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Características atuais do contrato de compra e venda

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08/05/2006 às 00:00
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6. Deveres do Vendedor e do Comprador

É dever essencial do vendedor entregar a coisa e obrigar-se a transmitir a posse e a propriedade ou somente a posse, se apenas desta for titular. O vendedor cumpre sua prestação de entregar a coisa e outras prestações acessórias que tenham sido objeto do ajuste. Como diz Pontes de Miranda [09] o vendedor precisa ter o poder de dispor e querer dispor, para que possa consentir e consinta. A propriedade há de ser sem gravame e sem ônus, salvo se o comprador consentiu, após devidamente informado. Por isso é comum na prática negocial dizer-se que a coisa está "livre e desembaraçada".

O art. 197 do Código Comercial, revogado pelo art. 2.045 do Código Civil, estabelecia regra cujo conteúdo continua sendo aplicável, porque integra a natureza do contrato de compra e venda: "Logo que a venda é perfeita (art. 191), o vendedor fica obrigado a entregar ao comprador a coisa venda no prazo, e pelo modo estipulado no contrato; pena de responder pelas perdas e danos que da sua falta resultarem".

O vendedor é obrigado a prestar aquilo que prometeu, com as qualidades e quantidades ajustadas e que teriam de apresentar e ter, em situações normais. Se prestar com qualidades diferentes ou quantidades inferiores haverá adimplemento insatisfatório, podendo ser considerado, dadas as circunstâncias, inteiramente indadimplente.

A coisa deve ser entregue no estado em que se encontrava ao tempo da conclusão do contrato, incluindo as partes integrantes, os frutos pendentes e os documentos respectivos. Os acréscimos e proveitos decorrentes da coisa vendida e ainda não entregue, tais como os frutos naturais, civis e industriais são do comprador, desde a conclusão do contrato, salvo se houve determinação de prazo para a entrega. As despesas da entrega, inclusive com pesagens e medidas, incumbem ao vendedor, mas as partes podem convencionar de modo distinto.

O vendedor tem o dever de transmitir a propriedade ou a posse. A transmissão da posse observa os princípios do direito brasileiro (arts. 1.196 e seguintes do Código Civil). Se o comprador já tem a posse imediata adquire a posse mediata, transmitida pelo vendedor, mediante a breve manu traditio. A transmissão da posse pode não coincidir com a transmissão da propriedade, por qualquer razão, podendo o comprador exigir do vendedor o cumprimento de sua obrigação.

O vendedor assume deveres pós-contratuais. Deve evitar os atos positivos ou negativos que possam prejudicar o comprador, depois da entrega do objeto. Esses atos constituem ilícitos absolutos, pelos quais responde civilmente. Ainda que o Código Civil não tenha tratado expressamente da responsabilidade pós-contratual, esses deveres conexos decorrem da natureza mesma do contrato, inclusive da compra e venda. Tem-se como exemplo a omissão do vendedor em entregar ao comprador parte dos documentos relativos à coisa, obtido posteriormente à conclusão do contrato, e que se torna indispensável para a transmissão do direito de propriedade. Outro exemplo é o do vendedor que suspende o serviço de recuperação da coisa anteriormente pactuado com terceiro, após a conclusão do contrato.

É dever do comprador pagar o preço. O pagamento do preço é a correspectividade da entrega da coisa ou a contraprestação característica da compra e venda. Se a contraprestação não for em dinheiro, ou ao menos de sua parte mais importante, então ter-se-á outro contrato, como a troca. O Código Civil estabelece algumas regras sobre determinabilidade do preço, quando não determinado, porque será sempre determinável segundo critérios de fixação, conforme veremos nos comentários dos artigos a seguir.


7. Efeitos do contrato de compra e venda e transmissão da propriedade

No direito brasileiro, o contrato não transfere ou transmite a propriedade da coisa vendida. O vendedor obriga-se a transmiti-la. O cumprimento dessa obrigação dar-se-á mediante um dos modos de adquirir a propriedade. A compra e venda é título de adquirir que dá causa ao modo de adquirir a propriedade. Esse esquema complexo difere do que foi adotado pelos códigos civis da França, da Itália e de Portugal, para os quais o contrato reúne as duas funções [10]. A simultaneidade que ocorre nos contratos de compra e venda de execução instantânea, especialmente das coisas materiais móveis, com sua imediata tradição, pode provocar a ilusão de produzir o contrato efeito real. A tradição existiu, ainda que instantânea, cumprindo sua função de modo de transmissão e aquisição da propriedade.

Pontes de Miranda chama atenção para a existência necessária de dois negócios jurídicos, que podem ser simultâneos, o da compra e venda e o acordo de transmissão. Nunca, por si só, o contrato de compra e venda transfere, simultânea ou imediatamente, a propriedade e a posse da coisa. Para que isso se dê é preciso que tenha havido o acordo de transmissão, explícito ou implícito [11].

