A família talvez seja a organização mais complexa e significativa para a sociedade. Instituição que forma os valores, crenças e atitudes dos seus componentes, Rosseau a via da seguinte forma: “a mais antiga de todas as sociedades e a única e natural.(...) é a família, portanto, o primeiro modelo das sociedades políticas”.
As experiências vividas nessa entidade social somam-se à convivência com as singularidades de cada um dos que a integram. Mais do que o resultante genético, a família representa os ideais, os sonhos, suporte e amparo nos momentos de tristeza e lutas. Sem dúvida, é a base do ser humano. Quando há rupturas, ocorrendo a alienação parental, desequilibrando as pessoas envolvidas, causa um estrago à família (e por que não dizer, à sociedade), a tutela jurisdicional deve ser acionada para amparar e proteger o bem estar dos filhos. (LEMOS JUNIOR, ELOY PEREIRA).
No direito brasileiro a família tem diversas definições, configurações e conceituações, como também, diversos tratamentos. Constitucionalmente, temos nos artigos 226 e 230 da Carta Magna de 1988 asseverações acerca da entidade familiar, sendo os parágrafos 3º e 4º os definidores do termo:
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [….]
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”
Dentre as várias formas e formatos de família hoje aceitos e reconhecimentos pelo ordenamento pátrio, tomemos por base aquele entendido pelo Código Civil atual, o de que a entidade familiar é aquela derivada do casamento, sendo pai, mãe e filhos. Tal entendimento se dá da simples leitura do artigo 1.511, primeiro artigo do Capítulo I, do Livro IV do Código Civil, que trata do Direito de Família:
“Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direito e deveres dos cônjuges.”
Maria Helena Diniz conceitua o casamento como sendo “o vínculo jurídico entre o homem e a mulher, livres, que se unem, segundo as formalidades legais, para obter o auxílio mútuo material e espiritual, de modo que haja uma integração fisiopsíquica, e a constituição de uma família”.
VENOSA vai mais além e coloca o casamento como o centro do direito de família. Dele irradiam suas normas fundamentais. Sua importância, como negócio jurídico formal, vai desde as formalidades que antecedem sua celebração, passando pelo ato material de conclusão, até os efeitos do negócio que deságuam nas relações entre os cônjuges, os deveres recíprocos, a criação e assistência material e espiritual recíproca e da prole etc.
Mas, como tudo, o casamento não é eterno e haverá o momento em que essas relações poderão se romper, seja por causas naturais, como a morte dos cônjuges, por exemplo, ou pelo rompimento por meio da separação, sendo esta, algumas vezes, mais traumática que a própria morte.
Além de aspectos positivos, o processo de formação de vínculos inclui outros negativos, que podem levar a frustrações, mágoas e ressentimentos, que permeiam por muito tempo a vida conjugal e que podem culminar na dissolução da união.
Ninguém pode ser considerado culpado por deixar de amar. Quando acaba o sonho do amor jurado eterno, a tendência sempre é culpar o outro. Mas o desamor, a solidão, a frustração da expectativa de vida a dois não são indenizáveis. Para a configuração do dever de indenizar não é suficiente que o ofendido demonstre seu sofrimento. Somente ocorre a responsabilidade civil se presentes todos os seus elementos essenciais: dano, ilicitude e nexo causal. Não cabe indenizar alguém pelo fim de uma relação conjugal. Pode-se afirmar que a dor e a frustração, se não são queridas, são ao menos previsíveis, lícitas e, portanto, não indenizáveis. (Maria Berenice Dias)
Ocorre que, neste ínterim, estão os filhos. O chamado Poder Familiar que o Código Civil estabelece, em seus artigos 1.630 a 1.638, será exercido por pai e mãe: havendo, porém, divergências quanto ao exercício do mesmo por qualquer um ou ambos, poderão recorrer ao juiz para solucionar o desacordo. O poder familiar compreende a criação e educação dos filhos segundo parâmetros ditados por aquele núcleo familiar, bem como representá-los ou assisti-los, conforme sua idade, nos atos da vida civil. A legislação ainda especifica que o pai ou a mãe que constitui nova relação conjugal não perde o poder sobre seus filhos, devendo exercê-lo sem interferência do novo parceiro.
