia, ressalvada a hipótese de atuação nos próprios Juizados.

Como se vê, o critério utilizado para a solução deste conflito - da proporcionalidade (39) -, ou, como preferimos, de sobredireito (40) ou de hierarquização axiológica (41), foi, sem dúvida, o mais adequado, guardando sintonia com as melhores regras de interpretação e solução de antinomias no ordenamento jurídico.

No entanto, dadas as dificuldades para bem classificarmos as referidas normas jurídicas, e ao sabor do debate, suponhamos que a Lei n.º 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais, não fosse caracterizada como lei geral, e sim lei especial. Portanto, a hipótese que seria ensejada é a de uma colisão entre duas normas especiais, não contemporâneas:

NAE   

    NPE

NORMA ANTERIOR ESPECIAL   

    NORMA POSTERIOR ESPECIAL

(Lei n.º 8.906/94)   

    (Lei n.º 9.099/95)

Assim verificado, devemos iniciar a difícil tarefa de solução do conflito ocorrente. Para tanto, existindo conflito entre NORMA ANTERIOR ESPECIAL X NORMA POSTERIOR ESPECIAL, urge realizarmos o estudo dos seguintes critérios para, ao final, de forma segura e adequada, solucionarmos a hipotética incompatibilidade.

O primeiro deles, insuficiente para solvermos a antinomia, é o cronológico (lex posterior) (42). Neste critério, que serve para quando duas normas incompatíveis são sucessivas, a regra geral é a de que a lei posterior prepondera sobre a anterior, no que com ela for incompatível - lex posterior derogat priori -, ou seja, havendo incompatibilidade entre as novas disposições e as precedentes, revogam-se as mais antigas (43). Em princípio, tudo muito fácil. Decorre que a disposição legal do parágrafo 2.º, do art. 2.º, da Lei de Introdução ao Código Civil, é expressa ao afirmar que a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. Assim, tomado-o como remédio para a solução da antinomia, poderíamos afirmar que a Lei 9.099/95 não tem especial prevalência sobre a Lei 8.906/94, porque "[...] a disposição especial (de uma lei) não revoga a geral (de outra), nem a geral revoga especial, senão quando a ela, ou ao seu assunto, se referir, alterando-a" (44).

O segundo critério, da lex superior, qual seja, o que determina preponderar a norma hierarquicamente superior - lex superior derogat inferior - não tem aplicação no caso concreto, uma vez que ambas as normas estão no mesmo patamar - formal - de hierarquia e de comando.

O terceiro critério, da lex specialis, segundo o qual existe choque entre uma norma geral com uma norma especial - lex specialis derogat generali -, do mesmo modo, não tem aplicação na hipótese em exame, eis que ambas as leis são especiais.

Viu-se, neste sentido, que os três critérios tradicionais apresentados por BOBBIO não ajudam na solução da antinomia, uns por serem não aplicáveis, outros por serem insuficientes.

Os critérios para as soluções das chamadas antinomias de segundo grau, as quais se dão entre os próprios critérios utilizados para solvê-las (45), também não têm incidência na análise ora perpetrada, uma vez que não há colisão entre critérios.

O caso é que temos, em tese (46), duas normas de mesmo nível, sucessivas no tempo, havendo a necessidade do operador do direito resolver a antinomia, eliminando a parte incompatível de uma das duas, o que enseja reconhecermos a necessidade de observância do dever de coerência por parte deste, como sustenta BOBBIO (47). Como então ser coerente?

Aqui também, a solução para a antinomia criada está com a aplicação daqueles metacritérios utilizados pelo Prof.º JUAREZ FREITAS e aplicados pragmaticamente no exame do Dr. Lênio Luiz Streck, acima analisados (48), e que nos permitimos não reproduzir para evitar tautologia.

Ademais, como já assinalamos, e este é o dado mais importante, ainda que a Lei 9.099/95 fosse norma especial, a característica especificadora do parágrafo único, do art. 7.º, teria o condão de relativizar os efeitos (49) dos incisos II e IV, do art. 28, da Lei n.º 8.906/94, norma de conteúdo genérico, embora seja o EOAB norma de natureza e caráter especial.

