Artigo Destaque dos editores

Constitucionalidade dos arts. 1º e 2º do Decreto-lei nº 1537/1977.

Recepção da isenção da União quanto ao pagamento de emolumentos aos cartórios estaduais perante a Constituição da República Federativa do Brasil

01/06/2006 às 00:00
Leia nesta página:

1. INTRODUÇÃO

O presente texto versa sobre a análise da recepção dos arts. 1º e 2º do Decretolei 1.537, de 13 de abril de 1977, os quais estabelecem a isenção da União ao pagamento de emolumentos perante os Cartórios Estaduais, pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

A relevância do tema assume destaque em face das reiteradas negativas dos Oficiais de Registro em efetuarem averbações ou emitirem certidões, sob a alegação de que os emolumentos são tributos da espécie taxa e, conseqüentemente, os preceitos legais acima mencionados não teriam sido recepcionados pelo art. 151, III, da Carta Magna, que proíbe a União de estabelecer isenções de tributos estaduais.

Tal negativa dos cartorários prejudica não só os interesses econômicos da União, a exemplo de inviabilizar o registro das garantias transferidas por força da Medida Provisória 2.196-3/2001, mantida em vigor pelo art. 2º da Emenda Constitucional 32/2001, que deu em pagamento créditos de liquidação duvidosa das instituições financeiras para o mencionado ente federativo, mas também acaba prejudicando o desempenho de atribuições constitucionais de cunho social, como a promoção da reforma agrária, na medida em que os escreventes negam-se a registrar os títulos das desapropriações rurais promovidas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), sem o pagamento das respectivas taxas.

Diante desse contexto, importa analisar se ocorreu a recepção constitucional da isenção da União à exigência de emolumentos, prevista nos arts. 1º e 2º do Decreto-lei 1.537/1977, tendo em conta a interpretação sistemática dos arts. 151, III, e 236, § 2º, da Carta da República.


2. BREVES QUESTÕES PREJUDICIAIS À ANÁLISE DA RECEPÇÃO CONSTITUCIONAL

Preliminarmente à análise da recepção dos arts. 1º e 2º do Decreto-lei 1.537/1977, que é o núcleo central deste estudo, cabe tecer duas breves objeções à conduta dos Oficiais de Registro Estaduais em negar vigência ao dispositivo legal indicado.

A primeira questão diz respeito à inviabilidade da autoridade administrativa negar vigência à lei federal sob o argumento de inconstitucionalidade, pois somente a jurisdição pode exercer o controle de compatibilidade da legislação perante a Carta Magna

Outrossim, a autoridade administrativa não pode deixar de aplicar a isenção prevista expressamente nos arts. 1º e 2º do Decreto-lei 1.537/1977, sob o argumento de não-recepção/inconstitucionalidade, haja vista que cabe apenas ao Poder Judiciário o exercício dos controles difuso e concentrado de congruência da legislação com a Constituição da República Federativa do Brasil.

Isso porque o administrador, ainda que por delegação de serviço público, está vinculado aos princípios da legalidade (art. 37 da CRFB) e da presunção de legitimidade das leis, não podendo deixar de observar prescrições normativas expressas sob o argumento de reputá-las inconstitucionais, salvo flagrante abuso, inexistente na espécie sob foco.

Logo, diante de tal prisma de análise, revela-se inviável a conduta dos Oficiais de Registro que afastam a incidência dos arts. 1º e 2º do Decreto-lei 1.537/1977.

Cabe ainda explicitar a segunda questão prejudicial à análise da constitucionalidade do preceito legal sob foco, consistente no fato de que os emolumentos devidos pelo desempenho de atividades cartoriais e de registro são preços públicos, não se enquadrando no conceito de taxas por ausência de compulsoriedade (art. 3º do Código Tributário Nacional), razão pela qual a União pode estabelecer isenções sem ofender o disposto no art. 151, III, da CRFB.

Com efeito, embora a atividade notarial e de registro seja específica e divisível, os respectivos emolumentos não são compulsoriamente exigidos de todos os seus usuários em decorrência direta/imediata da lei, mas tão-somente cobrados consoante a efetiva utilização de cada pessoa, de acordo com o preço tabelado, evidenciando tratarem-se de tarifas pela prestação de serviço público.

