Um Direito Penal mínimo e garantista, comprometido especialmente com os princípios garantistas da materialidade, culpabilidade e retribuição, exige como requisito essencial das normas penais a regulatividade. O princípio da regulatividade das leis penais não é um dos dez princípios estabelecidos por Ferrajoli para o sistema garantista, mas é, talvez, um dos mais importantes para sua efetivação.
O tema do princípio da regulatividade das normas penais está diretamente ligado com a diferença existente entre normas regulativas e normas constitutivas.
As normas regulativas podem ser caracterizadas como aquelas que regulam comportamentos, que podem ser permitidos, proibidos ou obrigatórios, sendo que a produção dos efeitos jurídicos previstos pela norma regulativa estão condicionados à comissão ou omissão desses comportamentos regulados.
Já a norma constitutiva é aquela que estabelece imediatamente qualificações e efeitos jurídicos, pois esses independem de comportamentos comissivos ou omissivos de observância ou violação. Ou, como elucida Ferrajoli, as leis penais constitutivas são aquelas
"que no regulan comporamentos, no contienen prohibiciones y no admiten la alternativa entre observancia e inobservancia, sino que constituyen directamente los presupuestos de la pena, estigmatizando o calificando como reos a un sujeto o a una clase de sujetos más a causa de su modo de ser que de su modo de actuar. (1995, p. 504)."
O uso das normas penais constitutivas tem percorrido a história do Direito Penal, disciplinando diretamente a pessoa e não o seu comportamento, o seu modo de atuar. Como lembra Ferrajoli (1995, p. 504), primeiro foram as bruxas, depois os hereges, os infiéis e os judeus. Hoje, o foco virou-se para as classes de sujeitos tidos como perigosos, ociosos, vagabundos, propensos a delinqüir, inimigos do povo, em síntese, o subproletariado.
As normas penais constitutivas, ao invés de qualificar o delito pelo modo de atuar da pessoa (preocupando-se com a comissão ou omissão de comportamentos), preferem estabelecer as características biológicas, antropológicas ou sociais do sujeito como elemento constitutivo do delito, tais como a condição social, a opção política, o pensamento religioso, a característica racial. No nosso ordenamento penal encontramos normas penais constitutivas, como exemplo podemos citar os artigos 59 e 60 da lei 3.688 de 03 de outubro de 1941, que estabelecem respectivamente as contravenções penais de vadiagem e mendicância, nas quais
"o princípio orientador regula condutas que, sem serem criminosas, representam um perigo para a sociedade pois são situações ou estados que tornam o indivíduo inclinado (proclive) ao delito, colocando-o na via ou inclinando o agente ao mesmo. (SZNICK, 1987, p. 307)."
Ou seja, a condição de vadio ou de mendigo torna os sujeitos temíveis, propensos a delinqüir, e, assim, como necessidade de prevenção para que isso não ocorra é necessário que se puna a conduta de ociosidade e de miserabilidade, isto é, o estado social do agente. Trata-se de uma periculosidade presumida, na qual "el centro de gravedad del derecho penal se deslizó del delito al delincuente." (FERRAJOLI, 1995, p. 508).
Nas palavras de Chauveu et Helié sobre a vadiagem, que também se aplicam à mendicância
"a vagabundagem é menos um fato criminoso em si mesmo do que um gênero de vida que a lei quis reprimir; o que ela quis atingir foi uma situação, foram tendências viciosas; no espírito da lei é, pois, mais um ato preparatório do que um delito consumado. (apud SZNICK, 1987, p. 307)."
Conforme Ferrajoli (1995, p. 506), a constitutividade das normas penais pode apresentar-se tanto na formação do elemento constitutivo do delito, bem como no de uma eximente, de uma agravante ou de uma atenuante. Dessa forma, pode-se dividir as normas penais constitutivas em dois tipos: as de caráter positivo e as de caráter negativo. As normas penais constitutivas positivas são as que prevêem privilégios e discriminações, havendo, então, formas de tratamento diferenciadas conforme o status social da pessoa, como ocorria no Direito Romano e Medieval nos quais as regras e penas eram distintas para escravos e livres, para plebeus e nobres. Já as normas penais constitutivas negativas consideram a condição social da pessoa como "causa no de penalización, o de mayor penalización, sino de impunidad, o de indulgencia." (FERRAJOLI, 1995, p. 506), como, por exemplo, são hoje as imunidades no nosso direito.
Além dessas figuras delitivas, também são constitutivas as normas carecedoras de dano para a imputação do resultado, como o são, por exemplo, todos os delitos de perigo abstrato.
Assim, a norma penal constitutiva ao identificar, como pressupostos de penalização, as características intrínsecas da pessoa, ao invés de suas ações ou omissões, implica desigualdade e discriminação para com as pessoas natural ou socialmente diversas e distintas, pois "a essência do delito reside numa característica do autor, que explica a pena." (ZAFFARONI, 2003, p. 131). Gerando, portanto, uma repressão da subjetividade do autor, como foi o direito penal nazista, um direito penal de autor. Ou seja, deixa-se de referir a ação para orientar-se diretamente ao autor, criando uma culpa pelo modo de ser ou condução de vida do autor (FERRAJOLI, 1995, p. 496).
É diante desse quadro que surge o princípio da regulatividade das normas penais impondo que em matéria de Direito Penal (e até mesmo em matéria de Direito Processual Penal, no caso das sentenças) as proibições devam consistir em comissões ou omissões de ações, e que essas sejam ex ante possíveis, ou seja, proibindo as normas penais constitutivas.
Os princípios da materialidade, culpabilidade e retribuição são atendidos por esse princípio. Pois, segundo o sistema garantista, o princípio da materialidade da ação (nulla iniuria sine actione), que corresponde ao elemento objetivo do delito, estabelece que "ningún daño, por grave que sea, puede estimarse penalmente relevante sino como efecto de una acción." (FERRAJOLI, 1995, p. 480). Ou seja, os delitos não devem fundamentar-se em ânimos interiores, devendo somente concretizar-se em ações humanas externas. Isso porque somente ações externas são causadoras de danos a terceiros, decorrentes de uma relação de causalidade entre a ação e o resultado.
O princípio da culpabilidade (nulla actio sine culpa), correspondente ao elemento subjetivo do delito, frisa que
"ningún hecho o comportamiento humano es valorado como acción si no es fruto de uma decisión; consiguientemente, no puede ser castigado, y ni siquiera prohibido, si no es intencional, esto es, realizado com consciencia y voluntad por uma persona capaz de comprender y de querer. (FERRAJOLI, 1995, p. 487)."
Obedece, também, o princípio da retributividade (nulla poena sine crimine), pois, segundo este princípio, a imposição da pena somente pode advir como sanção post delictum, ou seja, a causa ou condição de penalização deve referir-se exclusivamente a prática de um delito, excluindo-se, portanto, medidas punitivas ante ou extra delictum, como as características de sujeito malvado, desviado, perigoso, suspeito ou propenso a delinqüir.
Dessa forma, a regulatividade das leis penais constitui o pressuposto de efetivação dos princípios garantistas da materialidade, culpabilidade e retribuição, visto que exige que as leis contenham proibições dirigidas a comportamentos cuja comissão ou omissão seja aleticamente possível e imputável à escolha do sujeito.
Vislumbra-se, portanto, que o valor garantista do princípio da regulatividade das normas penais reside na igualdade penal, pois "todos los hombres son iguales penalmente en cuanto son castigados por lo que son y en cuanto sólo sus acciones, y no su (distinta) personalidad, pueden ser tipificadas y culpabilizadas como igualmente desviadas." (FERRAJOLI, 1995, p. 505).
Salienta-se, então, que se trata de um princípio indispensável à tutela da dignidade do homem, ao respeito à identidade, e a garantia de tolerância para com o diferente, pois todos somos abstratamente iguais perante a lei.
Referências:
ANDRADE, Vera Regina Pereira. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1.
CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Tradução Perfecto Andrés Ibañez et alii. Madrid: Trotta, 1995.
HAUSER, Ester Eliana. Modelos penais minimalistas: contribuições e limites na reconstrução da legitimidade dos sistemas penais contemporâneos. Florianópolis: UFSC, 2001, dissertação de Mestrado, Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, 2001.
SZNICK, Valdir. Contravenções penais. São Paulo: Universitária de Direito, 1987.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl et alii. Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v. 1.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 2. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1999.