Transposta esta tertúlia acadêmica, cabe a nós verificarmos, antes de esboçar a nossa tese para a solução - superação - da antinomia posta pelo cotejo dos comandos legais referidos, o que a doutrina tem entendido a esse respeito.

Parte da doutrina que nos foi possível pesquisar restringiu-se tão-somente a repetir os dizeres da norma específica, prevista no parágrafo único, do art. 7.º, da Lei n.º 9.099/95, sem analisar as conseqüências que essa norma eventualmente lançou sobre a anterior disciplina legal prevista no EOAB (50) .

Em contraposição, a questão ora enfocada por outra parte da comunidade jurídica mereceu análise diversa, malgrado a solução dada seja diversa da por nós elaborada, como se verá,. Uma das mais completas obras que se preocupou com os comentários à Lei dos Juizados Especiais, salvo melhor juízo, foi a do Magistrado de Santa Catarina, Prof.º JOEL DIAS FIGUEIRA JÚNIOR. A análise com que laborou o ilustre doutrinador teve conteúdo mais teleológico e social do novel instituto, eis que entendeu ser preocupante a deliberação do Conselho Federal da OAB, à medida que dificulta sobremaneira o bom funcionamento destes novos juizados (51).

Já sob outro enfoque, ainda com JOEL DIAS FIGUEIRA JÚNIOR, não vislumbrou incompatibilidade alguma entre os dispositivos legais, eis que esta incompatibilidade está primariamente relacionada com a ocupação de "cargos ou funções vinculadas direta ou indiretamente a qualquer órgão do Poder Judiciário e os que exercem serviços notariais e de registro", o que lhe autorizou concluir que "auxiliares não são funcionários públicos, mas sim um privado (no caso, os Conciliadores e Juízes leigos) temporariamente encarregado de uma função pública." (52). Ressaltou, igualmente, que o fato de ter deixado de fora da aludida Resolução a figura do Conciliador, gerou incoerência e equívoco, no entanto, assim finaliza a sua análise: "enquanto não superado o tormentoso impasse criado pelo Conselho Federal da OAB, cuja orientação está sendo passada para todos os Conselhos Seccionais, aos advogados cabe a observância da regra." (53).

LUIZ GONZAGA DOS SANTOS, ao comentar o parágrafo único, do art. 7.º, da Lei 9.099/95, refere que a vedação criada por esse dispositivo legal, no sentido de que estão impedidos de exercer a advocacia os Juízes leigos perante o Juizado Especial ao qual estiverem afetos, "indicia a intenção do legislador de não criar cargo público remunerado para essas atividades.". Dessa premissa, finaliza e conclui que "se assim fosse, o impedimento para o exercício da advocacia seria total, nos moldes como hoje é estabelecido no Estatuto do Advogado." (54).

Em outro trabalho, LUIZ CLÁUDIO SILVA, reafirmando o preceito coibitivo legal do parágrafo único, do art. 7.º, da Lei 9.099/95, e por entender acertadamente que a lei específica referida veio regulamentar as funções do Juiz leigo, encerra esposando que o Estatuto da Ordem dos Advogados não tem aplicação neste caso (55).

DOMINGOS DAVID JÚNIOR, após retrospecto da principais inovações do EOAB, aponta alguns pontos negativos do Estatuto. Entre estes, que no seu entender não só merece ser ressaltado, mas certamente modificado, anuncia o que incompatibiliza o exercício da advocacia com os que "[...] exerçam função de julgamento em órgãos de deliberação coletiva da administração pública direta e indireta", em síntese, a todos aqueles que tenham função de julgamento (56). Parafraseando RUBENS APPROBATO MACHADO, atual Presidente da Ordem dos Advogados de São Paulo, afirma o articulista que a incompatibilidade gerada seria de tal forma absurda, que seria um flagrante "desperdício à classe dos advogados em prejuízo dos interessados" (57).

Comentando o Estatuto da OAB, PAULO LUIZ NETTO LÔBO, em nota de rodapé, filia-se à corrente que entende poder uma lei ordinária derrogar outra (o Estatuto), criando outro tipo especial de impedimento, embora concordando que não seja a melhor escolha (58).