A transmissão da propriedade (modo) pode ser inválida sem que o seja o contrato de compra e venda (título). Como exemplo tem-se a hipótese de vendedor que era solteiro ao tempo da conclusão do contrato, em que não houve o acordo de transmissão, e este veio a ocorrer quando já era casado. Inversamente, a transmissão pode ser válida e eficaz sem que o tenha sido o contrato, pois são dois atos distintos. Todavia, o direito brasileiro estabelece relação de causalidade entre o modo e o título. Se este for invalidado aquele também o será, por conseqüência. No direito alemão, distintamente, o modo é abstrato, não sendo contaminado pela invalidade ou ineficácia do título.

O contrato de compra e venda permanece com os mesmos efeitos atribuídos pelo Código Civil de 1916, cuja redação foi reproduzida integralmente no artigo sob comento. Não é contrato translativo, pois apenas promete a transferência da posse e da propriedade. Translatício é o acordo de transmissão. O contrato apenas gera deveres e obrigações pessoais, ou seja, o vendedor não transfere a propriedade e sim promete transferir.

O descumprimento do acordo de transmissão, em não se concluindo o registro ou a tradição, leva ao inadimplemento, com suas conseqüências, inclusive de resolução do contrato do qual foi oriundo. Decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro [12] que "incumprida a obrigação principal do vendedor, que é a transferência do domínio, caracteriza-se o inadimplemento absoluto, que enseja o desfazimento do vínculo contratual com a volta das partes ao estado anterior. Reforma da sentença para julgar procedente, em parte, o pedido, com condenação do réu a devolver as parcelas pagas, corrigidas monetariamente, e a pagar, título de perdas e danos, a remuneração do capital despendeido, conforme a taxa da caderneta de poupança, mais juros de mora e ônus sucumbenciais".

O que caracteriza a compra e venda no direito brasileiro é que o vendedor se vincula a transmitir, fazendo-se devedor, obrigando-se no tempo fixado. O comprador vincula-se a pagar e obriga-se no tempo ajustado. Se um ou outro não cumpre sua obrigação nascem as pretensões decorrentes dos respectivos inadimplementos. Nas compras e vendas à vista o tempo é mínimo mas as obrigações correspectivas nasceram, com eficácia pessoal.

Na América Latina os códigos civis do Chile (art. 1.793), do Uruguai (art. 1.661), do Paraguai (art. 737) e da Argentina (1.323) seguem a orientação do direito brasileiro, o que aponta para uma base comum de harmonização, no âmbito do Mercosul. A distinção de efeitos (obrigacional ou real) seria fator de dificuldades para ampliar a pretendida circulação franca de produtos nesses países, tendo em conta que a compra e venda é o contrato mais importante para tal fim.


8. Validade e eficácia do contrato de compra e venda

O contrato de compra e venda, como todo e qualquer negócio jurídico, necessita percorrer os planos da existência, da validade e da eficácia, para que produza os efeitos esperados pelas partes contratantes ou determinados pelo direito. Segundo a terminologia difundida no Brasil e muito considerada pela doutrina [13], é indispensável a realização dos elementos do negócio jurídico (plano da existência), dos requisitos de validade e dos fatores de eficácia.

O contrato de compra e venda tem de ser válido para que tanto o vendedor quanto o comprador se vinculem, se obriguem. O plano da validade é próprio do ato jurídico em geral, especialmente do negócio jurídico. Se o contrato é nulo não poderá produzir seus efeitos; do mesmo modo se vem a ser declarado anulável, segundo as regras contidas nos arts. 166 a 184 do Código Civil. O vendedor e o comprador têm de atribuir efeitos ao contrato anulável, até que haja sentença judicial que decida pela anulabilidade.

Da nulidade, em princípio, não pode haver geração de qualquer efeito do contrato. Todavia, a jurisprudência dos tribunais tem admitido exceções, ante as circunstâncias do caso concreto. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, já decidiu que a nulidade de escritura de pública de compra e venda de imóvel rural, por ausência de declaração, imposta por lei, de inexistência de débito com a previdência social, somente a esta diz respeito suscitar, não podendo o vendedor argüi-la em juízo, com intuito de desfazer a venda. Nesse caso é nítida a colisão com o princípio, decorrente da boa-fé, de vedação de venire contra factum proprium, que deve prevalecer sobre a natureza absoluta da nulidade.

Como se verá adiante, não há qualquer invalidade ou ineficácia nas hipóteses de coisa futura, explicitamente introduzida no Código Civil, de coisa alheia ou de preço ainda não determinado no momento da conclusão.


9. Compra e venda internacional

A variedade de regimes jurídicos nacionais tem sido forte obstáculo ao crescimento do comércio internacional de mercadorias, não sendo suficientes as soluções adotadas no âmbito do direito internacional privado, tão diverso quanto os direitos nacionais.

Durante os meses de março e abril de 1980 uma Conferência internacional foi convocada pela ONU, reunindo sessenta e dois países, na cidade de Viena, para estabelecer regras uniformes sobre compra e venda internacional. A Convenção de Viena entrou em vigor em 1988. Ainda que muitos países não tenham ainda aderido à Convenção, incorporando-a a seus direitos internos, suas regras têm sido adotadas regularmente no comércio internacional de mercadorias. De acordo com a Convenção o contrato de compra e venda se define como o de fornecimento de mercadoria a fabricar ou a produzir, a menos que a parte que faça o pedido tenha fornecido uma parte essencial dos elementos materiais necessários à produção. Não se incluem no âmbito da Convenção as mercadorias adquiridas para uso pessoal, familiar ou doméstico, as decorrentes de leilão, as moedas, os títulos de valor mobiliário, os navios, as aeronaves e a eletricidade. A Convenção evitou tomar partido sobre os efeitos, reais ou meramente obrigacionais, que o contrato pode ter sobre a propriedade das mercadorias vendidas. A interpretação deverá levar em conta seu caráter internacional e de necessidade de promover a uniformidade de sua aplicação, com especial respeito à boa-fé.

A relação da venda internacional com o transporte e a repartição dos riscos entre vendedor e comprador são objeto de adoção de termos comerciais mais usados e facultativos, em forma abreviada, cujos conteúdos normativos são fixados pela Câmara de Comércio Internacional, desde 1928, que reúne especialistas de todo o mundo. São os conhecidos Incoterms (International commerce terms). Constituem um vocabulário de termos comerciais normalizados, destinados às vendas de mercadorias acompanhadas de transporte, nos quais são definidas as obrigações e responsabilidades do vendedor e do comprador. Objetivam limitar as controvérsias e estabelecer critérios seguros de interpretação. A versão oficial dos Incoterms 2000 indica os seguintes termos: EXW (ex works), na origem; FCA (free carrier), livre no transportador; FAS (free alongside ship); FOB (free on board), livre a bordo; CFR (cost and freight), custo e frete; CIF (cost, insurance and freight); CPT (carriage paid to), transporte pago até; CIP (carriage and insurance paid to), transporte e seguro pagos até; DAF(delivered at frontier), entregue na fronteira; DES (delivered ex ship), entregue no navio; DEQ (delivered ex quay), entregue no cais; DOU (delivered duty unpaid), entregue com direitos não pagos; DOP (delivered duty paid), entregue com direitos pagos. No Brasil, ocorre a impossibilidade do uso do termo FOB na importação, quando se utiliza o transporte aéreo, por existir termo mais apropriado, e do termo DCP na importação, porque o importador não pode ter responsabilidade tributária [14].

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Notas

01 Os contratos de fornecimento podem obter autonomia, porque muitas vezes pressupõem prestações típicas de outros contratos, como seja o aluguel ou comodato de equipamentos, obrigação de prestar serviços, constituindo contratos mistos (típicos fusionados, na expressão utilizada por Karl Larenz, Derecho de Obligationes, trad. Jaime Santos Briz, Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1959, vol II, p. 9).

02 O art. 191 do Código Comercial restringia a compra e venda mercantil às hipóteses relacionadas aos efeitos móveis ou semoventes" e quando o comprador ou o vendedor fosse comerciante.

03 Cf. Gaio, Institutas, trad. Alfredo di Pietro, Buenos Aires: Abeleto-Perrot, 1997, p. 508.

04 Cf. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, vol. 39, p. 9.

05 Cf. Paulo Luiz Netto Lôbo, Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas, São Paulo: Saraiva, 1991, p. 27.

06Tratado de Direito Privado, vol. 39, cit., p. 26.

07 Cf. Livro IV, Título XIII, de seguinte redação: " Posto que o contracto de compra e venda de qualquer cousa movel, ou de raiz seja de todo perfeito, e a cousa entregue ao comprador, e o preço pago ao vendedor se for achado que o vendedor foi enganado além da metade do justo preço, pode desfazer a venda per bem do dito engano, ainda que o engano não procedesse do comprador, mas somente se causasse da simpleza do vendedor. E poderá isso mesmo o comprador desfazer a compra, se foi pela dita maneira enganado além da metade do justo preço".

08 DJ 08.05.1981, Rel. Min. Cunha Peixoto. Os embargos de divergência contra essa decisão não foram conhecidos pelo Tribunal Pleno, Rel. Min. Néri da Silveira (DJ 10.03.1989)

09Tratado de Direito Privado, vol. 39., cit., p. 233.

10 Exemplo frisante dessa profunda diferença de efeitos do contrato de compra e venda é o Código Civil de Portugal, cujo art. 874 estabelece que esse contrato "transmite a propriedade de uma coisa ou outro direito". O art. 879 do código português reforça essa orientação ao conferir à compra e venda o efeito essencial de "transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito".

11Tratado de Direito Privado, vol. 39, cit., p. 14 e 60.

12 AC 8067/95, 3ª C. Civ., Rel. Des. Elmo Arueira, julgado em 19.08.1997.

13 Cf. Antônio Junqueira de Azevedo, Negócio Jurídico, São Paulo: Saraiva, 1974, passim.

14 Cf. João dos Santos Bizetti (Coord. e trad.), Incoterms 2000: regras oficiais do ICC para a interpretação de termos comerciais, São Paulo: Aduaneiras, 2000, passim.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Advogado. Professor Emérito da UFAL. Vice-Presidente do IBDCIVIL. Ex-Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Características atuais do contrato de compra e venda. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1041, 8 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8372. Acesso em: 18 mar. 2024.

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