Como é de amplo conhecimento, a elaboração de Plano Diretor para orientar o desenvolvimento urbano era, até 1988, uma faculdade de nossos governos municipais. Decerto, muitas experiências ocorreram e foram relevantes para construção do quadro atual.
Sem pretensões de descortinar esse processo, pode-se apontar o transcurso de todo um século entre os primeiros debates públicos sobre a conveniência dos planos de embelezamento das cidades brasileiras e a obrigatoriedade do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, tal qual hoje o conhecemos. [01]
É inevitável ligar esses fatos ao avanço do positivismo científico e ao germinar do urbanismo moderno no exterior, especialmente no começo do século XX. Tudo isso leva à modificação da visão e (do discurso) sobre cidade, com manifesta repercussão no planejamento urbano. Passa-se da "cidade bela" para a "cidade eficiente". [02] Esta é, sobretudo, um lugar de produção de riquezas, e não só imobiliárias. É fundamental, então, ordenar toda a cidade, organizando suas partes e seus sistemas de modo racional, rumo ao progresso, o que torna o plano e o planejamento ainda mais necessários. Para a ótica moderna, embebida de racionalidade, esses são os meios por excelência para orientar qualquer ação humana, sobretudo as de maior complexidade.
Como é amplamente apontado na literatura nacional e estrangeira sobre o assunto, houve também conveniências políticas para tal evolução. Não deixava de ser interessante apresentar as dificuldades vivenciadas como "problemas urbanos", fruto da falta de planejamento adequado, deixando em segundo plano a brutal injustiça da sociedade brasileira.
Nesse contexto surgiu, em nosso país, o que chamamos hoje de "Plano Diretor", ainda que os nomes, os enfoques, as metodologias e as abordagens tenham variado de modo significativo. A par de suas peculiaridades, o Plano Agache, apresentado em 1930 para o Rio de Janeiro, é visto por Villaça como o precursor, ao adotar a perspectiva de abranger de uma só vez várias "questões urbanas", a partir dos objetivos desejados.
A partir da década de 1960, os planos urbanísticos locais voltados para toda a cidade apresentam-se em quantidade mais expressiva e em muitos casos já são traduzidos diretamente em lei formal. Em certas situações, sob essa nomenclatura abriga-se algo mais próximo a um Código de Urbanismo, reunindo normas de parcelamento, uso e ocupação do solo. [03] Em outros, já se desenha mais nitidamente o papel de disciplinamento inicial sobre os aspectos urbanos, a depender de outras normas complementares. [04] Normalmente incorporam o zoneamento e contêm disposições sobre o sistema viário. Para as grandes metrópoles brasileiras foram elaborados os Planos Diretores de Desenvolvimento Integrado (PDDI), orientando não só a organização do espaço físico, mas também o desenvolvimento social e econômico local.
A implantação do governo militar acirrou o discurso em prol do planejamento. O forte viés tecnocrático no caso do desenvolvimento urbano era personificado pelo Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU), que colocava para os Municípios, como condição para obtenção do financiamento federal, a absorção da lógica vigente em Brasília; [05] por vezes isso levava à exigência de elaboração de um Plano Diretor. É o momento maior da modernidade no planejamento urbano no Brasil. A preocupação principal se voltava para elaboração de modelos e padronizações compatíveis com a realidade brasileira e a ênfase era a racionalização dos custos de urbanização, objetivando maior eficiência econômica. Diagnósticos extensos, levantamento de dados quantitativos, proliferação de índices para medir as necessidades e as qualidades urbanas eram a tônica. Anos mais tarde uma personagem importante já naquela época, refletindo sobre suas atividades nos anos 70, confessa que viveu, como outros, a "síndrome do planejamento". [06] Mesmo aí não existia mandamento legal a cobrar dos Municípios a edição de seu plano de desenvolvimento urbano.