Conforme mencionamos desde o início do presente trabalho, nossa empreitada destina-se à solução, ou antes, superação, da aparente antinomia ocorrente entre alguns dos dispositivos legais das leis citadas. Ocorre que esta antinomia, que não é só aparente por ser solúvel, mas, antes de tudo, aparente porque tem simples aparência de antinomia, deve ser de tal modo incompatível e inconciliável, de sorte que seja inviável aplicarmos ambas as leis às mesmas relações jurídicas e fatos jurídicos concretos, sem ofensa da lógica e com resultados práticos divergentes.

Importante deixarmos assentado que o pretendido pelo legislador da Lei n.º 9.099/95, que manifestou sucessivamente duas vontades aparentemente antagônicas, nada mais foi do que declarar nesta lei que ela é uma especificidade (59) à regra geral (60), ou seja, a advocacia não será incompatível com o exercício da importante função de Juiz leigo dos Juizados Especiais, será, tão-somente, para a atividade advocatícia perante os próprios Juizados Especiais, enquanto o Juiz leigo estiver no desempenho de suas funções (61).

Com essa colocação, desde logo assentaremos uma premissa, que, ao final, servirá de conclusão ao nosso estudo: o novo texto legislativo veio a modelar especificamente a cláusula geral, como que adequando-a e aprimorando-a ao novo sistema próprio de declaração, realização e assecuração da justiça, em atitude extremamente corajosa e indiscutivelmente promissora da tão almejada ordem jurídica justa, abarcando, precipuamente, aquela que se convencionou denominar de litigiosidade contida.

Se é certo, como afirmamos, que a Lei 9.099/95 é norma geral, que contém em seu dispositivo legal do parágrafo único, do art. 7.º, norma de caráter especial, uma vez que essa regra é estabelecida para determinadas situações específicas, e que o EOAB, Lei n.º 8.906/94, é norma de caráter especial, detendo em seus incisos II e IV, do art. 28, norma de conteúdo genérico, eis que aplicável a uma vasta gama de relações da mesma natureza, cumpre agora verificarmos, na dicção de FRANCESCO FERRARA, se seguindo à lei especial (Lei n.º 8.906/94), que detém cláusula geral, uma lei geral (Lei n.º 9.099/95), que veio a especificar aquela cláusula geral, seria posto em dúvida se a primeira regra não tolera os desvios e exceções da segunda ou aceita mantê-las, coordenando-as com o novo princípio (62).

A solução, ainda com FERRARA, evidentemente que dependerá da seguinte indagação a cerca do caso concreto: Qual o nexo que existe entre as duas normas citadas e o fundamento da nova disposição legal?

Inicialmente cabe a nós examinarmos, a fim de bem precisar se há ou não revogação da norma especial (63) pela norma geral (64) que lhe sucedeu, o necessário grau de incompatibilidade que eventualmente poderá existir entre ambas as normas e, ainda, o grau de repetição de preceitos, que tornaria a norma anterior - Lei n.º 8.906/94 - inútil e obsoleta.

É corrente para os jurisconsultos, que sempre que vem à lume uma lei, traz ela em seu bojo todos os preceitos de leis especiais anteriores. Nada mais relativo, como facilmente podemos constatar do nosso Código de Processo Civil, que manteve em vigência várias disposições do antigo Código de Processo de 1939, reguladas em leis esparsas (65). Assim, estariam revogados os incisos II e IV, do art. 28, da Lei 8.906/94 em virtude do parágrafo único, do art. 7.º, da Lei 9.099/95? Se revogados, é caso de abrogação ou derrogação?

Da análise crítica e valoração axiológica dos preceitos tidos como incompatíveis, podemos verificar que o legislador ao elaborar a Lei 9.099/95, de forma expressa, procurou especificar que as situações ali tratadas de maneira alguma teriam o condão de revogar as disposições do EOAB.