Ou seja, em face da prerrogativa de compulsoriedade, a taxa é cobrada dos possíveis usuários do serviço, sem que tenham explicitamente concordado (exemplo: taxa de esgoto), todavia, o preço público somente é exigido na exata medida da efetiva utilização do serviço público (exemplo: tarifa de água, emolumentos).

Assim, tendo em conta que os emolumentos constituem preço público, a isenção prevista nos arts. 1º e 2º do Decreto-lei 1.537/1977 não ofende o disposto no art. 151, III, da CRFB, devendo ser respeitada pelos Oficiais de Registro.

Sobre o tema, assinala-se que não se desconhece o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal quanto à natureza tributária dos emolumentos cartorários (cf. STF, RE 116.208-2, Moreira Alves, 20.04.1990), entretanto, não se poderia deixar de registrar o posicionamento contrário, ainda que com finalidade meramente explicativa.


3. ANÁLISE DA RECEPÇÃO DOS ARTS. 1º E 2º DO DECRETO-LEI 1.537/1977

Ultrapassadas as questões preliminares, passa-se para a averiguação da recepção da isenção dos arts. 1º e 2º do Decreto-lei 1.537/1977 pela Carta Magna, os quais possuem o seguinte teor:

Art. 1º - É isenta a União do pagamento de custas e emolumentos aos Ofícios e Cartórios de Registro de Imóveis, com relação às transcrições, inscrições, averbações e fornecimento de certidões relativas a quaisquer imóveis de sua propriedade ou de seu interesse, ou que por ela venham a ser adquiridos.

Art. 2º - É isenta a União, igualmente, do pagamento de custas e emolumentos quanto às transcrições, averbações e fornecimento de certidões pelos Ofícios e Cartórios de Registros de Títulos e Documentos, bem como quanto ao fornecimento de certidões de escrituras pelos Cartórios de Notas.

Verificada a substância dos preceitos legais sob análise, reitera-se que a negativa dos Oficiais de Registro lastra-se no argumento único de que a isenção da União ao pagamento dos emolumentos (arts. 1º e 2º do Decreto-lei 1.537/1977) não foi recepcionada pelo art. 151, III, da CRFB, o qual veda que o ente federativo maior institua isenções de tributos de competência dos Estados e Municípios.

Todavia, tal argumento não merece prosperar, porquanto a Lei Maior possui dispositivo específico atribuindo à União a competência legiferante para disciplinar a fixação de emolumentos:

Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

§ 1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

§ 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. (Grifou-se).

Do texto normativo transcrito, extraí-se que o art. 236, § 2º, da CRFB, confere competência legislativa plena para que a União disponha acerca dos emolumentos, inclusive estabelecendo isenções, sendo que os Estados, nesta área de atuação, devem limitar-se a suplementar as regras gerais federais, sem contrariá-las, nos termos do art. 24, §§ 1º a 4º, da CRFB.

Isso porque a interpretação da Constituição deve pautar-se pelos princípios da unidade, da harmonia, da máxima efetividade e da especialidade, no sentido de conferir coexistência harmônica e ampla eficácia para os preceitos constantes do seu texto, de modo a que o art. 236, § 2º, possa surtir seus efeitos na sua seara específica (disciplina jurídica dos emolumentos), sem que isso implique negativa de vigência ao previsto no art. 151, III.

Sobre o princípio da unidade, importa transcrever a seguinte lição de Luís Roberto Barroso:

O papel do princípio da unidade é o de reconhecer as contradições e tensões – reais e imaginárias – que existam entre as normas constitucionais e delimitar a força vinculante e o alcance de cada uma delas. Cabendo-lhe, portanto, o papel de harmonização ou "otimização" das normas, na medida em que se tem de produzir um equilíbrio, sem jamais negar por completo a eficácia de qualquer delas

. Também aqui, a simplicidade da teoria não reduz dificuldades práticas surgidas na busca do equilíbrio desejado e na eleição de critérios que possam promovê-lo. (in Interpretação e Aplicação da Constituição. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2003; grifou-se).