Do ponto de vista formal, e a meu ver também do ponto de vista material, a Constituição brasileira de 1988 alterou significativamente o cenário. Com efeito, trouxe do ponto de vista jurídico o dever de promulgação do Plano Diretor aos Municípios cuja cidade tivesse mais de vinte mil habitantes (art. 182, § 1º). Todavia, não assinalou o prazo para realização daquela exigência, tornando difícil caracterizar as situações de violação ao preceito. Além disso, não previu claramente a sanção aplicável aos inadimplentes. Prevaleceu a impressão de que a obrigatoriedade da edição do instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana era norma imperfeita, desprovida de conseqüência jurídica, embora parecesse aceitável argüir, nesses casos, a improbidade administrativa, ao menos diante de inércia injustificável perante o dever de observar mandamento constitucional. O fato é que se uma parte dos Municípios ao longo da década de 90 procurou observar a determinação constitucional, outros permaneceram inertes, sem que se conheça qualquer punição em decorrência disso.
Com o advento da Lei Federal nº 10.257/01, autodenominada Estatuto da Cidade, deu-se maior efetividade à obrigação prevista desde a Carta Constitucional. Isto porque aquele Diploma Legal contemplou finalmente o prazo máximo para elaboração do Plano Diretor para os Municípios com mais de vinte mil habitantes em suas cidades e também para aqueles inseridos em região metropolitana [07]: cinco anos, contados a partir do início da vigência do Estatuto da Cidade, período que se encerra em 10 de outubro de 2006.
Quanto à sanção, tornou explícito aquilo que figurava tácito no ordenamento vigente: o Prefeito que não tomar as providências necessárias para o cumprimento de tal obrigação incorrerá em improbidade administrativa (art. 50 c/c art. 52, VII). Aqui é oportuno o seguinte esclarecimento. De acordo com a Lei Federal nº 8.429/92, há três grandes categorias de improbidade administrativa, cada qual submetida a um grupo mais específico de sanções. O Estatuto da Cidade não identifica qual seria o tipo de improbidade existente, mas por força lógica o enquadramento será na categoria dos atos que atentam contra os princípios da Administração Pública, o que inclui qualquer ação ou omissão a violar os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições. [08]A inobservância do prazo assinalado em lei é desrespeito evidente ao princípio da legalidade. Portanto, o Prefeito ficará sujeito a "ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos". [09]
Existem muitas considerações sobre o Plano Diretor a partir do ordenamento jurídico brasileiro pós-Estatuto da Cidade. Claramente ele deve ser aprovado por lei (art. 182, § 1º da CRFB e art. 40 da LF nº 10.257/01) e tem o status de lei fundamental do Direito Urbanístico e do sistema de planejamento local (art. 182, § 1º da CRFB e art. 40, § 1º da LF 10.257/01). Há mais coisas a se afirmar, mas a pergunta a que este artigo pretende responder é mais detidamente a seguinte: quais Municípios precisam elaborar seu Plano Diretor até 10 de outubro de 2006?
Muita confusão gira em torno do assunto. O texto legal associado à boa interpretação, apoiada na finalidade e na sistemática de nosso ordenamento jurídico, parece-me permitir o esclarecimento da questão. Para isso, é fundamental conhecer o artigo 50 do Estatuto da Cidade em sua íntegra:
Os Municípios que estejam enquadrados na obrigação prevista nos incisos I e II do art. 41 desta Lei que não tenham plano diretor aprovado na data de entrada em vigor desta Lei, deverão aprová-lo no prazo de cinco anos.Art. 50.
Os incisos I e II do artigo 41 são aqueles que tratam da obrigatoriedade de elaboração de Plano Diretor para os Municípios com mais de vinte mil habitantes em suas cidades e também para aqueles inseridos em região metropolitana. A redação do dispositivo é aparentemente clara: refere-se aos Municípios que não têm Plano Diretor aprovado na data inicial da vigência do Estatuto da Cidade. Como entendo pela inconstitucionalidade do inciso II do artigo 41 - que inova em relação ao texto constitucional em desapreço à autonomia municipal - fixo-me no inciso restante para fazer a afirmação mais fácil: os Municípios cuja cidade possui mais de 20.000 habitantes, se não detinham nenhum Plano Diretor em 10 de outubro de 2001, precisam ter seu Plano aprovado por lei até 10 de outubro de 2006.
