4. Discurso sobre as ciências e as artes
O Discurso sobre as ciências e as artes data exatamente da metade do século XVIII (1750) e foi escrito, como se sabe, para concorrer ao prêmio oferecido pela Academia de Dijon ao melhor ensaio a respeito da questão por ela proposta sobre se o restabelecimento das ciências e das artes teria contribuído para o aprimoramento dos costumes. A indagação dirige-se nítida e diretamente aos resultados da atividade intelectual humanista e aos valores iluministas então imperantes, tendo, assim, cunho marcadamente setecentista.
A resposta, diante do quadro da época, haveria de ser, pois, positiva, mas Rousseau prefere a negativa que, segundo se conta, teria sido sugerida por Diderot, para que ele se diferenciasse dos demais concorrentes, que certamente fariam a apologia das luzes e da razão . As reflexões do Discurso tinham o propósito de obter o prêmio. E ele foi obtido. Não se pode afirmar com certeza o teor do conselho de Diderot, embora exista uma referência a este respeito em uma correspondência, não dele, Rousseau, mas de terceiro. Rousseau diz apenas, nas Confissões, que realmente mostrou o Discurso a Diderot quando foi visitá-lo na torre de Vincennes, em que o amigo se encontrava preso, expondo-lhe a causa e o conteúdo do trabalho, e que, nesta oportunidade, Diderot aconselhou-o "a dar largas às minhas idéias e a concorrer ao prêmio" 16. A narrativa deixa claro que a idéia e o conteúdo já existiam na mente de Rousseau.
Rousseau exalta no referido Discurso a ignorância inocente, que para ele é o estado em que está a fonte da virtude:
"O espírito tem as suas necessidades, bem como o corpo. Estas são os fundamentos da sociedade; aquelas constituem o seu deleite. Enquanto o governo e as leis provêm a segurança e o bem-estar dos homens reunidos, as ciências, as letras e as artes, menos despóticas e quiçá mais poderosas, estendem guirlandas de flores às cadeias de ferro a que os homens estão presos, neles sufocam o sentimento dessa liberdade original para a qual pareciam ter nascido, fazem-nos amar a própria escravidão, e criam o que se costuma chamar de povos policiados. A necessidade ergueu os tronos; as ciências e as artes os consolidaram. Poderosos da Terra, amai os talentos, e protegei os que os cultivam! Povos policiados, cultivai-os! Venturosos escravos, deveis a eles esse gosto delicado e fino com o qual vos picais, essa doçura de caráter e essa urbanidade de costumes que corrompem entre vós o comércio tão afável e tão fácil; numa palavra, as aparências de todas as virtudes, sem que haja alguma" 17.
Esse trecho, sobre traduzir verdadeiro ataque aos aludidos padrões iluministas de pensamento, permite mesmo a já assinalada identificação de conteúdo anarquista (como em outros pontos). Além do forte e transparente conteúdo rebelde que contém, verifica-se que é visível a aversão de Rousseau ao que ele chama de povos policiados, que faz derivar do progresso das ciências, das letras e das artes engendradas para sufocar a liberdade e estabelecer a escravidão. Na mesma passagem, Rousseau insurge-se, ainda, contra os tronos e seus detentores, mantidos e sustentados pelos cultores das ciências e das artes.
Na crítica à sociedade ornada com as sutilezas das ciências e das artes, Rousseau lembra a uniformidade de procedimento, lançando farpas a um estereótipo criado pela própria artificialidade social, que lhe parece tão vulgar e tão mesquinha na sua polidez. A sociedade, para ele, tal como se apresentava, não passa de um rebanho, que trilha às cegas os caminhos que lhe são mostrados:
"Não mais se ousa parecer o que se é; e, nesse perpétuo constrangimento, os homens, que formam esse rebanho a que se denomina sociedade, colocados nas mesmas circunstâncias, farão todos as mesmas coisas se motivos mais poderosos não os desviarem" 18.
Só a existência destituída dos adornos das ciências e das artes impostas de forma coativa ao homem pode levar à virtude, pois todo o resto é aparência. Só a ignorância pode levar o homem à virtude, sendo certo que as instituições trazidas pelo conhecimento (ciências e artes) são desnecessárias para alcançá-la e constituem o seu oposto, caracterizando-se como resultantes de más inclinações e vícios. O mito da ignorância inocente atinge a categoria de dogma e para Rousseau as ciências e as artes só trazem traição, falsidade, polidez enganosa e prisão. Segundo ele, o homem em seu estado de natureza é fundamentalmente bom. Quando impulsionado pela curiosidade, quer saber algo, vai perdendo a inocência na medida em que adquire conhecimentos. Por conseguinte, pureza e sabedoria resultam antagônicas. Antecipa-se, dessa forma, a sua tese sobre o homem natural em contraposição à sociedade, que irá desenvolver no Discurso seguinte.
5. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens
Analisar o conteúdo do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens implica, antes de mais nada, detectar e experimentar a contraposição posta por Rousseau entre o estado de natureza e a sociedade civil, pois é este o modelo do seu primeiro momento (antes do Contrato social). Nesse primeiro momento, os elementos constitutivos são os indivíduos singulares e isolados, não associados, que não atuam segundo e conforme a razão, mas consoante as paixões e os instintos; no segundo, o elemento constitutivo é a união dos indivíduos isolados e dispersos. Trata-se, aqui – no estado da sociedade civil –, de um de um estado artificial, corrompido e contrário à natureza do homem.
Revela-se, assim, a teoria do bom selvagem, que se propõe a apresentar o homem em seu estado natural, adverso à sociedade organizada. Já não se trata mais, portanto, da apologia da ignorância apresentada por rústicos exemplares de civilizações antigas, mas da exaltação do estado natural que teria existido antes de qualquer espécie de civilização e no qual o homem, nascido bom, ainda não havia sido depravado pela sociedade, que é a causa de todo o mal. O estado de natureza, puro e verdadeiro, é, pois, o estado selvagem no qual os homens foram criados e viveram durante milhares de anos; implica o isolamento vagabundo, a ausência de toda a linguagem, de toda a relação regular, o sono da razão e o desconhecimento da moralidade.
Antes, porém, de demonstrar as causas da desigualdade, identificá-las no progresso e em outros fatores, Rousseau distingue duas espécies de desigualdades:
"uma, que chamo natural ou física, porque foi estabelecida pela Natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças corporais e das qualidades do espírito ou da alma; outra, a que se pode chamar de desigualdade moral ou política, pois que depende de uma espécie de convenção e foi estabelecida, ou ao menos autorizada, pelo consentimento dos homens. Consiste esta nos diferentes privilégios desfrutados por alguns em prejuízo dos demais, como o de serem mais ricos, mais respeitados, mais poderosos que estes, ou mesmo mais obedecidos" 19.
A primeira espécie de desigualdade não requer qualquer tipo de indagação, pois é oriunda da própria natureza e nela encontra a sua resposta. Nem há ligação entre as duas.
Estabelecida a distinção, importa saber que a desigualdade política é fruto e resultado do progresso das coisas e é isto que Rousseau vai procurar demonstrar ao longo de todo o Discurso. Mas, para tanto, adverte desde logo que não irá perquirir a forma que possa ter adquirido o homem desde a sua origem nem preocupar-se com as transformações físicas e anatômicas que possa ter sofrido, pois, segundo ele, as observações dos naturalistas a este respeito ainda não permitiram a fixação de uma base correta.
Parece tratar-se, na verdade, de uma concepção inteiramente abstrata do homem natural, inteiramente desligada e desvinculada da sua existência física real e despida de base sensível ou experimental. Todavia, tal ser adquire logo familiaridade, quando o seu modo de agir é identificado com o de qualquer ser humano:
"Vejo-o saciando-se sob um carvalho, dessedentando-se num ribeiro, deitando-se ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o alimento; e eis com isto suas necessidades satisfeitas" 20.
O homem em estado de natureza é robusto, são e ágil; acostumado às intempéries desde o nascimento, sabe reagir e adaptar-se à natureza e às suas exigências. É, assim, naturalmente bom e só por força das instituições é que se torna mau. O estado originário do homem era um estado feliz e pacífico, uma vez que ele, satisfeito na natureza e sem necessidades outras que não aquelas que nela encontra, não se via no dever de se unir a seus semelhantes nem combatê-los.
Essas reflexões representam ao mesmo tempo a antítese da doutrina do pecado original e da salvação por meio da Igreja e da teoria de Hobbes, segundo a qual o homem é o lobo do homem e vive em estado de guerra. Cabe atentar, contudo, para a observação de Bobbio, para quem "o que Rousseau critica em Hobbes não é ter formulado um estado de guerra total, mas de tê-lo atribuído ao homem de natureza e não ao homem civil" 21. Tanto que Rousseau diz que as usurpações dos ricos, o banditismo dos pobres, as paixões desenfreadas de todos geram um estado de guerra permanente. E neste ponto está em harmonia com Hobbes. A diferença é tópica e localizada na concepção, já que Rousseau não admite tal situação no homem da natureza, mas já no homem componente da sociedade civil (que é corrompida e cujas causas de corrupção ele aponta).
Alguns intérpretes das reflexões de Rousseau sobre o estado de natureza e a crítica à sociedade civil pretendiam vê-las como um desejo de retorno à animalidade. A tal propósito, narra-se curioso incidente sobre a mordaz resposta que lhe foi dada por Voltaire, após ter recebido o Discurso da desigualdade: "Recebi seu novo livro contra a raça humana" – diz Voltaire – "e agradeço-lhe por isso. Nunca se empregou tanta inteligência com o fim de nos tornar a todos estúpidos. Lendo-se seu livro, tem-se vontade de andar de quatro patas. Mas como já perdi esse hábito há mais de sessenta anos, vejo-me, infelizmente, na impossibilidade de readquiri-lo. Tampouco posso dedicar-me à busca dos selvagens no Canadá, porque as doenças a que estou condenado me tornam necessário um médico europeu; porque a guerra continua nessas regiões; e porque o exemplo de nossas ações tornou os selvagens quase tão maus quanto nós" 22. É claro que o comentário provocador há de ser creditado à ferina ironia de Voltaire.
Outros críticos aproximaram Rousseau dos cínicos gregos, especialmente Diógenes de Sínope (413/323 a. C.). Os cínicos, como se sabe, exaltavam a vida natural, procurando o seu modelo nos animais, e teriam acatado com honra o título de cães (Kynes), que é talvez a origem do nome da escola. Sabe-se também que, nessa linha, os cínicos propuseram um modelo de comportamento ético fundamental e a necessidade de afirmação individual contra uma sociedade alienante e coativa. A grande virtude era a liberdade – que muitos levaram ao exagero, como o próprio Diógenes, de quem se diz ter vivido como um cão – liberdade de pensar, de agir e de falar.
Rousseau inicia a segunda parte do Discurso apontando a causa da formação da sociedade civil, que é o resultado da evolução da convivência dos homens na terra. Esta convivência foi sendo preenchida com maus sentimentos na proporção em que aumentavam as necessidades e descobertas cada vez maiores de engenhos capazes satisfazer aquelas necessidades. E a propriedade é a grande causa por ele apontada como geradora da sociedade civil e da desigualdade.
Eis o trecho:
"O primeiro que, cercando um terreno, se lembrou de dizer: ‘Isto me pertence’, e encontrou criaturas suficientemente simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Que de crimes e guerras, de assassinatos, que de misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, desarraigando as estacas ou atulhando o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: Guardai-vos de escutar este impostor! Estais perdidos se vos esqueceis de que os frutos a todos pertencem e que a terra não é de ninguém" 23.
O texto não parece de um homem ligado às idéias liberais burguesas que influenciaram uma revolução igualmente liberal. Aproxima-se mais – e muito mais – dos ideais socialistas e anarquistas do século XIX e do começo do século XX, brandindo a bandeira da abolição da propriedade privada. Está muito próximo, na verdade, da síntese prudhoniana de que a propriedade privada é um roubo. Eis aí a causa da formação da sociedade civil, o nefasto motivo do desmoronamento do mundo natural em que o homem selvagem vivia em estado pacífico e em sua bondade natural. Mas para alcançar o estágio em que esta causa aparece foi necessário "conseguir muitos progressos, adquirir muita indústria e muitas luzes, transmiti-los e aumentá-los de idade em idade, antes de se chegar ao derradeiro termo do estado natural" 24.
A formação da sociedade civil, portanto, desde a própria identificação do homem consigo mesmo, isto é, desde o sentimento de existência, deu-se de forma lenta, sendo certo que as associações só ocorriam, primitivamente, nas ocasiões em que eram necessárias. Passada a necessidade imediata e sensível, desmanchava-se o grupo. Eis como os homens puderam adquirir insensivelmente alguma idéia dos compromissos e da conveniência de cumpri-los.
É importante notar, como já foi assinalado, que já neste Discurso Rousseau refere-se à conservação como primeiro cuidado do homem, e é desta concepção que ele vai lançar mão para justificar a agregação decorrente da impossibilidade de subsistência do estado natural primitivo, como está no Contrato social. Encontra-se aí, para alguns estudiosos, o acabamento, o remate do pensamento da obra de Rousseau a respeito da formação da sociedade civil e, posteriormente, do Estado: estado de natureza, sociedade civil e Estado como três etapas sucessivas, sendo o último fundado no pacto social.
