PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO (ou IMEDIATIDADE), NO EXAME DA MATÉRIA DE FATO PELO JUIZ E PELO TRIBUNAL

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26/05/2020 às 15:58
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O ideal é o que o juiz que colheu a prova oral, julgue o processo. Ele teria, teoricamente, melhor possibilidade de interpretar a prova colhida. O problema está em se reconhecer nisso um atributo mítico, uma clarividência para ver além do que está escrito

PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO (ou IMEDIATIDADE), NO EXAME DA MATÉRIA DE FATO PELO JUIZ E PELO TRIBUNAL

 

José Ernesto Manzi[1]

 

Tanto o Processo Civil, quanto o Processo do Trabalho têm buscado como princípio informador a instrumentalidade das formas, privilegiando a celeridade processual e a redução das formalidades, desde que atingidos os fins, desde que preservados o devido processo legal e a ampla defesa. 

Da instrumentalidade das formas e sua conjugação com a celeridade está se avultando a observância ao princípio da oralidade, princípio este que está ligado tanto à forma da produção da prova (privilegiando a concentração na audiência judicial), quanto o convencimento direto dos fatos (presidindo o juiz a produção da prova oral, seu conhecimento sobre o respectivo conteúdo será direto e não mediado). 

É evidente que disto decorrem ônus consideráveis que vão desde uma maior fidelidade das atas aos atos praticados (o juiz deve registrar com fidelidade o que ocorreu e o que foi dito na audiência e solucionar imediatamente eventuais controvérsias, aparar excessos, impedir a má-fé), como, também, uma maior eficácia na produção dessa prova, porque, sendo o juiz o destinatário, deverá buscar sair convencido do ato e, se não estiver, poderá determinar diligências ou oitivas complementares. Apenas na impossibilidade de fazê-lo ou quando a prova caber exclusivamente à parte, é que deverá julgar segundo o ônus da prova. 

É lógico que nisso não há nenhuma novidade. O processo judicial nasceu oral e também informal. Com o tempo, foi se formalizando e perdendo a oralidade, porque ao contrário da prova documental ou da prova pericial, a prova oral toma tempo do juiz e, quanto maior a quantidade de processos, menor o tempo destinável a um único processo. 

Nosso sistema é misto, porquanto, ao mesmo tempo em que privilegia a oralidade como ideal, contenta-se com sua preterição em favor da celeridade e da eficácia. A par disso, dispõe o art. 362 do NCPC que as provas orais serão produzidas em audiência, quiçá para obter a redução do número de atos e, com ela, a celeridade processual. 

Quanto à oralidade é preciso recordar que, “A Lei determina que “certos atos processuais devam ser praticados “oralmente”, em presença do Juiz. Nos momentos capitais do Processo, deve predominar a palavra falada, sem prejuízo dos documentos constantes dos autos. Mesmo sendo oralmente realizados determinados atos, estes são registrados graficamente”.[2]

Decorrem da oralidade a concentração (menor número possível de audiências, atos e termos processuais), imediação (desnecessidade de intermediários entre o juiz e os que produzem a prova ou os interessados em sua produção; é o contato direto do magistrado), a identidade física do juiz (o juiz que instruiu deve decidir, para se beneficiar das vantagens da imediação) e mesmo a irrecorribilidade imediata das decisões interlocutórias, evitando-se o intuito procrastinatório, com concentração dos eventuais recursos.  

Nesse quadro é que se apresenta o princípio da imediatidade ou da imediação que “permite um contato direto do juiz com as partes, testemunhas, peritos, terceiros e com a própria coisa litigiosa, objetivando firmar o seu convencimento, mediante a busca da verdade real.[3]

Para os que labutam na área trabalhista, é preciso fazer um parêntese: o foco aqui é o direito processual, daí porque tratamos do princípio da imediação (ou imediatidade). Em termos processuais, o princípio da imediação ou imediatidade decorre do disposto no art. 446, II, do Código de Processo Civil que impõe ao juiz o dever de proceder direta e pessoalmente à colheita das provas na audiência, ou seja, ouvir as partes em interrogatório ou depoimento, inquirir testemunhas com formulações próprias ou dos procuradores das partes, pedir esclarecimentos aos peritos e assistentes técnicos. Coisa diversa é o instituto pertencente ao Direito Material do Trabalho, quando fala da justa causa e que exige imediatidade na aplicação, ou seja, que não haja perdão tácito, pela demora em punir. 

Assim, pelos que comungam dessa doutrina, o princípio da imediatidade ou da imediação é consubstanciado na colheita da prova oral direta, efetiva e concretamente realizada pelo juiz de primeiro grau, sem intermediários, para possibilitar que ele sinta o pulso de quem relata, capacitando-se para a motivação da sua decisão, motivação essa que deve, precisamente por tais circunstâncias, ser, a princípio, prestigiada pelos Tribunais.

Esse prestígio da avaliação que o juiz de 1º grau fez sobre as provas é consequência lógica do próprio princípio do convencimento motivado. Aliás, o antigo CPC falava em livre convencimento motivado e o atual fala apenas em convencimento motivado, o que indica 

Em sede trabalhista esse princípio vem indicando o privilegiar da interpretação que o juiz de 1o grau dá aos fatos demonstrados de forma oral (prova oral), como se extrai dos seguintes arestos, de forma exemplificativa:

 

Prova. Apreciação. Apreciação da prova oral. Princípio da imediatidade. Art. 131 do CPC. No sistema processual vigente, a lei consagrou a independência do Juiz na indagação da verdade e na apreciação das provas, apenas exigindo que o Magistrado fique adstrito aos fatos deduzidos na ação, à prova desses fatos nos autos, às regras legais específicas, às máximas da experiência e à indicação dos motivos que determinaram a formação de seu convencimento. Trata-se do princípio da persuasão racional ou do livre convencimento motivado, previsto no artigo 131 do CPC. Quando se trata de avaliação da prova oral produzida na origem, esta Instância Revisora deve prestigiar a valoração do conjunto probatório feita pelo MM. Juiz monocrático, que, por ter contato direto com os depoentes, está em melhores condições de estabelecer o grau de credibilidade das testemunhas a partir de seu comportamento e de sua atitude em audiência, o que os autos não têm como registrar.[4]

 

 

TRT 3 Região. Prova. Valoração. Princípio da imediatidade da prova. Prestígio à avaliação probatória efetuada em primeiro grau de jurisdição. A tarefa de se atribuir novo valor à prova oral em sede de recurso é bastante complexa, porque o juiz que preside ao interrogatório, em contato direto com as partes, prepostos e testemunhas, detém, em regra, maior possibilidade para valorar os depoimentos colhidos, pois possui melhores condições de observar o modo dúbio ou esquivo como elas respondem às perguntas, bem assim suas expressões corporais, o que lhe permite chegar bem mais próximo da verdade. No corpo do acórdão: “É oportuno lembrar que a tarefa de se atribuir novo valor à prova oral em sede de recurso é bastante complexa, porque o juiz que preside ao interrogatório, em contato direto com as partes e testemunhas, detém, em regra, maior possibilidade para valorar o depoimento colhido, pois possui melhores condições de observar o modo dúbio ou esquivo como elas respondem às perguntas, bem assim sua expressões corporais, o que lhe permite chegar bem mais próximo da verdade. De tal modo, deve ser prestigiado, como regra, o convencimento do juiz que colheu a prova. Ele, afinal, é que manteve o contato vivo, direto e pessoal com as partes e testemunhas, mediu-lhes as reações, a segurança, a sinceridade, a postura. Aspectos, aliás, que nem sempre se exprimem, que a comunicação escrita, dados os seus acanhados limites, não permite traduzir. O juízo que colhe o depoimento" sente "a testemunha. É por assim dizer um testemunho do depoimento. Seu convencimento, portanto, está melhor aparelhado e, por isso, deve ser preservado, salvo se houver elementos claros e contundentes a indicar que a prova diz outra coisa. Destarte, não emergindo dos autos nenhum elemento que induza à convicção de que se equivocou o Juízo monocrático na valoração da prova coligida aos autos, deve prevalecer o convencimento por ele firmado, com base nas vivas impressões colhidas por ocasião da produção das provas. É que o critério de valoração da prova atende, também, ao princípio da imediatidade do contato com a prova produzida.[5]

 

 

O mesmo no Tribunal que integro (o Tribunal Regional do Trabalho da 12a Região), no mesmo sentido:

 

PRINCÍPIO DA IMEDIATIDADE. PROVA ORAL. A análise da prova oral PRINCÍPIO DA IMEDIATIDADE. PROVA ORAL. A análise da prova oral deve levar em consideração o princípio da imediatidade, ou seja, é no momento da oitiva dos depoimentos que se revela o controle imediato da audiência instrutória pelo Juízo, oportunidade em que acompanha as reações e as emoções das partes e das testemunhas diante dos questionamentos efetuados para somente então formar o convencimento acerca dos fatos para proferir a sentença.[6]

  

PRINCÍPIO DA IMEDIATIDADE. APLICAÇÃO AO PROCESSO DO TRABALHO. (...) PRINCÍPIO DA IMEDIATIDADE. APLICAÇÃO AO PROCESSO DO TRABALHO. PROVA ORAL. O exame do conjunto probatório oral pela instância revisora há de ser regido pelo princípio da imediatidade, considerando o fato de o magistrado de primeiro grau, ao manter contato direto com as testemunhas, ter melhores condições de aquilatar a probidade e a verossimilhança das informações colacionadas aos autos pelas partes e testemunhas em seus depoimentos.[7]

 

No mesmo sentido, a Justiça Comum, tanto em matéria civil, quanto em matéria penal:

 

Cruzamento. Semáforo. Sinal desfavorável. Culpa. Ônus da prova. Princípio da imediatidade do magistrado. Recurso adesivo. «1. Ônus da prova: a autora não logrou provar suficientemente a conduta culposa imputada à ré (inobservância ao sinal vermelho e transposição de cruzamento em alta velocidade), prevalecendo, ao final do exame da prova, a versão defensiva, de que o acidente ocorreu por culpa exclusiva da vítima (condutor do veículo segurado). Homenagem ao princípio da imediatidade do Juízo no contato com as partes e na produção da prova.[8]

 

Interdição. Prodigalidade. Alegação de perda do entendimento acerca do dinheiro e comprometimento da capacidade para a prática de atos jurídicos após submissão a incisão cirúrgica cerebral. Interditanda que conta 70 anos. Impressão pessoal do magistrado versus prova pericial. Prevalência da última. Dignidade da pessoa humana. CF/88, art. 1º, III. CPC, art. 1.177. CCB/2002, art. 1.767, V. «Impressão pessoal do magistrado conduzindo à procedência do pedido. Reforma do julgado, à luz da prova técnica. Laudo pericial conclusivo pela plena capacidade da requerida. Declaração do médico que realizou a cirurgia, no sentido da inexistência de enfermidade. Prestígio ao princípio da imediatidade do juiz da causa que deve ceder diante da complexidade técnica da questão em foco e da primazia dos valores constitucionais em jogo, nominadamente, a liberdade e a dignidade humana(...)[9]

 

INDENIZATÓRIA. DANOS MORAIS. AGRESSÃO FÍSICA. PROVA. MOMENTO. TESTEMUNHAS. PRINCIPIO DA IMEDIATIDADE DA PROVA. Nos termos do art. 455 do CPC , a audiência é una e não sendo possível a conclusão no mesmo dia, o juiz designará nova data para o seu prosseguimento. Assim, tendo sido juntados os documentos antes de encerrada a audiência, não há falar em juntada de provas a destempo, pois nos termos do art. 28 da Lei 9.099 /95, a audiência é o momento adequado para a colheita da prova. Provado nos autos que a autora agrediu a ré Cristiane, que revidou em defesa da sua integridade, não há falar em danos morais indenizáveis sofridos pela autora. Valoração da prova oral colhida feita pelo juízo a quo que deve ser mantida, considerando o princípio da imediatidade. Sentença de improcedência do pedido e procedência do pedido contraposto mantida. RECURSO DESPROVIDO.[10]

 

APELAÇAO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. ATROPELAMENTO. INDENIZAÇAO. Fato ocorrido na entrada do pátio de rodoviária. Vítima que atravessa repentinamente na frente de ônibus. Motorista que havia, momentos antes, parado para passagem de pedestres e que possivelmente foi surpreendido com a conduta repentina da vítima. Versões distintas para o mesmo fato. Pronunciamento do "non liquet "pelo magistrado sentenciante, que foi quem colheu a prova oral. Princípio da imediatidade na colheita da prova oral, a justificar a valorização da sensibilidade do magistrado que presidiu a instrução. Prova insuficiente da culpa do motorista. Sentença mantida. Apelo não provido.[11]

 

 

Minha posição quanto ao tema sempre foi um pouco mais restritiva, como se vê do aresto e se poderá concluir pela leitura deste artigo:

 

PRINCÍPIO DA IMEDIATIDADE. VALORAÇÃO DA PROVA ORAL. O princípio da imediatidade traduz que o Magistrado que instruiu o feito possui a vantagem de sentir os gestos, a fala e o comportamento das testemunhas no momento do depoimento, e a partir daí, aliado às suas experiências, formar seu convencimento acerca das controvérsias existentes. Somente verificado erro grosseiro na interpretação da prova oral ou nas conclusões que dela se possam extrair, deve o juízo revisor alterar o julgado, quanto aos substratos fáticos em que foi erigido. Embora o juízo a quo não tenha o monopólio da última palavra sobre a prova oral, deve ser privilegiado o seu entendimento, salvo se a análise crítica das provas indicar, de forma cristalina, outro norte.[12] 

 

 

A sucessiva aplicação do princípio da imediatidade, cada vez mais comum, bem como, o fato de que os tribunais de segunda instância constituem a última possibilidade de revisão da matéria de fato, instigou-me a examinar o tema, diante da possibilidade de se ter criado um dogma questionável (o da infalibidade do juiz de primeiro grau quanto ao exame da prova oral), aliado a uma postura acrítica dos juízos recursais (que invocando o dogma, para não examinar a prova com profundidade e manter a sentença sem maiores encômios), com graves riscos para a segurança jurídica, desrespeito ao duplo grau (que é uma garantia material e não apenas formal) e, no plano filosófico à  justiça das decisões e também à respectiva correção do ponto de vista lógico e racional.  É possível também se afirmar que a própria qualidade das sentenças pode sofrer piora, na medida que, a preocupação com a possibilidade de revisão, faz com que o juiz aprimore tanto a colheita da prova, quanto a demonstração das razões de seu convencimento. 

Aliás, o próprio princípio do convencimento, por exigir motivação segundo critérios racionais, logicamente regulados e controláveis, não pode ser reduzido à total discricionariedade do juiz, quanto ao conteúdo e as origens da convicção acerca da matéria de fato.  

É na motivação, construída sem generalizações (valoração complexiva) e sem retórica vazia (com argumentação falaciosa e genérica, com o uso de afirmações universalmente aceitas, mas pouco identificáveis com o caso concreto) é que se permite verificar a diferença entre o convencimento MOTIVADO e arbítrio. 

Valoração complexiva é a que se permite afirmar que “o conjunto da prova” leva a concluir que isso, ou que aquilo, mesmo que, haja declarações díspares e o juiz não tenha se dado ao trabalho de afirmar porque escolheu uma determinada versão, em detrimento de outra, ou se preferiu estabelecer uma terceira via, por conta própria. Nesse caso, não houve apreciação real da prova, tanto que, se a decisão fosse colocada em outro processo, que tratasse do mesmo tema, poderia passar despercebido o transplante indevido. O que vale para qualquer processo, não vale para nenhum processo (art. 489, § 1º, III, do CPC).

O art. 489, II, do CPC, exige que o Juiz examine as questões de fato e de direito. Se o juiz der aos fatos uma interpretação subjetiva e divorciada da prova dos autos, a forma como interpretará o direito se tornará secundária. Na realidade, sequer estará apreciando a lide posta, mas fatos construídos por ele próprio. 

Ora, o juiz toma ciência dos fatos a partir das provas. As partes não podem apenas alegar, devem provar o que alegaram. Contudo, isso tem uma função, que é a formação da convicção do juízo (e aqui afirmo juízo e não apenas juiz) sobre os fatos ocorridos, sobre os quais se suplica a aplicação das normas.  Se o juiz pudesse julgar, sem examinar com profundidade as provas produzidas, tanto com relação à validade, quanto à forma e conteúdo, o próprio princípio do contraditório se tornaria uma falácia, uma garantia meramente formal e a instrução probatória, um teatro com desfecho imprevisível. 

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Em outras palavras, o convencimento do juiz não é livre, é motivado, de forma que, não desvincula o juiz de observar as regras legais atinentes à prova, bem como, de demonstrar que se utilizou de critérios racionais, coerentes e de correção lógica, tanto ao examinar as provas dos autos, como ao indicar as razões de prevalência de determinadas provas sobre outras e também do raciocínio (o “iter”) utilizado para chegar à conclusão quanto à matéria de fato. Se o juiz pudesse formar livremente seu convencimento, isso poderia implicar em avaliação subjetiva e arbitrária da prova.

Se a avaliação pudesse ser subjetiva, o próprio juízo de revisão, feito nos recursos, seria de duvidosa validade e necessidade, porque apenas substituiria o arbítrio do juiz de primeiro grau, que dirigiu a produção da prova e a coletou, com o arbítrio da maioria do órgão colegiado  que julgou o recurso, não sendo possível se afirmar qual deles seria menos nefasto para as partes litigantes. 

O convencimento implica na possibilidade de o juiz escolher, dentre os elementos de prova, aqueles que o convenceram, desde que, indique as razões pelas quais os demais elementos não o convenceram, ou foram subavaliados. É livre no sentido de opor-se à prova legal ou taxada, em que a valoração é previamente estabelecida na norma. Livre não pode ser interpretado como sinônimo de subjetivo, ou a lei não imporia o dever de motivar. 

É exatamente na avaliação meramente subjetiva e arbitrária da prova, que reside o perigo do uso extremado do princípio da imediatidade.  Quando o juiz não justifica os critérios de avaliação da prova, de forma racional e lógica, faz prevalecer sua intuição ou subjetividade. Quando o tribunal não tem critérios lógicos que possam ser submetidos à crítica, mas, mesmo assim, afirma a superioridade avaliativa do juiz que colheu a prova, igualmente se utiliza de um critério subjetivo. 

O que o juiz sentiu, mas não pode (ou não quis explicar) só se sustenta em uma revisão, a partir de um preconceito positivo sobre sua capacidade de julgar, com afirmações como “está mais apto”, “esteve mais próximo na colheita da prova” etc., que é utilizado em algumas decisões recursais, como fundamento para manutenção de sentença de primeiro grau, sem maiores exames da prova produzida, ou apenas como reforço argumentativo.    

O temor é que se tenha atribuído ao juiz de 1o grau um atributo metafísico, que lhe permite não apenas decidir de forma intuitiva (e não dedutiva), como ainda não justificar adequadamente sua decisão (a celeridade tem apontado decisões que se referem ao “conjunto da prova”, por exemplo), porquanto, embora a motivação das decisões judiciais seja imperativo legal (e constitucional), diante da impossibilidade de balizamento de conteúdo, existe ainda uma esfera subjetiva sobre o que está motivado e o que não está, a que não se pode acrescer uma prevalência da esfera igualmente subjetiva sobre a própria análise do conteúdo da prova. 

Nesse sentido, a advertência de Taruffo:

 

“L’esperienza quotidiana è piena di valutazioni non vincolate, che tuttavia sono o aspirano ad essere attendibili, fondate, valide, controllabili, ossia, in una parola, razionali. Per rendersene conto basta considerare che non esiste solo la razionalità deduttiva delle dimostrazioni matematiche, ma anche la razionalità delle argomentazioni logiche, delle conoscenze empiriche, delle scelte discrezionali fondate su “buone ragioni”, e che questa razionalità fonda e giustifica innumerevoli scelte e decisioni anche importantissime. In questa direzione è possibile pensare ad una valutazione dele prove che sia non solo libera, ma anche razionale, e che anzi sia razionale proprio perché è libera da vincoli di altra natura...”[13]

 

Esse temor é duplo: primeiro atribuir-se ao juiz uma possibilidade de avaliação meramente subjetiva da prova; depois, considerar que o Tribunal deve privilegiar essa avaliação, por estar o juiz de 1º grau mais preparado para examinar a prova, criando-se a presunção de que sempre o faz corretamente, o que, por si só, dispensa um maior cuidado com a fundamentação da decisão judicial, tanto em primeiro grau, quanto na Corte Recursal.   

De fato, o princípio da imediatidade aplicado de forma extremada consideraria uma inaptidão do Tribunal (ou uma aptidão reduzida) para reexaminar provas orais, o que evidentemente não encontra respaldo no nosso ordenamento, ou não faria sentido a existência do duplo grau de jurisdição, em matéria de fato, quando se pode sustentar, quando muito, que o Juiz de primeiro grau teve a vantagem da proximidade na colheita da prova, o que deve ser apenas mais um fator para a formação do convencimento do colegiado e não a única fonte para o estabelecimento dos contornos fáticos da controvérsia. 

Falo em aptidão e não em competência, porque os Tribunais não se dizem incompetentes, mas afirmam a maior aptidão do juiz que presidiu a colheita da prova oral para examiná-la. Há ainda os que sustentam a necessidade de uma alteração legislativa, afirmando que o nosso sistema estaria ultrapassado, mencionando, como exemplo, o Direito Espanhol, onde a apreciação da prova oral é de exclusiva alçada de primeiro grau.  

Vários problemas precisam ser considerados quanto à razão principal da invocação do princípio da imediatidade, qual seja, a maior proximidade do juiz com a prova. 

primeiro que a identidade física fora da área penal constitui exceção não regra, de forma que, o contato do juiz sentenciante com a prova oral, tem a mesma distância do contato do tribunal com a mesma prova, ou seja, a intermediação dos atas de audiência. Afirmar-se, portanto, de forma absoluta, que o juiz sentenciante teve contato imediato com a prova, pode constituir um equívoco grave. 

segundo é a constante colaboração de assessores na elaboração de minutas de decisões judiciais, o que, também coloca em dúvida a possibilidade de efetiva apreensão direta pelos sentidos do julgador de fatos que não estejam totalmente retratados nos autos.  Afirmar assim, que o sentenciante presenciou linguagem não verbal, alterações na voz, nervosismo etc., quando esses fatos não estão retratados na ata e, ainda que estivessem, demandariam conhecimento específico, o tempo decorrido entre a audiência e a sentença, tudo sem prejuízo da identidade física é um salto insustentável de argumentação. 

terceiro, como mencionei, é uma capacidade de dirigir a produção da prova oral, interpretá-la e utilizá-la que, muitas vezes o magistrado não possui e nem busca possuir, porque criou-se a ideia de que tais conhecimentos são empíricos ou inatos, quando são, em verdade, altamente especializados. Explico: a grande maioria dos magistrados nunca estudou técnicas de entrevista e interrogatório (matérias complexas e ainda pouco conhecidas nas universidades brasileiras),  psicologia do testemunho (são poucos os juristas afetos à interdisciplinaridade), que há formas corretas de inquirir sem induzir resposta, de escutar, de eliminar ruídos de comunicação,  de interpretar a linguagem verbal e não-verbal, conhecer os processos da memória desconhecendo, por exemplo, de considerar que a memória é afetada pelo tempo e que há formas de aquisição, retenção e recuperação da memória (a falta desse conhecimento induz a ideia de que a memória é estática, como uma fotografia, o que é absolutamente falso). Com base nisso, consideram a supermemória da testemunha uma vantagem e não um indício de eventual preparação. 