É freqüente ouvir entre urbanistas e juristas a afirmação de que a obrigação se estende aos Municípios que elaboraram seu Plano Diretor antes da vigência do Estatuto da Cidade, especialmente se não contemplaram os instrumentos previstos na lei federal. Eles deveriam agora promover revisão para compatibilizá-lo com o novo marco jurídico nacional.
Decerto isso não se encontra redigido no artigo 50. Uma coisa é não ter Plano Diretor; outra é possuir Plano Diretor que não contemple tudo o que o Estatuto da Cidade apresenta aos Municípios. O texto legal refere-se vivamente à primeira situação. É difícil enxergar através da redação o intuito de alcançar todos os Municípios que tenham Plano Diretor em algum grau de desconformidade com o Estatuto da Cidade. Mas como a interpretação literal não é a mais recomendada no Direito, passemos à intenção da norma e a sua inserção em nosso ordenamento jurídico, de modo a apurar a extensão do mandamento legal.
Afigura-se razoável deduzir a opção do Estatuto da Cidade em buscar respeitar o processo de planejamento urbano daqueles Municípios que, diante do texto constitucional, lograram elaborar o respectivo Plano Diretor, de acordo com as normas vigentes à época. Em face do princípio da segurança jurídica seria até mais natural concluir dessa forma. Diante da complexidade que é fazer um Plano Diretor, afigura-se uma temeridade considerar que o Estatuto da Cidade teria "zerado" todas as experiências municipais, inclusive aquelas recém-concluídas. Isso corresponderia a um atropelo institucional de grandes proporções, haja vista que os Municípios não teriam como adotar conteúdo tão alinhado com tudo aquilo que permite a lei federal promulgada em 2001. Deveriam ser prematuramente desprezados os Planos feitos um, dois, três, quatro ou cinco anos antes das diretrizes nacionais, mesmo quando discutidos amplamente com a comunidade e fiéis às regras vigentes durante sua elaboração?
A resposta para essa indagação não é mansa e pacífica. Existe pelo menos uma obra de relevo que diretamente estende a obrigação prevista no artigo 50 do Estatuto da Cidade
"(...) aos Municípios que já têm Plano Diretor, que porém não atendam os requisitos constitucionais do artigo 182 da Constituição federal e os critérios para a sua aprovação previstos no artigo 40 do Estatuto da Cidade, bem como não dispõem do conteúdo mínimo definido no artigo 42". [10]
Em verdade, é de se considerar que a citação acima merece ser desmembrada. Os Municípios que têm Plano Diretor em desacordo com os requisitos constitucionais são inconstitucionais desde sua origem e, portanto, não são – e nunca foram – válidos. Pelo tratamento dado à nulidade em nosso Direito, estão, sim, contemplados no artigo 50 da Lei Federal nº 10.257/01, ou seja, devem fazer seu Plano Diretor até 10 de outubro de 2006. Quanto à inobservância dos artigos 40 e 42 do Estatuto da Cidade é interessante compreender as nuances de nosso Estado Federal.
O artigo 24 da Constituição brasileira trata da chamada competência legislativa concorrente. É ali que se insere o Direito Urbanístico (inciso I), para o qual compete à União editar normas gerais, a fim de garantir a uniformização necessária em todo o território nacional. Os Estados e o Distrito Federal podem suplementar as normas gerais e, no caso do Direito Urbanístico, também assiste ao Município fazê-lo, por força do evidente interesse local (arts. 30, I e II). Em seu § 4º, o artigo 24 deixa claro que a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário; certamente à lei estadual se junta a lei municipal. Essa constatação pode precipitar o juízo de alguns no sentido de que o Estatuto da Cidade tenha mesmo lançado por terra todos os Planos Diretores que não se anteciparam ao seu conteúdo.
Ocorre que o legislador deve agir com razoabilidade e proporcionalidade. Precisa pensar também na segurança jurídica, evitando medidas exageradas que ultrapassem os lindes do que é estritamente necessário para assegurar a finalidade pública da nova lei.