E, consoante a doutrina de J. J. Gomes Canotilho:

O princípio da unidade da constituição ganha relevo autônomo como princípio interpretativo quando com ele se quer significar que a constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias e antagonismos) entre as suas normas. Como ponto de orientação, guia de discussão e fator hermenêutico de decisão, o princípio da unidade obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar (ex.: princípio do Estado de Direito e princípio democrático, princípio unitário e princípio da autonomia regional e local). Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios. (in Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Medina, 2003. p. 1223/1224).

Outrossim, fixada a premissa de que persiste a competência federal para disciplinar a cobrança de emolumentos, consoante prevê o art. 236, § 2º, da CRFB, forçoso concluir que o Decreto-lei 1.537/1977, o qual trata sobre isenção da União ao pagamento de emolumentos, foi devidamente recepcionado materialmente pela atual ordem constitucional.

Nesse ponto, importa relembrar que o instituto da recepção procura preservar ao máximo a legislação infraconstitucional anterior, pautando-se pelo critério de compatibilidade material do texto legal anterior com o novo sistema constitucional, sem considerar aspectos meramente formais da elaboração legislativa, de modo a permitir que Decreto-leis sejam mantidos em vigor no patamar de leis ordinárias (art.59, III, da CRFB).

Nesse sentido, veja-se novamente o magistério de Luís Roberto Barroso:

As relações entre uma nova Constituição e uma lei a ela anterior situam-se na confluência desses dois princípios. O primeiro condena à invalidade e à ineficácia toda e qualquer norma incompatível com a Carta Constitucional. O segundo, de superlativo valor pragmático, procura preservar a vigência e a eficácia da legislação que vigorava anteriormente ao advento da nova Constituição. As Constituições de 1891 e 1934 positivaram a regra da continuidade da ordem jurídica, embora o princípio pudesse prescindir de texto expresso. As demais Cartas brasileiras não o reproduziram, mas jamais se questionou de sua permanência em nosso sistema.

[...]

Diferentemente se passa quando a incompatibilidade se dá entre a Constituição vigente e norma a ela anterior. Aí, sendo a incompatibilidade de natureza material, não poderá a norma subsistir. Conforme já estudamos, de acordo com a corrente doutrinária que se escolha, a norma será tida como revogada ou como inconstitucional, mas em qualquer caso não deverá ser aplicada. Não assim, porém, quando a incompatibilidade superveniente tenha natureza formal. Nessa última hipótese, tem-se admitido, sem maior controvérsia, a subsistência válida da norma que haja sido produzida em adequação com o processo vigente no momento de sua elaboração. Incidirá, assim, a regra tempus regit actum. (In Interpretação e Aplicação da Constituição. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 68 e 83; grifou-se).

Portanto, verificada a compatibilidade material dos arts. 1º e 2º do Decreto-lei 1.537/1977 com o art. 236, § 2º, da CRFB, inexistindo ofensa ao art. 151, III, da CRFB, ante a incidência dos princípios de interpretação constitucional acima explicitados, resta forçosa a ilação de que a isenção da União ao pagamento de emolumentos cartorários foi recepcionada pela atual Carta Magna, no patamar de lei ordinária.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Ainda com relação à correção da interpretação do art. 236, § 2º, da CRFB, no sentido de que a União pode estabelecer isenções de emolumentos, cabe destacar que, posteriormente à entrada em vigor da Constituição de 1988, o referido ente federativo afastou a incidência de emolumentos nas importações de partes, peças, componentes, matérias-primas, produtos industrializados e outros insumos vinculados à fabricação de produtos destinados à exportação, nos termos da Lei 8.387/1991, atualmente vigente a reiteradamente aplicada pelos Tribunais brasileiros (cf. STJ, RESP 188349, Garcia Vieira, 19.11.1998).