Em primeiro lugar, porque a extinção de uma norma jurídica, pela revogação, dá-se pelo preestabelecimento do termo final de sua vigência (66), ou pela declaração expressa do legislador, através da a) afirmação de que está revogada determinada lei (67), b) da incompatibilidade da lei nova com a lei antiga (68), ou c) da regulamentação por inteiro da matéria tratada na lei anterior (69). Na hipótese em tela, nenhum desses modos de revogação ocorreu.

Em segundo lugar, porque a problemática suscitada, ao que nos parece, resta contornada com a simples lembrança da lição de CUNHA GONÇALVES, de que o gênero revogação, que é caracterizado como a supressão da força obrigatória de uma norma, no todo (abrogação), ou em parte (derrogação), exige para o seu reconhecimento a incompatibilidade entre duas normas como conseqüência normal, já porque não podem subsistir conjuntamente leis antagônicas sobre os mesmos fatos, sem que uma delas seja nociva ou inútil, já porque o legislador não se daria ao trabalho de fazer uma lei, se as anteriores fossem totalmente profícuas e satisfatórias (70).

Ora, o imperativo legal específico do parágrafo único, do art. 7.º, da Lei n.º 9.099/95, tem conteúdo cogente negativo, ao impor certo limite jurídico ao exercício da atividade advocatícia. Por outro lado, ainda que imponha certo limite ao exercício da atividade advocatícia, também é certo que estabelece de forma implícita e lógica a autorização para que os Juízes leigos exerçam a atividade advocatícia, desde que não o façam perante os Juizados Especiais, quando no desempenho de suas funções. Melhor seria, como afirmou acuradamente DOMINGOS DAVID JÚNIOR, que a Lei 8.906/94 tivesse ratificado o dispositivo do anterior Estatuto da OAB, que reconhecendo como relativa a incompatibilidade, impedia o profissional de atuar apenas na área de atividade do órgão ao qual estava subordinado e quanto às matérias desses órgãos (71). Como isso não ocorreu, cabe aos operadores do direito o desate da "controvérsia" criada.

Assim, não é caso de revogação da lei - abrogação ou derrogação -, uma vez que o dispositivo legal do art. 28, II e IV, da Lei n.º 8.906/94, não foi suprimido de sua força obrigatória, seja pela eliminação ou anulação pura e simples, seja pela substituição das suas disposições no todo ou em parte (72).

Isto não importa, de forma alguma, na rejeição dos argumentos expendidos por aqueles já mencionados autores que sobre o presente tema escreveram, e concluíram pela não aplicabilidade do EOAB. Muito pelo contrário, estamos corroborando-os, de maneira a bem resolver a questão. Única ressalva que fazemos é no que diz respeito a nossa técnica de investigação e esclarecimento do debate travado, que, como visto, partiu de premissa diversa dos demais.

Avulte-se, mais uma vez, que o parágrafo único, do art. 7.º, da Lei n.º 9.099/95 não revogou parte da disposição legal dos incisos II e IV, do art. 28, da Lei n.º 8.906/94, mas apenas e tão-somente subtraiu à aplicação de certo limite jurídico ao exercício da atividade advocatícia, continuando esta legislação - Lei n.º 8.906/94 - a vigorar normalmente para as situações não excepcionadas. A adequada interpretação e aplicação da lei deve estar restrita à especialidade trazida pela lei posterior - Lei n.º 9.099/95 -, pois as disposições da lei anterior - Lei 8.906/94 -, por serem gerais e comuns ao determinarem quais as atividades são incompatíveis com a advocacia, devem ser mantidas, sendo tão-somente limitadas pela exceção (73).

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Sobre o autor
Danilo Alejandro Mognoni Costalunga

advogado em Porto Alegre (RS), professor de Direito no UniRitter, membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), especialista em Direito Processual Civil, mestrando em Direito pela PUC/RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTALUNGA, Danilo Alejandro Mognoni. Sobre o exercício da advocacia por juízes leigos dos Juizados Especiais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 31, 1 mai. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/825. Acesso em: 2 nov. 2024.

Mais informações

Texto publicado na Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), ano 2, n.º 5, 2.º semestre/1998, pp. 185/199, e na Revista de Informação Legislativa, outubro/dezembro 1998, Senado Federal, Brasília, ano 35, n.º 140, pp.213/225, entre outras

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