Considero correta nesse cenário a assertiva de que os casos de grave desconformidade com o Estatuto da Cidade – de frontal oposição ao que é exigível por ele – terão o condão de impor, do ponto de vista estritamente jurídico, a devida compatibilização do Plano Diretor até 10 de outubro de 2006.
Nesse sentido compartilho da premissa por trás da lição acima destacada, mas divirjo quanto à identificação dos pontos considerados referenciais. Os problemas estruturais profundos estariam, a meu ver, relacionados a dois aspectos: a abrangência territorial e a organização do sistema de planejamento urbano. Quanto ao primeiro, o Plano Diretor deve contemplar todo o território municipal, não sendo aceitável que se prolongue no tempo aquele instrumento básico que, por exemplo, deixou de fora a área rural do Município e/ou as unidades de conservação (art. 40, § 2º da LF nº 10.257/01). Quanto ao segundo aspecto, é inadmissível que perdure, para além da tolerância dos cinco anos, o Plano Diretor que não busca sistematizar, pelo menos em linhas gerais, a atividade planejadora. Nesses casos, no mínimo o ajuste necessário deverá ser promovido.
Verifica-se aí, portanto, uma aplicação diferenciada do artigo 50 do Estatuto da Cidade, a fixar prazo de cinco anos, em rigor, não propriamente para elaboração, mas, sim, para adaptação do instrumento básico da política urbana. Reconheça-se, a redação do dispositivo legal não é categórica nesse sentido, pois focaliza mais claramente o Município sem Plano Diretor, mas há espaço para se cogitar que a obrigação aqui não se satisfaça com a mera formalidade, independentemente de sua adequação para cumprir a missão constitucional. Por força das circunstâncias, não cabe aqui pregar a suspensão da eficácia daquela lei local, mas sim a necessidade de sua pronta adaptação às novas condições nacionais. Na falta de fixação de um prazo específico para tanto, devemos recorrer àquele do artigo 50.
Entretanto, não me parece aceitável a premissa pela qual todos os Municípios obrigados a ter Plano Diretor, após o Estatuto da Cidade, estariam forçados a prever nele os seguintes instrumentos urbanísticos: parcelamento, edificação e utilização compulsórios, IPTU progressivo no tempo, desapropriação mediante títulos da dívida pública, direito de preempção, outorga onerosa do direito de construir, operação urbana consorciada e transferência do direito de construir. Esse conteúdo mínimo seria aparentemente exigido pelo artigo 42, I e II da Lei Federal nº 10.257/01. [11]
A ilação feita por alguns é a seguinte: se a legislação federal exige conteúdo mínimo ao Plano Diretor, aquele que desatende esse requisito não cumpre sua finalidade, logo a situação exigiria reparo. Por essa perspectiva, os Municípios com Plano Diretor em tais condições haveriam de observar também o prazo de 10 de outubro de 2006, para compatibilizá-lo com o que requer as normas gerais de desenvolvimento urbano.
Com todo respeito aos muitos autores que pensam o contrário, nem do ponto de vista político-democrático, nem do ponto de vista jurídico-constitucional parece viável o entendimento segundo o qual o Plano Diretor precise conter previsões sobre este ou aquele instrumento, por imposição de normas elaboradas pela União, o que faria pressupor sua adoção compulsória.
Visivelmente, a crítica dirige-se à infeliz redação do artigo 42 do Estatuto da Cidade. Não se pode levar ao pé-da-letra a obrigatoriedade de o Plano Diretor delimitar as áreas de incidência do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios. Nem mesmo que ele deva dispor sobre o direito de preempção, a outorga onerosa, a transferência do direito de construir e a operação urbana consorciada. O motivo é muito simples: é o Município, cada Município, que deve definir os instrumentos adequados para seu desenvolvimento urbano. Como determinar a adoção daquelas ferramentas a título nacional, independentemente da apreciação pelos Municípios de quais são os problemas a serem enfrentados e sem discuti-los com a comunidade local? Isso é até mesmo contraditório às práticas do bom planejamento. É não só colocar a carroça na frente dos bois, como também tentar empurrá-la na direção da autonomia municipal. A sorte é que, nessas condições, a carroça não pode cumprir bem seu destino, não só pela má-disposição de seus elementos, mas também porque ela haveria de passar por cima da Constituição, algo inadmissível em nosso Estado Democrático e de Direito.
Para salvar-se o texto do Estatuto da Cidade da pecha de inconstitucional, só há uma saída: concluir que o Plano Diretor deverá conter as previsões indicadas no Estatuto da Cidade, em relação aos instrumentos ali descritos, tão-somente se o Município, em seu processo participativo, entender que é necessário recorrer a eles. O que existe ali é o condicionamento do exercício de uma faculdade municipal: se o Município quiser adotar tais instrumentos, deverá fazê-lo a partir do seu Plano Diretor, definindo nele alguns aspectos de sua aplicação. Até aí não há motivo para se falar em violação da autonomia municipal, pois essa necessidade se extrai do papel evidente da lei básica do desenvolvimento urbano no sentido de externalizar as ferramentas para levar adiante a estratégia delineada.
A fim de adequar os incisos I e II do artigo 42 do Estatuto da Cidade com nossa ordem constitucional, é inevitável ler nas entrelinhas uma ressalva: a obrigatoriedade existe, se o Município optar pela utilização daqueles instrumentos. Emprega-se aqui o remédio que o Direito Constitucional denomina de "interpretação conforme à Constituição", pelo qual o intérprete precisa adaptar o que está escrito na lei ordinária à Constituição brasileira, ajustando o que for necessário para impedir que a literalidade da norma infraconstitucional avance contra a Lei Maior. [12] Faça-se notar o próprio artigo 182, § 4º da Carta Política, que teria ampla liberdade para impor obrigações ao Município, mas contempla tão-somente como faculdade a adoção dos instrumentos que punem o proprietário do imóvel não utilizado, subutilizado ou não edificado. Como advogar que uma lei ordinária transformaria as mesmas sanções como figuras obrigatórias da legislação local?
Não tenho dúvidas de que a omissão do Plano Diretor quanto aos instrumentos do Estatuto da Cidade é capaz de trazer sérios prejuízos na luta pelo desenvolvimento urbano e pela justiça social. Limita-se o arco da atuação do Município, algo no mínimo temerário do ponto de vista urbanístico, diante do enorme desafio de gerir nossas cidades, sobretudo as mais complexas. Deixa-se de fruir de ferramentas capazes de, entre outras coisas, combater a especulação imobiliária e os vazios urbanos e recuperar a renda fundiária fruto de investimentos públicos (mais-valia urbana). Tal defasagem, em certos casos, é mais que uma inadequação: tem ares de perpetuação e até mesmo agravamento das mazelas sociais.
Apesar disso, ao menos em situações normais, não se afigura correto afirmar a obrigação tipicamente jurídica – cobrável pela via judicial e passível de sanção - no sentido de rever o Plano Diretor para incluir os instrumentos arrolados no artigo 42, I e II da Lei Federal nº 10.257/01. É importante lembrar que nem todos os problemas de ordem política são apreciáveis pela via judicial. Nesses casos, quem precisa entrar em campo é a sociedade, cobrando e pressionando pela defesa do interesse público ou, em outra ótica, pelo avanço do governo em determinada direção.
A mesma consideração não parece aplicável ao inciso III do citado art. 42. Isto porque, independentemente dos caminhos escolhidos, é inerente ao espírito do planejamento, exigido na Lei Maior, o acompanhamento e o controle da implementação do plano. É a forma de se confirmar na prática os acertos e os equívocos da estratégia traçada e, conforme o caso, alterar a rota. Logo, o eventual silêncio do Plano Diretor precisa ser rompido; a supressão desse quadro pelos agentes políticos é exigível, sob pena de responderem juridicamente em caso de inércia.
Reitero, portanto, meu ponto de vista de que os Municípios com Plano Diretor aprovado quando o Estatuto da Cidade entrou em vigor apenas terão o dever jurídico de adaptá-lo até 10 de outubro de 2006, caso sua abrangência territorial não alcance todo o território municipal ou desde que não haja pelo menos o delineamento do sistema de planejamento urbano, incluindo as tarefas de acompanhamento e controle. Na primeira condição, remeto-me ao artigo 40, § 2º da Lei Federal nº 10.257/01, concordando, em parte, com a lição transcrita. Quanto ao § 4º desse mesmo dispositivo, considero que ele apenas evidencia aquilo que está implícito na Constituição da República como condição de validade para elaboração do Plano Diretor: a participação popular (art. 29, XII); ou seja, a inobservância de audiências públicas e debates com a população e a inexistência de acesso aos documentos e informações produzidos acerca do desenvolvimento urbano decerto depõe contra a constitucionalidade daquela lei municipal.
Há uma outra situação a merecer destaque; embora no rigor técnico não se trate de elaboração de Plano Diretor, é hipótese bastante assemelhada, sobretudo nos aspectos práticos. Refiro-me aos Municípios que possuíam Plano Diretor com mais de dez anos de vigência quando o Estatuto da Cidade entrou em vigor. Aquele Diploma Nacional torna compulsória a revisão do Plano Diretor após dez anos do início de sua vigência, se outro prazo menor não for aplicável por força de dispositivo local (art. 40, § 3º). Trata-se de limite máximo dentro do qual o Município deverá rediscutir seu desenvolvimento urbano em seara mais ampla.
A revisão periódica, em regra, estabelece que a partir de determinado momento necessariamente sejam repensadas as premissas gerais do desenvolvimento urbano local, isto é, fixa um tempo-limite para tal prática, dando-lhe ares de compromisso jurídico. O tratamento não deixa de ser consentâneo com a lógica da modernidade, de progredir por etapas e de refletir sobre a experiência acumulada (reflexividade). [13]
Se não era prática das mais vivenciadas, a revisão decenal estava presente como indicação entre os planejadores e até mesmo como regra em muitos Planos Diretores e/ou Leis Orgânicas Municipais.
Pois bem, é razoável concluir que são inadequados perante nosso ordenamento jurídico os Planos Diretores que estavam em cena há mais de dez anos, quando entrou em vigor o Estatuto da Cidade. Essa compreensão se reforça pela premissa do planejar permanente. Se o planejamento é atividade contínua, seus frutos têm que ser colhidos na época certa e a título nacional passa a ser obrigação de muitos Municípios brasileiros não só ter Plano Diretor, mas de revê-lo, no máximo, a cada década.
Nesse quadro é de se apontar que mesmo sendo omissa a legislação local, o Estatuto da Cidade requer, desde sua entrada em vigor, a revisão dos Planos Diretores com dez ou mais anos. Os Municípios nessa condição também se incluem no qüinqüênio assinalado no artigo 50 da Lei Federal 10.257/01 para promover, nesse caso, a revisão daquele instrumento básico. Como inexiste prazo específico para a revisão, integra-se o sistema de normas com o uso da analogia, admitida para o caso dada à semelhança entre o dever de revisão e o dever de elaboração do Plano Diretor a partir da vigência das diretrizes nacionais. Faça-se notar que a inobservância do prazo revisional é capaz de evocar também a improbidade administrativa (art. 52, VII).
Há de se concluir que, em última análise, a obrigação não é de o Prefeito fazer aprovar a Lei de Elaboração/Revisão do Plano Diretor no prazo assinalado; isto não se coaduna com nosso regime democrático. Caberá ao Chefe do Poder Executivo, sim, apresentar projeto de lei adequado e consistente, feito com participação popular, em tempo hábil para a Câmara Municipal, também com audiências públicas, deliberar sobre a proposta. Em outras palavras, o Prefeito haverá de apresentá-lo em período razoável para a Câmara apreciá-lo e votá-lo até 10 de outubro de 2006. Daí para frente é muito difícil caracterizar sua responsabilidade pelo descumprimento da obrigação legal.
Por todo exposto conclui-se:
- Os Municípios cuja cidade possui mais de 20.000 (vinte mil) habitantes e sem qualquer Plano Diretor em 10 de outubro de 2001 devem ter seu instrumento básico aprovado como lei até 10 de outubro de 2006;
- Os Municípios cuja cidade possui mais de 20.000 (vinte mil) habitantes e que em 10 de outubro de 2001 tinham Plano Diretor sem abranger todo o território e/ou omisso quanto à organização do sistema de planejamento devem suprir essas omissões até 10 de outubro de 2006;
- A omissão quanto aos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, por si só, não obriga os Municípios a rever o Plano Diretor até 10 de outubro de 2006, embora se encontrem posições doutrinárias em contrário;
- Os Municípios que tinham Plano Diretor com mais de 10 (dez) anos de vigência em 10 de outubro de 2001 devem promover sua revisão até 10 de outubro de 2006.
É certo que algumas peculiaridades locais podem exigir a ponderação das conclusões acima expostas, mas, como toda ponderação, isso terá que ser feito à luz de cada caso.
Notas
01 VILLAÇA, Flávio. Uma Contribuição para a História do Planejamento Urbano no Brasil In O Processo de Urbanização no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2004, p. 169- 243.
02 As expressões entre aspas são utilizadas por Villaça, na obra citada, p. 199.
03 É por exemplo o caso do Plano Diretor de Porto Alegre estabelecido pela Lei Municipal nº 2.330/61, conquanto ali não se tratasse do parcelamento do solo.
04 Como referências, mencionem-se os Planos Diretores de Curitiba (Lei Municipal nº2828/66) e de Pelotas (Lei Municipal nº 1.672/68).
05 No artigo O Plano Diretor e o Governo dos Municípios, Alexandre Santos e Tereza Cristina Baratta revelam que o "SERFHAU funcionou para reproduzir, no nível municipal, a ideologia tecnocrática consolidada pelos governos militares", a fim de que o Município entrasse na era da modernidade a partir da absorção dos instrumentos de planejamento (Revista de Administração Municipal nº194). Ver também Estatuto da Cidade - Guia para Implementação pelos Municípios e Cidadãos. Brasília: Câmara dos Deputados, 2001, p.40.
06 Refiro-me à Maria Adélia Aparecida de Souza, coordenadora da elaboração da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, peça integrante do Plano Nacional de Desenvolvimento para o período de 1974-1979; a confissão se encontra no artigo O II PND e a Política Urbana Brasileira: Uma Contradição Evidente, In O Processo de Urbanização no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2004.
07 Os Municípios inseridos em região metropolitana teriam obrigação de elaborar Plano Diretor a partir de norma prevista no Estatuto da Cidade. A inovação é polêmica como registro no livro O Plano Diretor e o Estatuto da Cidade, disponível em marcoscorreiagomes.com.
08 É a posição manifestada, entre outros, por Diógenes Gasparini, In O Estatuto da Cidade, edição citada, p. 217 - 218.
09 Artigo 12, III da Lei Federal nº 8.429/92.
10Estatuto da Cidade: Guia para Implementação pelos Municípios e Cidadãos. Brasília, 2001, p. 60 - 61.
11 Registre-se a posição pela obrigatoriedade desse conteúdo mínimo, entre outros, de: José dos Santos Carvalho Filho (Comentários ao Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: lúmen Júris, 2005, págs. 286 a 289); Nelson Saule Júnior (Estatuto da Cidade Comentado. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, págs. 278 a 293), Diógenes Gasparini (O Estatuto da Cidade. São Paulo: NDJ, 2002, págs. 203 e 204). Todavia, nenhum deles conclui expressamente pelo dever de revisão do Plano Diretor em cinco anos, caso aquele diploma legal municipal seja omisso.
12 CANOTILHO. J.J Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p 1099-1100.
13 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: UNESP, 1991, págs. 43 a 51. Em suma o autor afirma que "a reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando constitutivamente seu caráter".