Para corroborar a argumentação acima delineada, veja-se o Parecer 002/1999, da Procuradoria da Fazenda Nacional no Rio Grande do Sul:

5.1.2. É de sublinhar, na passagem, para afastar a alegação de que na matéria, a criação de isenção por meio de lei federal, viola a autonomia dos Estados Federados, que o § 2º, do art. 236 da Constituição determina que "lei federal estabelecerá as normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro" (grifo do signatário), já que dentro das "normas gerais relativas aos emolumentos", certamente estão compreendidas as normas relativas à isenção ao seu pagamento".

E também o Supremo Tribunal Federal, expressamente e em diversas oportunidades, concluiu pela competência da União para estabelecer regras gerais acerca dos emolumentos cartorários, cabendo transcrever o seguinte trecho da ementa da ADI 1.926/PE, relatada pelo Ministro Sepúlveda Pertence:

Custas dos serviços forenses: matéria de competência concorrente da União e dos Estados (CF, art. 24, IV), donde restringir-se o âmbito da legislação federal ao estabelecimento de normas gerais, cuja omissão não inibe os Estados, enquanto perdure, de exercer competência plena a respeito (CF, art. 24, §§ 3º e 4º).

De modo similar, extraí-se do corpo do acórdão da ADI 1.709-3, relatada pelo Ministro Maurício Corrêa:

4. [...] Esta Corte firmou exegese segundo a qual a inércia da União em editar normas gerais sobre os emolumentos dos atos praticados pelos serviços notariais e de registro não impede que os Estados legislem sobre a matéria com base na competência suplementar que lhes confere o artigo 24, §§ 2º e 3º, da Carta da República.

E, especificamente com relação à isenção ao pagamento de emolumentos estabelecida pela União em seu favor, veja-se a ADI 1.790-MC, relatada pelo Ministro Sepúlveda Pertence, publicada no DJ de 08.09.2000:

A idoneidade em tese da disciplina de matéria tributária em medida provisória é firme na jurisprudência do Tribunal, de que decorre a validade de sua utilização para editar norma geral sobre fixação de emolumentos cartorários, que são taxas. Afirmada em decisão recente (ADI 1.800-MC) a validade em princípio da isenção de emolumentos relativos a determinados registros por lei federal fundada no art. 236, § 2º, da Constituição, com mais razão parece legítima a norma legal da União que, em relação a determinados protestos, não isenta, mas submete a um limite os respectivos emolumentos, mormente quando o conseqüente benefício às microempresas tem o respaldo do art. 170, IX, da Lei Fundamental.

Visto o entendimento uníssono do Pretório Excelso, cabe transcrever ainda a jurisprudência da Corte Federal da 4ª Região:

PROCESSO CIVIL. DESAPROPRIAÇÃO. PAGAMENTO DE PREPARO E EMOLUMENTOS. ART. 18 DA LEI COMPLEMENTAR Nº 76/93. EFEITOS. 1. O Decreto-Lei nº 1.537, de 13 de abril de 1977 é bem claro nos seus termos ao isentar a União, e por extensão, suas Autarquias, do pagamento de custas e emolumentos conforme dispõe o seu artigo 1º, a seguir transcrito: Art. 1º É isenta a União do pagamento de custas e emolumentos aos Ofícios e Cartórios de Registro de Imóveis, com relação às transcrições, inscrições e averbações e fornecimento de certidões relativas a quaisquer imóveis de sua propriedade ou de seu interesse, ou que por ela venham a ser adquiridos. Despiciendo observar que, não obstante referir, a aludida norma, a ´União´, seu alcance engloba esta Autarquia, por diversas razões, dentre as quais destacamos: a) conforme preconiza a lição do eminente Mestre Hely Lopes Meirelles, ´As autarquias brasileiras nascem com os privilégios administrativos (não políticos) da entidade estatal que as institui, auferindo também as vantagens tributárias e as prerrogativas processuais da Fazenda Pública, além do que lhe foram outorgados por lei especial, como necessários ao bom desempenho das atribuições da instituição´, (in Direito Administrativo Brasileiro, 17ª edição, 1992, pag. 312); b) a razão de que no desempenho de suas atribuições, está a de realizar o procedimento administrativo e propor a ação judicial pertinentes à desapropriação de imóveis rurais por interesse social, para fins de reforma agrária, dando assim efetividade à prerrogativa da União, insculpida no art. 184 da Constituição Federal e, c) e ao efetivar tal prerrogativa, materializa-se o contido no art. 1º do Decreto-Lei 1.537/77, uma vez que o interesse da União é evidente considerando o seu papel de promover a reforma agrária no País. E este procedimento é realizado pelo Incra em nome da União. Este dispositivo legal encontra-se ainda com sua vigência plena uma vez que não foi revogado por legislação a ele posterior, sendo recepcionado pela atual Constituição Federal, por força no § 2º do seu art. 236, sendo atribuída, pela Lei Maior, competência à lei federal para disciplinar sobre os emolumentos. Posteriormente, veio a Lei Complementar nº 76/93 a disciplinar a questão, conforme estabelece o seu artigo 18: As ações concernentes à desapropriação de imóvel rural por interesse social, para fins de reforma agrária, têm caráter preferencial e prejudicial em relação a outras ações referentes ao imóvel desapropriado, e independem do pagamento de pagamento de preparo ou de emolumentos. (grifos nossos) A interpretação que exsurge é a de que, no transcorrer da ação desapropriatória nenhum custo deverá ser acarretado à Autarquia expropriante, dado o caráter de interesse social existente no aludido procedimento. Assim, é plausível concluir que os emolumentos referente ao ato translativo da área desapropriada, por ser ocorrência integrante do procedimento desapropriatório não pode ser cobrado pelo Oficial do Cartório de Registro de Imóveis, a teor da Lei Complementar nº 76/93. O próprio legislador constituinte sinalizou para a completa desoneração dos procedimentos atinentes à reforma agrária quando no § 5º do art. 184, da CF/88, determinou a isenção de impostos federais, estaduais e municipais para as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária. Por oportuno, transcreve-se parte do despacho da MM. Juíza Relatora do Egrégio TRF da 4ª Região, Dra. Maria de Fátima Freitas Labarrère, proferido no AI de nº 98.04.03263-5:´(...) vislumbro o fumus boni juris nas alegações de que a Lei Complementar nº 76/93, exclui do pagamento de emolumentos as ações concernentes a desapropriação de imóvel rural por interesse social para fins de reforma agrária, pois tendo caráter de complementação à Constituição Federal prevalece sobre as normas estaduais. (...) (despacho publicado no DOJ em 30/01/98). Deve-se atentar, ainda, para o contido no art. 236, nas Disposições Constitucionais Gerais, onde se encontra a previsão de que os serviços notariais e de registro serão exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público, sendo que o seu § 2º assim determina: ´§ 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para a fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.´ A Lei nº 8.935, de 18/11/94, a conhecida Lei dos Notários, que regulamentou o art. 236, da Constituição Federal, ateve-se aos aspectos referidos no caput e nos §§ 1º e 3º, deixando de disciplinar, com maiores detalhes, a situação referente aos emolumentos. Daí exsurge, pacificamente, o entendimento de que compete à União exclusivamente legislar sobre os emolumentos, ainda que no tocante à fixação de normas de caráter geral, inexistindo, pois, norma federal específica a regular amplamente a situação. É de se ver, também, o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 24 da Constituição Federal, onde se verifica no segundo dispositivo o privilégio da União em legislar sobre normas gerais suspendendo a eficácia da lei estadual no que lhe for contrário. É de suma importância que se observe que o art. 22 da CF/88 dispõe sobre a competência privativa da União em legislar sobre direito agrário e questões relativas a desapropriação, enquanto que o art. 184 isenta a União, e por conseqüência o Incra, do pagamento de impostos federais, estaduais e municipais as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária. Desta forma, por força constitucional, está o Incra isento de pagar impostos em qualquer nível quando se tratar de área por ele desapropriada, deduzindo-se, assim, que também está isento de pagar emolumentos, como se verá mais adiante.