Há duas hipóteses que precisam ser consideradas quanto ao tema e nenhuma delas indica como consequência a primazia do juízo de 1º grau sobre a prova oral a) os motivos que levaram o juiz a decidir de determinada maneira estão estampados nos autos, possibilitando que a realidade obtida de forma imediata se converta em conhecimento mediato, com igual teor, possibilitando um juízo crítico de revisão. Nesse caso, há indicação expressa com base na prova dos autos, de todos os fatores que contribuíram para a formação da convicção do juiz. Esta é a decorrência natural do princípio do convencimento motivado (no antigo CPC, Livre Convencimento Motivado); b) há motivos que não podem ser explicados e que se sobrepõem ao que está escrito nos autos, por uma razão intuitiva. Embora os juízes não lhes deem esse nome, como possuem o dever legal de motivar, reconhecer que podem indicar conclusões, sem explicitar as origens traduz a possibilidade de reconhecer que possam se valer da intuição, ou seja, de conhecimento não mediado pelos sentidos. O que não é mediado pelos sentidos do juiz de 1o grau, não pode ser explicado e, não podendo ser explicado, não pode ser apreendido pelos ‘juízes de 2o grau, o que implica na igual impossibilidade de explicação e indica como solução motivatória apenas a alusão genérica à “imediatidade”.  

De fato, tomemos o conceito de intuição. A intuição é a “1.
Faculdade ou ato de perceber, discernir ou pressentir coisas, independentemente de raciocínio ou de análise." Ex. sua i. lhe dizia que era melhor partir" 2. 
fil.:  forma de conhecimento direta, clara e imediata, capaz de investigar objetos pertencentes ao âmbito intelectual, a uma dimensão metafísica ou à realidade concreta. A intuição tem, assim, a pretensão de apreender tanto o metafísico, como a realidade concreta sem precisar discernir, ou seja, raciocinar logicamente. 

Para o filósofo francês Henri Bergson, a intuição significa a apreensão imediata da realidade por coincidência com o objeto[14]. Em outras palavras, é a realidade sentida e compreendida absolutamente de modo direto, sem utilizar as ferramentas lógicas do entendimento: a análise (recorte da realidade, mediação entre sujeito e objeto) e a tradução (composição de símbolos linguísticos ou numéricos que, analogamente a primeira, também servem de mediadores). Isto é, a intuição é uma forma de conhecimento que penetra no interior do objeto de modo imediato sem o ato de analisar e traduzir. Para ele, ambas são meios falhos e artificiais de acesso a realidade. Somente a intuição pode garantir uma coincidência imediata com a realidade sem símbolos nem repartições.

Uma das maneiras pelas quais se evidenciaria a finitude de nosso conheci- mento pode ser encontrada nas afirmações feitas por Kant logo no início da Crítica da Razão Pura, mais exatamente, nas passagens introdutórias da Estética transcendental. Kant afirma que, para podermos conhecer, objetos têm de nos ser dados, precisam nos afetar, o que supõe, por nossa parte, a capacidade de sermos afetados, capacidade essa que ele estipula denominar sensibilidade. Segundo Kant, “todo pensamento tem de se referir seja diretamente, seja por rodeios, em última análise, a intuições, por conseguinte, em nós, à sensibilidade, porque, de outra maneira, nenhum objeto pode nos ser dado. (CRP, 19/B-33). Entretanto, a doutrina mais abalizada afirma que o próprio Kant rejeita a possibilidade de uma intuição intelectual e que para nós, homens, seres racionais finitos, o ter intuições supõe a possibilidade de objetos nos afetarem, e, por isso, intuições em nós só poderiam ser sensíveis, ou seja, dependeriam de nossos sentidos. 

A essa altura alguém poderia objetar, sim, mas a própria experiência do juiz, sua formação moral, cultural etc., poderiam sempre lhe dar uma visão antecipada das hipóteses mais prováveis e desprezar essa possibilidade seria desprezar tanto as capacidades extrajurídicas do juiz, seus conhecimentos interdisciplinares, como, também, suas experiências como julgador em casos análogos. 

Ora, embora o juiz tenha intuições derivadas inclusive de suas experiências pessoais, que o fazem suspeitar de que algo tenha ocorrido da mesma forma que costuma ordinariamente ocorrer e verificou em dezenas de processos, certo é que, sempre haverá a possibilidade da exceção a impor que o juiz se valha também dos sentidos ordinários fixados sobre a prova colhida. Como ao juiz é imposto aplicar a lei ao caso concreto, desprezar as peculiaridades do caso concreto, inclusive a possibilidade de que ele se afaste dos casos semelhantes é abreviar indevidamente o juízo crítico que é próprio de sua atividade técnico-jurídica, de índole nitidamente intelectual (o que põe em dúvida tanto o que não pode ser apreendido pelos sentidos, quanto o que não pode ser explicado racionalmente). 

É verdade que não se pode afastar totalmente a influência da intuição nos juízos humanos. Ela, de alguma forma, permite nos foquemos dentro de um número limitado de alternativas e essa limitação permite um aprofundamento do exame respectivo (quanto maior a extensão, menor a compreensão e vice-versa). Se não houvesse esse filtro inicial, a tomada de decisões seria muito mais tormentosa e difícil. 

Por outro lado, é preciso lembrar que, ainda  que tomemos decisões cruciais instantâneas, quando o tempo impediria a utilidade de uma ponderação e exame mais criterioso e moroso; evidentemente que isto se dá na esfera estritamente pessoal (comer ou não comer, atravessar ou não a rua, comprar ou não um produto etc.). Em sede judicial, é preciso que o juiz busque dominar os insights decisórios, que podem decorrer de seus preconceitos e estarem infirmados por uma prova que ele se recusa a ver. 

Assim, a intuição não pode ser valorizada como um atributo mágico em nenhuma questão que exija a ponderação de dados, princípios, normas e direito alheio. Imagine-se, então, tomá-la como um dom metafísico – inexplicável racionalmente - que dá ao juiz que obteve imediatamente a prova uma vantagem intransponível sobre os juízes que a adquiriram mediatamente. Se isso fosse efetivamente correto, não seria necessária a redação de atas de audiência, bastando que fosse registrada a conclusão do magistrado sobre as provas orais produzidas. Seria também absolutamente inócua a possibilidade de recurso quanto a matéria de fato, o que tornaria a aplicação do direito direcionável pelos fatos subjetivamente apreendidos.   

Doutra feita, a intuição também não pode ser a bússola definidora das questões postas pelo juiz, sob pena da própria produção da prova ser dirigida a confirmar as intuições e não as alegações (o juiz considerará irrelevante ou impertinente aquilo que estiver fora do campo da solução por ele intuída), assim como sua análise (desprezando-se o que contraria o insight inicial). O juiz guiado exclusivamente por sua intuição, embora não o saiba, perdeu a racionalidade e partirá da solução para as questões, ou seja, após decidir se o autor ou o réu está com a razão, permitirá apenas as provas que acenem nesse sentido e extrairá delas conclusões que confirmem sua suspeita inicial, somente ela. 

Isso, infelizmente, tem se verificado com bastante frequência, principalmente na limitação da produção de provas, que não encontra respaldo em lei. Não raro, se vê o indeferimento da oitiva de partes ou de testemunhas, ou a limitação na produção dessa prova, por juízes que se dizem suficientemente convencidos, sem indicar, de maneira objetiva, quais os motivos que tornaram a prova pretendida inútil, ou procrastinatória. 

Quando isso ocorre, o contraditório torna-se meramente formal, permitindo-se a produção de provas dentro dos limites da lei, mas sem qualquer possibilidade de que elas influam verdadeiramente na formação do convencimento do juiz, ou seja, um embuste com substância e finalidade apenas aparentes.  O contraditório material garante o direito de alegar, de se opor às alegações, de provar, de se opor às provas e, principalmente, de ver suas alegações e provas consideradas efetivamente no momento da decisão, ainda que para serem racionalmente refutadas. 

A intuição dos juízes não é superior à intuição dos demais seres humanos. O reconhecimento de uma qualidade destacada a esse atributo, outorgando-lhe uma aura metafísica, no que se refere aos juízes de primeiro grau pelo tribunal, por seu turno, implica uma intuição secundária, igualmente funesta, impedindo ou abreviando o juízo crítico em sede revisional, sobre as conclusões do juiz que colheu as provas. O tribunal intui que o juiz utilizou bem sua intuição e nem examina as provas que justificariam a eventual reforma da sentença. 

Como asseverou a Professora Doutora Marta Elisabeth Deligdish (Univali – SC e também Notária), em debate que tivemos sobre esse tema: “Esse agir do julgador, reverenciado pela segunda instância que deveria ser a última que apreciaria a prova (sob o argumento de que ...o juiz que está mais perto da prova, tem mais condições de dizer qual é a melhor prova, embora não o diga de forma racional, mas intuitiva) leva a dois grandes problemas: a) a arbitrariedade ou até a possibilidade de corrupção do julgador...pois se ele não precisa demonstrar porque a prova o convenceu, então ele pode se convencer de qualquer coisa; e, b) o descrédito do jurisdicionado, que produziu a prova e que sequer foi mencionada no julgado.”. 

O termo reverenciado é muito próprio, pois criou-se uma reverência quase sacramental ao pronunciamento do juiz originário sobre as provas, mesmo quando ele não explica as razões do seu convencimento, o que faz lembrar a advertência de Taruffo ao falar sobre a motivação deficiente ou incompreensível ao homem comum, que daria a impressão de que o Judiciário age por razões ocultas.

Aliás a exacerbação dessa ideia  - de que a prova se destina principalmente ao juiz de primeiro grau (ou somente a ele) -  tem gerado um constante afastamento de preliminares de cerceamento de defesa, sob o fundamento de que, sendo o juiz o destinatário da prova, a ele cabe deferir ou indeferir, livremente, as provas que considerar inúteis ou protelatórias. Como já tive a oportunidade de afirmar em processo judicial, a convicção que permite o indeferimento de prova é de índole objetiva e não subjetiva, ou seja, o juiz precisa demonstrar racionalmente as razões pelas quais a prova pretendida, apesar de situada nos limites facultados à parte, seria inútil ou protelatória. Se, bastar ao juiz se dizer convencido, indeferir livremente as provas e o Tribunal entender haver limites meramente discricionários para a atividade probatória, será sempre acidental a solução outorgada pelo Direito ao caso concreto.  

 

Nesse sentido, tomem-se também os arestos a seguir, sem qualquer crítica (apenas como exemplificativos de tese), sendo o último de minha autoria e o primeiro em que participei como segundo juiz:

 

CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. O poder diretivo do processo autoriza que o Juiz indefira as provas que entender desnecessárias ou meramente protelatórias, conforme dispõe o art. 130 do CPC. Com efeito, objetivando a prova formar a convicção do julgador, que é seu destinatário, torna-se inútil prosseguir a instrução processual quando, à vista dos elementos constantes dos autos, o Magistrado entenda suficientemente esclarecida a questão posta sob análise.[15]

 

CERCEAMENTO DE DEFESA. INDEFERIMENTO DE PROVA. O juiz pode desatender as alegações das partes ou até interpretar de forma livre, ainda que motivada, a prova produzida, mas não pode obliterar nem a exposição das razões, nem a produção da prova, salvo nos casos de impertinência ou desnecessidade. Prova impertinente é a que não tem utilidade para subsidiar a decisão sobre as questões controversas, por versar sobre matérias que situam-se fora da litiscontestação. Prova inútil é a que desserve para que o juiz decida, por residirem nos autos elementos suficientes para que o juiz o faça e mais, o faça de forma favorável à parte que pretendia produzi-la. A conjugação do indeferimento de prova pertinente não atingida por preclusão, com a rejeição da própria pretensão, no exame do mérito, induz o reconhecimento do prejuízo e, com ele, da nulidade processual. O devido processo legal substantivo é garantia constitucional que contém em seu bojo: possibilidade de alegar, possibilidade de contrariar, possibilidade de provar e ver consideradas as alegações e as provas, no momento da decisão (ainda que para afastá-las). Obstar o direito de alegar, de contradizer ou de provar, ou ignorar o alegado e o provado, sem razões lógicas ou jurídicas suficientes, é ferir de morte a garantia constitucional, tornando a decisão judicial arbitrária e incompatível com seu caráter democrático.[16]

 

A conjugação dessas teses se levada às últimas consequências conduziria ao absurdo de se ter como prova, aquilo que o juiz permitir seja produzido (ao seu exclusivo arbítrio), com conclusões que ele pode extrair com absoluta liberdade de interpretação, sob a aura da imediatidade (imediação) 

É verdade que o princípio da imediatidade existe e não pode ser totalmente derrogado, porque pode ser um elemento de reforço para a decisão dos casos difíceis, em que a prova está dividida e que a simples solução pelo ônus traduziria uma heresia jurídica com risco grave de injustiça. Assim, sua aplicação deve ser a “ultima ratio”, ou seja, a última possibilidade, jamais uma forma de exonerar-se o juízo revisional ordinário de exercer seu dever de reexaminar as provas, com a mesma racionalidade que se deve exigir do juiz de 1o grau.  Se o juiz de 1o grau examinou as provas de forma técnica e racional, é preciso que o Tribunal também o faça, até para verificar se tais atributos realmente foram observados. Como não é dado ao juiz de 1o grau utilizar-se de coringas como “o conjunto da prova”, “a prova do réu é superior à do autor” – sem justificar, não é dado ao tribunal invocar o princípio da imediatidade para eximir-se de praticar o juízo crítico e detalhado sobre a prova produzida, confrontando-a tanto com as alegações das partes, quanto com os fundamentos da sentença, para ver se ela merece ser confirmada, ou deve ser reformada. 

Nessa toada, é possível concluir, de plano, que o princípio da imediatidade não pode ser utilizado sem observância ao princípio da PERSUASÃO RACIONAL e também ao PRINCÍPIO DA MOTIVAÇÃO.

Tanto persuasão racional, quanto a motivação impedem os arroubos da subjetividade (que indica, inclusive, a razão da colegialidade dos órgãos revisores). O juiz pode ter tido uma intuição sobre o que aconteceu no processo, mas, se tiver que demonstrar racionalmente como foi persuadido, essa intuição acaba atuando na aquisição da prova e não na sua utilização. 

Explico: se o juiz considera que as testemunhas estão mentindo, pode realizar diligências complementares, ouvir testemunhas referidas, fazer acareações etc., o que não pode é, sem demonstrar racionalmente as razões, desconsiderar os depoimentos ou valorá-los reduzidamente, pelo grave risco de estar equivocado. Nessa esteira há juízes que desconsideram que pequenas variações nos depoimentos são indicativos de que a visão pessoal do testigo não foi alterada por sugestão de terceiros e preferem visão unívoca sobre fatos complexos, exatidão de datas etc., incompatíveis com as interferências que sofremos tanto na aquisição, quanto na manutenção das memórias. 

Todos esses fatores afetam a produção, mas também a utilização da prova oral, tanto em primeiro, quanto em segundo grau. Exigem que se verifique a coerência dos relatos, a contextualização dos relatos, as corroborações periféricas (confronto com todos os outros elementos dos autos para ratificar ou retificar) e a existência de detalhes oportunistas a favor do declarante, como ressalta uma das maiores autoridades nesse tema: 

A persuasão racional impõe ao juiz guiar-se por instrumentos lógicos (“ex ante et ex post” ou seja, tanto antes, na instrução, quanto depois, na decisão). Impõe que recolha toda a prova e não apenas parte dela (as partes servem-se do contraditório, apontando luz e sombra para os elementos que confirmem/infirmem as teses; o juiz deve seguir outro caminho, indicar o que o convenceu e as razões que afastam as teses contrárias que poderiam emergir das provas) e confronte os diversos elementos trazidos à colação, demonstrando os motivos da prevalência de uma versão sobre outra, com base em argumentos que, não detendo natureza metafísica (dentre eles a intuição), possam ser objeto de exame crítico em sede recursal.[17]

 

Também o princípio da motivação das decisões judiciais, ao impor ao juiz não apenas convencer-se, mas convencer das razões de seu convencimento, culminam por impor-lhe barreiras ao próprio convencimento, ou seja, se o  juiz se convenceu, mas não conseguirá convencer daquilo que se acha convencido, terá que rever suas conclusões, até encontrar alguma hipótese que seja justificável racionalmente e possa ser mantida pelo Tribunal e esse exercício, por si só, já afastará seus arroubos psíquicos.

Por isso, Tarufo, no artigo supra referido, trata esse tipo de motivação de “motivação misteriosa”:

 

Si ha valutazione misteriosa tutte le volte che il giudice non esplicita i criteri, le scelte e le inferenze che giustificano la valutazione compiuta sulle prove ed il conseguente giudizio sul fatto. Il problema riguarda evidentemente la motivazione della decisione in fatto, e non sorgerebbe se venisse puntualmente seguito l’orientamento della Cassazione ricordato in precedenza, che richiede una motivazione puntuale e completa su tutti gli elementi di prova.

 

 

Como afirma o mestre italiano, quando o juiz não explicita os critérios, as escolhas e as inferências que justificam a valoração que realizou sobre as provas e, por consequência o juízo sobre os fatos, se está diante de uma valoração misteriosa. Por isso, na Itália, a Suprema Corte adotou a exigência de uma motivação pontual e completa sobre todos os elementos de prova. O Brasil está começando a trilhar um caminho contrário e preocupante. Primeiro, ao considerar que o juiz de 1º grau é o destinatário da prova, podendo, livremente, indeferi-las como bem entender, sem justificar. Depois, ao permitir que uma avaliação complexiva (como se referiu alhures) e uma própria valoração indefinida (ou insuficientemente rigorosa) sobre as provas, permitam que o contraditório, a ampla defesa, a imparcialidade, o dever de fundamentação, o acesso ao duplo grau, se tornem garantias meramente formais, sem repercussão real no processo. A falta de rigor quanto às provas permite ao juiz estabelecer os contornos de fato da forma que entender e, com isso, absolutamente estéril a boa aplicação do direito; permite também, a supervalorização de provas pinçadas aleatória e subjetivamente, com desprezo das demais, tudo para fazer prevalecer não um conceito sobre o conjunto probatório, mas o preconceito do juiz. 

As conclusões são tenebrosas. Prega-se a oralidade no processo, mas os operadores jurídicos não estão preparados para ela. Não é rara a perplexidade de advogados diante de depoimentos de seus constituintes ou de suas testemunhas, o que demonstra que, não souberam entrevista-las previamente para ver o que alegar ou pedir – no caso da parte -, ou a conveniência ou inconveniência de ouvi-las – no caso das testemunhas. Também os juízes não receberam formação específica sobre técnicas de entrevista e interrogatório, comunicação verbal e não-verbal, processos de memória, detecção da mentira (por sinais verbais e não verbais); tudo isso faz com que as provas orais estejam muito aquém do razoável, em termos de veracidade, qualidade e validade, assim como o respectivo exame. 

Uma das principais finalidades do juízo de revisão é impor ao próprio juízo originário, diante da possibilidade de reforma, que se esmere na prestação jurisdicional. Criar uma espécie de alçada sobre a prova oral, privilegiando, de modo absoluto, a atuação na colheita e na interpretação pelo juiz de primeiro grau não atende os princípios de devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da persuasão racional e mesmo o da própria imediatidade que deve ser interpretado dentro de um sistema coerente de princípios, normas e regras, que não admite invocações metafísicas (como a intuição), alusões inespecíficas (como a complexiva sobre a prova) ou argumentações meramente retóricas (que desprezam a ética e a racionalidade da construção do fundamento, substituindo-o por construções esteticamente mais palatáveis ou conceitos jurídicos indeterminados: “por equidade”, por uma “questão de justiça”), sob pena de substituição do arbítrio da parte pelo arbítrio do juiz. 

Diante de tudo o que foi dito, seria o princípio da imediatidade uma excrecência, não havendo razões sequer para dar relevância ao princípio da identidade física do juiz (que visa dar ao julgar contato imediato com as provas)?. 

A resposta não é simples. A existência do princípio da identidade física, que vinha positivado no art. 132 do antigo CPC (“O juiz titular ou substituto que concluir a audiência julgará a lide...”) não foi repetido no novo CPC, ao menos para o juiz de 1º grau (o novo CPC ampliou muito as atuações monocráticas, mantendo a identidade física do relator nas causas originárias e vinculando o Relator até o julgamento do recurso). Entretanto, considerando o primeiro grau, que ordinariamente dirige a produção das provas, é possível que a escolha do legislador tenha tido razões outras que não as expostas nestas linhas, quiçá a celeridade processual, mas, é um indicativo de uma mudança de filosofia quando considerado o maior rigor imposto à motivação das decisões judiciais, aliás verificado no novo CPC (art. 489, exaustivo quanto ao tema). 

O objetivo da aplicação da construção do princípio da identidade física foi o de vincular o juiz que colheu a prova, estando mais próximo das partes e testemunhas, visando uma sentença mais justa, quiçá pelo maior conhecimento do juiz sobre o processo. O problema é que, o que não está no processo não está no mundo e o que está no processo, não pode depender de um conhecimento imediato para ser utilizado e não será, quando as inferências sejam construídas logicamente, por dedução e não por indução. 

 

CONCLUSÃO

A imediatidade, decorrente da identidade física do juiz lhe outorga alguma vantagem na apreciação da prova oral cuja colheita presidiu e assistiu, contudo, não pode ser considerada como um atributo isolado ou preponderante, muito menos como um atributo mítico, sob pena de se atribuir ao Juiz de 1º grau um monopólio que a lei não lhe outorga, para decidir sobre quais provas permitirá e o que dela pinçará em termos de conclusões. 

A imediatidade não é garantia absoluta de que o juiz decidirá a partir daquilo que achou no processo (objetivamente), mas, quando muito, que decidirá a partir daquilo que achou do processo (subjetivamente). Se, a imediatidade for um critério não isolado de apreciação das inferências do juiz sobre as provas, pode até ser justificado, servindo nos casos difíceis, em que a prova, exaustivamente examinada, ainda contiver uma dubiedade mínima, que permita mais de uma conclusão preferível à mera aplicação do ônus da prova. 

É inaceitável, se for um critério isolado para permitir a ausência de justificativas ou de exposição racional das conclusões, como se o juiz pudesse ver além do que está retratado no processo, por alguma clarividência imprópria à técnica jurídica, principalmente se dermos o devido respeito aos princípios basilares do direito processual, em especial, do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal, da convicção motivada e da fundamentação das decisões judiciais, lembrando que no último repousa o pilar mais importante do caráter democrático do Poder Judiciário. 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA 

 

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Sobre o autor
José Ernesto Manzi

Desembargador do TRT-SC. Juiz do Trabalho desde 1990, especialista em Direito Administrativo (La Sapienza – Roma), Processos Constitucionais (UCLM – Toledo – España), Processo Civil (Unoesc – Chapecó – SC – Brasil). Mestre em Ciência Jurídica (UNIVALI – Itajaí – SC – Brasil). Doutorando em Direitos Sociais (UCLM – Ciudad Real – España). Bacharel em Filosofia (UFSC – Florianópolis – SC – Brasil), tendo recebido o prêmio Mérito Estudantil (Primeiro da Turma)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Prática na magistratura e a constatação de que, nem sempre, o dever de motivação das decisões judiciais é observado, no exame da matéria de fato, com prevalência de decisões mal-fundamentadas, pelo argumento de que o princípio da imediatidade deve prevalecer.

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