Para alguns casais, a "união" perdura mesmo após a separação, a qual não representa um termo final no relacionamento daquele casal. Nas varas de família, o fim do relacionamento conjugal deve ser entendido não só como um drama judicial, mas também como uma situação que envolve aspectos afetivos e emocionais muito fortemente marcados, ainda que não expressamente denunciados pelas partes. (Fiorelli)
Por vezes, essa relação poderá se tornar conflituosa e nascer dela a chamada Alienação Parental ou Síndrome da Alienação Parental
Segundo o psiquiatra norte-americano Richard Gardner, a alienação parental consiste em programar uma criança para que ela odeie um de seus genitores sem justificativa, por influência do outro genitor, com quem a criança mantém um vínculo de dependência afetiva e estabelece um pacto de lealdade inconsciente. (Fiorelli)
Um dos genitores leva a efeito verdadeira "lavagem cerebral", de modo a comprometer a imagem que o filho tem do outro, narrando, maliciosamente, fatos que não ocorreram ou não aconteceram conforme descrito pelo alienador. Como bem explica Lenita Duarte, ao abusar do poder parental, o genitor busca persuadir os filhos a acreditarem em suas crenças e opiniões. Ao conseguir impressioná-los, eles sentem-se amedrontados na presença do outro. Ao não verem mais o genitor, sem compreenderem a razão do seu afastamento, os filhos sentem-se traídos e rejeitados, não querendo mais vê-lo. Como consequência, sentem-se desamparados e podem apresentar diversos sintomas. Assim, aos poucos se convencem da versão que lhes foi implantada, gerando a nítida sensação de que essas lembranças de fato aconteceram. Isso gera contradição de sentimentos e destruição do vínculo paterno-filial.
Restando órfão do genitor alienado, acaba o filho se identificando com o genitor patológico, aceitando como verdadeiro tudo que lhe é informado. O filho é utilizado como instrumento da agressividade, sendo induzido a odiar um dos genitores. Trata-se de verdadeira campanha de desmoralização. A criança é levada a afastar-se de quem ama e que também a ama. (Maria Berenice Dias)
Para Fiorelli “as consequências para a criança, em geral, indicam sintomas como depressão, incapacidade de adaptar-se aos ambientes sociais, transtornos de identidade e de imagem, desespero, tendência ao isolamento, comportamento hostil, falta de organização e, em algumas vezes, abuso de drogas, álcool e suicídio. Quando adulta, incluirão sentimentos incontroláveis de culpa, por se achar culpada de uma grande injustiça para com o genitor alienado.”
Em agosto de 2010, foi promulgada a Lei 12.318 que dispõe sobre a alienação parental, referindo em seu artigo 2º:
Art. 2º Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou a manutenção de vínculos com este."
Em 2017, para tentar dirimir estes aspectos violentos, ou tentar identificar a parte que estaria praticando a alienação, foi criada sob a Lei 13.431/2017, a “Escuta Especializada e Depoimento Especial”, que visa à coleta de depoimentos desses menores acometidos pela Síndrome da Alienação Parental.
Conforme art. 7º da referida lei, a “escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade”.
Sobre o depoimento especial, preconiza o art. 8º: “depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária”.
A lei tem por finalidade resguardar, evitando o contato dessa criança ou adolescente com o suposto autor ou acusado ou com qualquer outra pessoa que possa lhe representar ameaça, coação ou constrangimento. A escuta especializada é feita por profissional especializado[i] (psicólogo, psicopedagogo, etc) e o depoimento especial, diretamente ao delegado ou juiz em ambiente favorável à criança e ao adolescente, devidamente preparado para isso, eliminando-se a oitiva em salas comuns de delegacias e fóruns, ou seja, deverá haver infraestrutura para garantir o sigilo do ato.
O ideal, segundo o art. 11, é a colheita do depoimento uma única vez, em produção antecipada de prova judicial, garantindo a ampla defesa do investigado, o que, certamente, é um benefício a todos, visto que a mente e a memória infanto-juvenil trabalham com fantasias e ficções que podem mesclar-se com o fato ocorrido, quanto mais o tempo passar.
Impõe-se o depoimento especial em produção antecipada de provas em duas situações: a) criança ou adolescente menor de 7 anos; b) casos de violência sexual.
O art. 12 da Lei n.º 13.431/2017 preceitua que: “Art. 12. O depoimento especial será colhido conforme o seguinte procedimento: I – os profissionais especializados esclarecerão à criança ou ao adolescente sobre a tomada do depoimento especial, informando-lhe os seus direitos e os procedimentos a serem adotados e planejando sua participação, sendo vedada a leitura da denúncia ou de outras peças processuais; II – é assegurada à criança ou ao adolescente a livre narrativa sobre a situação de violência, podendo o profissional especializado intervir quando necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos; III – no curso do processo judicial, o depoimento especial será transmitido em tempo real para a sala de audiência, preservado o sigilo; IV – findo o procedimento previsto no inciso II deste artigo, o juiz, após consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos, avaliará a pertinência de perguntas complementares, organizadas em bloco; V – o profissional especializado poderá adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente; VI – o depoimento especial será gravado em áudio e vídeo.”
Entre as vantagens do Depoimento Especial, destaca-se:
● Registro rigoroso da entrevista;
● Documentação visual dos gestos e expressões faciais que acompanham os enunciados verbais das crianças;
● Registro visual e verbal que pode ser visto muito tempo depois por outros profissionais;
● Redução de entrevista por parte de outros profissionais;
● Forma de capacitação contínua para outros entrevistadores;
● Ajuda efetiva para conseguir uma aceitação do acontecido por parte do ofensor;
● Instrumento de ajuda ao familiar do não ofensor ou ofensor, facilitando a compreender o que aconteceu e não aconteceu.