Mesmo que exista lei estadual regulamentando esses serviços notarias, a mesma não se aplica ao Incra, em razão do Decreto-Lei nº 1.537/77, do ordenamento constitucional, bem como em face do contido na Lei 8.629/93 e suas posteriores alterações via Medida Provisória. Com relação a esta Lei, que veio a regular os dispositivos constitucionais referentes à reforma agrária, o seu art. 26 assim previa: são isentas de impostos federais, estaduais e municipais, inclusive do Distrito Federal, as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária, bem como a transferência ao beneficiário do programa. Posteriormente, esta Lei foi alterada pela Medida Provisória nº 1.703-14, de 30/06/98, que no seu artigo 2º criou-lhe o art. 26-A, que assim dispõe: Não serão cobradas as custas ou emolumentos para registro de títulos de domínio de imóveis rurais desapropriados para fins de reforma agrária. Com a edição da Medida Provisória nº 1.901-29, de 27/08/99 e mais recentemente com a MP nº 2.109-47, de 27/12/2000 e suas reedições, foi mantida a redação do art. 26-A acima transcrito. Tomando-se em conta que as MPs foram devida e sucessivamente reeditadas, dentro do prazo legal, são válidas e eficazes, tendo, portanto, Força de Lei, conforme entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal. Não resta dúvidas que a Lei 8.629/93 e suas alterações posteriores, tratam exclusivamente de matéria referente à desapropriação, portanto, inserida na competência privativa da União prevista no art. 22, II da CF/88, estando, assim, acima de qualquer lei estadual que com ela conflite. Como ilustração, registra-se o pensamento do Ministro Carlos Mario da Silva Velloso: ´A competência legislativa da União está inscrita no art. 22, incisos I a XXIX, da Constituição. Praticamente todas as matérias ali inscritas são da competência exclusiva da União. Excetuam-se apenas: a) no inciso I do art. 22, o Direito Processual, por isso que compete, concorrentemente, à União, aos estados e ao Distrito Federal legislar sobre custas do serviço forense (art. 24, M, criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas (art. 24, X), procedimentos em matéria processual (art. 24, XI) e assistência jurídica e defensora pública...´ (´Estado Federal´... op.cit., p. 298) - (A Constituição na Visão dos Tribunais-TRF 1ª R.- vol. 1 - arts. 1º a 43 - 1997, pag. 287) Entende a Autarquia que a questão aqui tratada não é de ordem tributária, mas sim de ordem legal e constitucional, no sentido de que a isenção prevista a legislação ora citada são de aplicação imediata e difere de lei estadual que regulamenta os tributos a serem pagos a título de serviços.

Isto porque, a questão deve ser analisada sob o ponto de vista da legalidade e legitimidade da União, ao regulamentar dispositivos constitucionais, dentro de sua competência privativa, em matéria de desapropriação, em isentar o Incra, que por sua vez representa a União, de arcar com custas e emolumentos por ocasião de registrar a transcrição de domínio. Também, não se pode ver aqui, conflito de normas de isenção, com base no art. 151, III, da CF/88, como entendeu o Juiz a quo, uma vez que a própria Constituição Federal, em suas Disposições Gerais estabeleceu que a fixação dos emolumentos, pelo menos em suas regras gerais, seria objeto de lei federal. É oportuno verificar que aos Estados e, mais especificamente, ao Poder Judiciário Estadual, a Lei nº 8.935/94, incumbiu a mera fiscalização do exercício das atividades notariais e de registros públicos, assim sendo, não pode ser negado, à União, o poder de isentar a si própria e às suas Autarquias do pagamento de emolumentos, principalmente quando esse pagamento diz respeito à matéria desapropriatória. Conclui-se com tudo isto, que levando-se em consideração a competência privativa da União em legislar sobre questão agrária e desapropriação, detém ela, o poder de através de lei específica, isentar o Incra, por ser o órgão responsável pelo processo de desapropriação, isentá-lo dos encargos cobrados pelos Cartórios de Registro de Imóveis à título de emolumentos. 2. Com efeito, essa é a melhor exegese dos artigos Constitucionais invocados, a que melhor atende à sua finalidade e ao próprio espírito da Constituição, o que não deve ser desprezado pelo intérprete. Scire leges non est verba earum tenere, sed vim ac potestatem (CELSO, Dig. 1, 3, 7). Nesse sentido, ademais, a distinção no direito constitucional americano entre a interpretação em sentido estrito e a construction, na lição de THOMAS COOLEY, verbis: "Construction, on the other hand, is the drawing of conclusions, respecting subjects that lie beyond the direct expressions of the text, from elements known from and given in the text; conclusions which are in the spirit, though not within the letter of the text." (in A Treatise on the Constitutional Limitations, 7ª ed., p. 70) Da mesma forma, o ensinamento de WILLIAM BLACKSTONE, verbis: "(...) the most universal and effectual way of discovering the true meaning of a law, when the words are dubious, is by considering the reason and spirit of it; (...)" (in Commentaries on the Laws of England, J. B. Lippincott Company, Philadelphia, 1896, v. 1, p. 60, nº 5). 3. Agravo de instrumento conhecido e provido. (TRF4, processo 2001040107078560-RS, Thompson Flores Lenz, 27.08.2002).

E, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região:

ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL PARA PROCESSAR E JULGAR O FEITO. ART. 109 DA CF/88. AUTORA. AUTARQUIA FEDERAL. DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA. INCRA. ISENÇÃO DE PREPARO E EMOLUMENTOS. ART. 1º DO DECRETO-LEI 1.537, DE 13 DE ABRIL DE 1977. ART. 26-A DA LEI Nº 8.629, DE 25 DE FEVEREIRO DE 1993. SENTENÇA MANTIDA. REMESSA OFICIAL IMPROVIDA. 1. Em face do que dispõe o art. 109, I, da Constituição Federal, é o juiz federal competente para o processar e julgar o feito, no qual é autora autarquia federal. 2. A teor do que dispõem os arts. 1º e 2º do Decreto-lei nº 1.537, de 13 de abril de 1977, "é isenta a União do pagamento de custas e emolumentos aos Ofícios e Cartórios de Registro de Imóveis, com relação às transcrições, inscrições, averbações e fornecimento de certidões relativas a quaisquer imóveis de sua propriedade ou de seu interesse, ou que por ela venham a ser adquiridos, igualmente, do pagamento de custas e emolumentos quanto às transcrições, averbações e fornecimento de certidões pelos Ofícios e Cartórios de Registros de Títulos e Documentos, bem como quanto ao fornecimento de certidões de escrituras pelos Cartórios de Notas". 3. De acordo com o art. 3º do Decreto-lei nº 1.110, de 09 de julho de 1970, "o INCRA gozará, em tôda plenitude dos privilégios e imunidades conferidos pela União, no que se refere aos respectivos bens, serviços e ações". 4. Resta evidenciado que a União, benefício o qual se estende ao INCRA, autarquia federal, goza da isenção do pagamento de custas e emolumentos aos Ofícios e Cartórios de Registro de Imóveis no que concerne ao fornecimento de certidões para instruir o processo desapropriatório. 5. Tal benefício se estende às autarquias federais, a uma, porque elas gozam das mesmas prerrogativas processuais da Fazenda Pública. A duas, porquanto, sua atribuição consiste na realização do procedimento administrativo, assim como, a proposição da ação judicial referente à desapropriação do imóvel rural, por interesse social, para fins de reforma agrária, atribuindo efetividade à prerrogativa da União prevista no art. 184 da Constituição Federal de 1988. 6. Remessa ex officio improvida. (TRF5, REO 86786, Francisco Cavalcanti, 22.06.2004).

Diante de todo o exposto, não resta dúvida de que o Decreto-lei 1.537/77, o qual trata sobre isenção da União ao pagamento de emolumentos cartorários, foi devidamente recepcionado pela atual ordem constitucional, consoante exegese do art. 246, § 2º, da CRFB, encontrando-se em plena vigência.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Orlando Luiz Zanon Junior

juiz de Direito substituto em Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. Constitucionalidade dos arts. 1º e 2º do Decreto-lei nº 1537/1977.: Recepção da isenção da União quanto ao pagamento de emolumentos aos cartórios estaduais perante a Constituição da República Federativa do Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1065, 1 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8362. Acesso em: 28 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos