Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se a confiança:
todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades.
(Camões)
INTRODUÇÃO
Recentemente divulgou-se pela imprensa o encaminhamento de Projeto de Emenda Constitucional para a instituição dos juizados especiais na Justiça Federal (*). Tal idéia não é nova, tendo ela partido do próprio Poder Judiciário. Em 1994, ao formularmos tal sugestão, recebeu ela veementes críticas, naturais em propostas de inovação. Ao lado das críticas, houve também a adesão de alguns juristas de escol, entre os quais a dos Ministros Athos Gusmão Carneiro, José de Jesus Filho e Sepúlveda Pertence, bem como da OAB-RJ. Logo, não poderia deixar de haver satisfação com o fato de que, aos poucos, e principalmente em face do sucesso dos juizados especiais, venha sendo cada vez maior a receptividade à proposta.
Como fazemos desde o começo, mantemos nossa modesta posição de que a implantação de tais juizados não depende de emenda constitucional, podendo vir a lume com base no poder legiferante ordinário da União para regular o processo. Não obstante, é certo que a edição de emenda dará ainda maior autoridade à inovação.
Contudo, é preciso registrar que a experiência brasileira demonstra que, mais importante do que a edição de norma instituidora, qualquer que seja o veículo, é perquirir o real interesse do Executivo e o do Legislativo na implantação efetiva desse instrumento. Sem que exista verba para o funcionamento a contento, os juizados serão apenas mais uma esperança vã. Enquanto não houver meios, as injustiças e ilegalidades praticadas pelo ente estatal continuarão intangíveis à pronta resposta pela via judicial.
Há quem tenha dúvidas sobre a preocupação sincera dos entes estatais por acesso ao Judiciário quando ele é quem figura no polo passivo. Um dos exemplos mencionados é o de que até hoje não se incriminou devidamente a conduta de recusa de cumprimento à ordem judicial por parte de agente público. A própria profusão de recursos, inclusive os de ofício (agora estendidos às autarquias e fundações públicas pela Lei n. 9.469/97) é outra demonstração do problema. Mesmo não querendo citar muitas amostras, não podemos esquecer que as gratificações criadas para servidores dos demais Poderes nunca são objeto de repúdio geral como as que, mesmo em menor número e constância, atendem à necessidade de remunerar bem os servidores do Judiciário. Igual duplicidade de peso e medida ocorre com as vantagens deferidas aos colegas parlamentares e aos magistrados, estes últimos hoje, em regra, percebendo vencimentos inferiores aos de seus diretores de secretaria.
Um dos mais recentes modismos é contabilizar o quanto o país ficaria mais rico se o Judiciário funcionasse bem, esquecendo-se tais estudos de realizar perguntas voltadas para influências externas e deletérias que tornam o atual Poder Judiciário praticamente inviável.
Por todos esses motivos, permanecemos com um misto de curiosidade e esperança diante dessas mazelas e de seu deslinde.
RÁPIDO HISTÓRICO
Ninguém discute o quanto é inadiável que o Poder Judiciário decida os processos de modo eficiente. Para tanto, mais do que repisar as conhecidas causas da morosidade, urge adotar, com coragem, novas soluções. Mesmo nos países desenvolvidos estão sendo buscadas novas soluções para os litígios, como a mediação e a arbitragem. Das alternativas experimentadas, uma das que tiveram melhores resultados foi a criação dos chamados "juizados de pequenas causas", adotados no Brasil com a Lei n. 7.244/84.
A Constituição de 1988, reconhecendo o grande sucesso desses juizados, previu-os no art. 98, inciso I, passando a tratá-los como juizados especiais. Segundo a Constituição, tais juizados deverão ser providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.
Os juizados especiais, regulamentados pela Lei n. 9.099/95, foram recebidos como grande esperança de melhorias no Judiciário, sendo competentes para decidir causas em virtude do valor (até 40 salários mínimos) ou da matéria (aquelas tidas como de menor complexidade). O processo nesses juízos valoriza os critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando sempre que possível a conciliação das partes. Eles possibilitam prestação jurisdicional rápida e simples, o que contribui não só para desafogar os órgãos judiciários comuns, mas principalmente para assegurar o acesso à jurisdição, mesmo em causas onde antes não havia acesso à Justiça. Isso ocorria principalmente porque os custos (taxa judiciária, honorários advocatícios etc.) e a demora no processamento desestimulavam o cidadão a lutar por seus direitos. Outra vantagem é que os recursos são julgados por turmas de juízes de primeira instância, desafogando os tribunais.
Desde a Lei n. 7.244/84, não se permite que figurem como parte as pessoas jurídicas de Direito Público, além da exclusão das causas de natureza fiscal ou de interesse da Fazenda Pública, proibição repetida na Lei n. 9.099/95. Essa vedação não ocorre, por exemplo, nos juizados de pequenas causas dos EUA.
A verdade é que a maior parte das prerrogativas concedidas às pessoas jurídicas de Direito Público, que visa a proteger o interesse da coletividade, teve resultado inverso, criando um muro de impunidade e irresponsabilidade que apenas ampara a ineficiência e a prática de ilicitudes em desfavor do cidadão. A desmedida proteção ao Estado se deforma, deixando de proteger o interesse público e vedando o direito constitucional de ação quando o Estado é a parte adversa. Não é razoável que o Estado combata as lesões a direitos tidas como de pequena monta apenas quando praticadas por terceiros. Seria como o próprio Estado dizer que Justiça rápida é bom, mas para os outros.
Aliás, quando combate os vícios dentro de seu próprio organismo, ao contrário de se prejudicar, como visão míope poderia supor, o Estado se purifica e aperfeiçoa. O Estado se fortalece e se torna o exemplo de autoridade, inclusive moral, que a sociedade espera. O bom administrador será reconhecido, ao passo que o desidioso verá a Justiça alcançar-lhe prontamente, fazendo com que este dê à lei e ao interesse coletivo a devida reverência.
Todos sabemos o quanto a União, estados, municípios, autarquias e empresas públicas violam a Constituição e a lei e permanecem "protegidos" pelas dificuldades de acesso à Justiça. Isso tem de mudar. A responsabilização do ente estatal serve como fator de aperfeiçoamento da atividade administrativa. Por essas razões, é imprescindível criar os juizados especiais na Justiça Federal e na Justiça Estadual, admitir o ajuizamento de processos contra o estado, o município e seus entes.
CONCILIAÇÃO E TRANSAÇÃO
Existe considerável preconceito contra a possibilidade de conciliação e transação quando for parte pessoa jurídica de Direito Público, tendo em vista, principalmente, a indisponibilidade do interesse público. Todavia, a indisponibilidade não significa proibição da transação, mas apenas da transação desvantajosa. Um acordo pode ser extremamente útil para a coletividade, caso em que impedi-lo é que vulnera o interesse coletivo. A transação já é hoje legalmente possível, mas as dificuldades administrativas para sua concretização tornam esse eficiente instrumento uma figura de pouca utilidade prática. Não se vai criar a transação, mas apenas simplificá-la para que sirva ao interesse público.
Anote-se que recentemente têm sido editados atos demonstrando que em execuções com valores a receber de até, conforme o caso, R$ 1.000,00 ou R$ 5.000,00, o próprio exeqüente estatal não considera proveitoso prosseguir na execução. Do mesmo modo, abrem-se, aos poucos, as portas para uma visão mais prática da matéria, menos presa a conceitos antigos e mais ligada à salutar idéia da relação custo X benefício de cada ação ou providência estatal.
O medo de fraudes não deve impedir os benefícios da conciliação, até porque a inexistência desta não impediu a ocorrência daquelas. Ao contrário, quando o Judiciário for mais rápido, o número de causas diminuirá e será possível mais eficiente fiscalização pelos órgãos próprios. Além disso, as grandes fraudes só seriam passíveis de ocorrer nos juízos convencionais, que passarão a estar menos sobrecarregados e, conseqüentemente, mais aptos para fazer a verificação da legalidade dos atos em exame. Por fim, não se deve supor que o magistrado, o representante da União Federal e o Ministério Público (que também deve intervir) estejam associados para prejudicar a Federação. A conciliação pode interessar ao ente público, servindo para diminuir o valor da condenação, economizar trabalho, tempo, honorários advocatícios, custas e até, conforme o caso, percentual do débito. A experiência demonstra que o autor muitas vezes prefere desistir de parte do pedido desde que receba o acordado com rapidez.
PECULIARIDADES DA JUSTIÇA FEDERAL
As regras de competência e a representação judicial das pessoas jurídicas de Direito Público não necessitam sofrer alteração. As causas a serem julgadas nos juizados especiais federais serão as com valor de até 40 salários mínimos e outras de menor complexidade. A revisão ou cobrança de benefícios previdenciários pode ser atribuída a tais juizados, com limite determinado pela lei, criando-se o conceito de "pequena causa previdenciária", o que teria enorme conteúdo social. Nada impede que a União, autarquias e empresas públicas, que representam a coletividade, também sejam beneficiadas com a celeridade e simplicidade dos juizados especiais federais, também podendo ser autores.
No âmbito criminal, o deslocamento das ações de menor potencial ofensivo para o juizado especial criminal federal permitirá que seja dada maior atenção, nas varas comuns, aos casos de maior repercussão econômica e social, permitindo combate mais adequado e focalizado ao crime organizado, criminalidade econômica (sonegação, fraudes etc.).
A eliminação de institutos obsoletos, como os recursos de ofício e os precatórios, e do excessivo formalismo têm especial oportunidade de serem prestigiados na redação da lei dos juizados especiais federais. A incriminação do descumprimento à ordem judicial também pode ser finalmente realizada.
Uma das maiores preocupações reside na inconveniência da atuação de juízes leigos em causas submetidas à Justiça Federal. Os juízes leigos fazem sentido nas causas privadas, não devendo participar das causas em que haja interesse do Estado, em sentido lato. Ao lado dessa preocupação quanto à matéria a eles submetida, preocupa-nos a forma de sua escolha, a fim de que não reste a função (nobre e democrática) como mais um cabide de empregos ou objeto de escambo.
MEIOS MATERIAIS
Para o efetivo sucesso dos juizados especiais, são necessários certos cuidados, como meios materiais e humanos suficientes, inclusive sem permitir que os juízes e servidores acumulem varas comuns e os juizados; treinamento dos servidores, magistrados e advogados para serem capazes de realmente empregar os princípios norteadores dos juizados especiais; cumprimento da Constituição no que se refere à implantação da Defensoria Pública da União (LC n. 80/94), com urgente criação de cargos efetivos e realização de concurso público; criação de meios mais adequados para assegurar o cumprimento das decisões judiciais em tempo útil. Ainda que pecando pelo excesso, repisamos que criar tais juizados sem investir em meios materiais é literalmente brincar com o titular do poder, o povo, lançando promessas e criando expectativas irrealizáveis.
Por sinal, consideramos que gastar verbas com a implantação de tais juizados é um investimento e não mero custo ou despesa. Investimento que retornará, primeiro e principalmente, na forma de um Estado de Direito Democrático, onde os cidadãos têm acesso à Justiça. Em segundo lugar, e a ordem traduz a ordem de importância, tal investimento trará também melhores condições para o desenvolvimento econômico pela sua repercussão na diminuição do chamado "custo Brasil" e no incentivo à produção de riqueza, através do trabalho e investimento em condições mais propícias.
CONCLUSÃO
As dificuldades do Judiciário no presente momento, a vitoriosa experiência dos antigos juizados de pequenas causas (atuais juizados especiais estaduais) e a necessidade de evolução administrativa e prestação eficiente da tutela jurisdicional justificam a criação dos juizados especiais federais cíveis e criminais.
A modificação terá grande utilidade para todos: cidadãos, Administração e Judiciário. Os entes públicos receberão a proteção merecida, poderão ser autores nos juizados e ganharão agilidade. Os cidadãos terão melhor acesso ao Judiciário e este poderá servir melhor ao titular do poder: o povo.
Os juizados federais combaterão uma faixa de ocorrência de ilicitude, independentemente do fato de serem praticados por particulares ou pelo próprio Estado. A delinqüência menos sofisticada será objeto de combate em vias simplificadas e permitir-se-á maior combate à criminalidade organizada e econômica, diminuindo-se a impunidade nas duas faixas. Paralelamente, ao se tratar das causas cíveis, e sendo o império da lei e a efetiva garantia aos direitos individuais requisitos para a identificação de um Estado Democrático de Direito, os juizados especiais contribuirão para o aperfeiçoamento da democracia.
Restamos, contudo e como já dissemos, com um misto de curiosidade e esperança, pois se por um lado temos nas mãos uma possível solução para muitas de nossas dificuldades de fazer a Justiça célere e efetiva, por outro não desconhecemos que a cada malogro diminui a confiança do povo não no Judiciário, mas em todo o sistema político da nação. Nossa jovem democracia e o sistema das liberdades, com todas as suas lacunas e dilemas, jamais deixam de ser valiosíssimas conquistas cuja manutenção e aperfeiçoamento fundearão um país bom para se viver.
NOTA DO EDITOR
(*) O projeto referido deu origem à Emenda Constitucional nº. 22, de 18 de fevereiro de 1999