A metalurgia e a agricultura, por sua vez, também dão origem à propriedade e promovem completa revolução no desenvolvimento da sociedade civil. E cada novo progresso obtido leva o homem a novas descobertas, pois quanto mais o espírito for esclarecido "mais a indústria se aperfeiçoa" 25, tendo sido o fato de servir-se de cabanas, que só foi possível com o encontro de machados e pedras cortantes, "a primeira revolução que formou o estabelecimento e a distinção das famílias e introduziu uma classe de propriedade, de que, provavelmente, nasceram bastantes pendências e combates" 26.
A leitura atenta do texto faz crer que, se foram a metalurgia e agricultura as origens da propriedade, elas só surgiram da necessidade de agregação e é nesta agregação que repousa originariamente o esfacelamento da igualdade, junto com o aparecimento da propriedade privada e o desenvolvimento.
Eis a passagem que esclarece:
"...numa palavra, enquanto se dedicaram às obras que podiam ser feitas individualmente, às artes que não necessitavam de numerosas mão, viveram livres, sãos, bons e felizes, tanto quanto o podiam ser por sua natureza, e continuaram a desfrutar enter si de um comércio independente; mas desde o instante em que um homem teve precisão de ajuda de outrem, desde que percebeu ser conveniente para um só ter provisões para dois, a igualdade desapareceu, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas se mudaram em campos risonhos que passaram a ser regados com o suor dos homens, e nos quais logo se viu a escravidão e se viu a miséria germinar e crescer com as colheitas" 27.
De novo a repulsa à sociedade, que ele já tratara com tanto desdém no Discurso anterior, chamando-a rebanho e apontando-a como submissa a uma estúpida uniformidade de procedimento. Seria a revolta pessoal, a indignação contra o estrutura social que tanto o perseguiu, recalque e traumas contra as suas próprias condições?
Estabelecidos os pressupostos da formação da origem e da desigualdade, Rousseau lança, então, a sua conclusão no sentido de que, inexistente no estado natural, ela agiganta-se no aperfeiçoamento das faculdades e progressos humanos, para arrematar que a desigualdade moral é contrária àquele estado sempre que não coincida com a desigualdade provinda daquela própria condição.
Diante de tantas e tão diversas opiniões já manifestadas sobre Rousseau, não se pode negar que seus dois discursos mais famosos estão impregnados de anarquismo, mesmo sabendo-se que esta expressão tem conotação variada e muitas vezes ambígua, que transita nas áreas da filosofia, da política, das ciências sociais, alcançando mesmo a adoção de um estilo de vida. O termo é recheado de significados, que se alteram conforme a perspectiva em que é examinado. No sentido etimológico, como é sabido, implica falta de autoridade, ausência de governo. O uso do vocábulo tem indicado "uma sociedade livre de todo o domínio político autoritário, na qual o homem se afirmaria apenas através da própria ação exercida livremente num contexto sócio-político em que todos deverão ser livres" 28. Além disso, anarquismo significou e significa "a libertação de todo o poder superior, fosse ele de ordem ideológica (religião, doutrinas, políticas, etc.), fosse de ordem política (estrutura administrativa hierarquizada), de ordem econômica (propriedade dos meios de produção), de ordem social (integração numa classe ou num grupo determinado), ou até de ordem jurídica (a lei). A estes motivos se junta o impulso geral para a liberdade. Daí provém o rótulo de libertarismo, atribuído ao movimento e de libertário, empregado para designar o que adere ao libertarismo" 29. Trata-se, portanto, de movimento que confere ao homem e à coletividade a liberdade de agir sem se submeter a qualquer espécie de autoridade, exceto os obstáculos existentes na própria natureza.
Bernard Groethuysen, grande estudioso do filósofo, diz mesmo que Rousseau "pourrait être comparé à um révolutionnaire d’aujourd’hui, qui, conscient de ce que la société n’est pas ce qu’elle doit être, envisagerait à la fois une solution d’um caractère socialiste et une autre d’un caractère anarchiste " 30. E mais adiante, na mesma obra, acrescenta: "Il fut em quelque sort anarchiste par nature, et socialiste par amour" 31.
No Discurso sobre a ciência e as artes e no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens Rousseau vai além da repulsa ao Estado: insurge-se contra a sociedade – e, mais, a sociedade desigual – e contra todos os fatores que aprisionam o indivíduo nela inserido. É possível identificar, então, o Rousseau anarquista, como parece fazer Rafael Gumcio, para quem a partir de Rousseau "encontramos una crítica radical del Estado, que se desarrolla y radicaliza com los pensadores anarquistas, los cuales plantean su abolición o extinción". 32