● A criança fica em uma sala reservada não presenciando os possíveis embates que podem ocorrer na audiência.
● A previsão de que a vítima e o acusado não se encontrem em momento algum, principalmente no Foro, fato comum, que pode atemorizar a vítima antes do depoimento.
Entre as Desvantagens:
● O processo é intrusivo e a criança pode ficar inibida para revelar informações;
● As complicações e logística para se obter uma equipe técnica em sala especial;
● A utilização exime a realização de mais de uma entrevista, pela ideia de que, com uma só entrevista "tudo já foi visto”;
Nota
[i] A Recomendação nº 33 do CNJ, de 23/11/2010, já dispunha sobre as recomendações acerca do depoimento especial:
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições constitucionais e regimentais, e;
CONSIDERANDO que a Constituição Federal, em seu artigo 227, impõe aos Poderes Públicos o dever de assegurar os direitos da criança e do adolescente com prioridade absoluta sobre os demais;
CONSIDERANDO que a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, em seu artigo 12, assegura à criança e ao adolescente o direito de serem ouvidos em todo processo judicial que possa afetar seu interesse;
CONSIDERANDO que o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal no 8.069, de 13 de julho de 1990), em seu artigo 28, § 1o e 100, parágrafo único, inciso XII, assegura à criança e ao adolescente o direito de terem sua opinião devidamente considerada e de serem previamente ouvidos por equipe interprofissional, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida;
CONSIDERANDO a necessidade de se viabilizar a produção de provas testemunhais de maior confiabilidade e qualidade nas ações penais, bem como de identificar os casos de síndrome da alienação parental e outras questões de complexa apuração nos processos inerentes à dinâmica familiar, especialmente no âmbito forense;
CONSIDERANDO que ao mesmo tempo em que se faz necessária a busca da verdade e a responsabilização do agressor – deve o sistema de justiça preservar a criança e o adolescente, quer tenha sido vítima ou testemunha da violência, dada a natural dificuldade para expressar de forma clara os fatos ocorridos;
CONSIDERANDO o deliberado pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça em sua 116ª Sessão Ordinária, realizada em 9 de novembro de 2010, no julgamento do ATO no 00006060-67.2010.2.00.0000,
RESOLVE:
RECOMENDAR aos tribunais:
I – a implantação de sistema de depoimento vídeogravado para as crianças e os adolescentes, o qual deverá ser realizado em ambiente separado da sala de audiências, com a participação de profissional especializado para atuar nessa prática;
a) os sistemas de vídeogravação deverão preferencialmente ser assegurados com a instalação de equipamentos eletrônicos, tela de imagem, painel remoto de controle, mesa de gravação em CD e DVD para registro de áudio e imagem, cabeamento, controle manual para zoom, ar-condicionado para manutenção dos equipamentos eletrônicos e apoio técnico qualificado para uso dos equipamentos tecnológicos instalados nas salas de audiência e de depoimento especial;
b) o ambiente deverá ser adequado ao depoimento da criança e do adolescente assegurando-lhes segurança, privacidade, conforto e condições de acolhimento.
II – os participantes de escuta judicial deverão ser especificamente capacitados para o emprego da técnica do depoimento especial, usando os princípios básicos da entrevista cognitiva.
III – o acolhimento deve contemplar o esclarecimento à criança ou adolescente a respeito do motivo e efeito de sua participação no depoimento especial, com ênfase à sua condição de sujeito em desenvolvimento e do conseqüente direito de proteção, preferencialmente com o emprego de cartilha previamente preparada para esta finalidade.
IV – os serviços técnicos do sistema de justiça devem estar aptos a promover o apoio, orientação e encaminhamento de assistência à saúde física e emocional da vítima ou testemunha e seus familiares, quando necessários, durante e após o procedimento judicial.
V – devem ser tomadas medidas de controle de tramitação processual que promovam a garantia do princípio da atualidade, garantindo a diminuição do tempo entre o conhecimento do fato investigado e a audiência de depoimento especial.
Publique-se e encaminhe-se cópia desta recomendação aos Tribunais de Justiça dos Estados e o do Distrito Federal e Territórios.
Ministro Cezar Peluso
Presidente
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Dias, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, (Livro eletrônico) 4ed,
Venosa, Sílvio de Salvo. Direito civil: família / Sílvio de Salvo Venosa. – 17. ed. – São Paulo: Atlas, 2017. (Coleção Direito civil; 5)
Gagliano, Pablo Stolze. Manual de direito civil; volume único / Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. – São Paulo : Saraiva, 2017.
Fiorelli, José Osmir. Psicologia Jurídica/José Osmir Fiorelli, Rozana Cathya Ragazzoni Mangini – 6ed – Ed Atlas
Rosseau, Jean-Jacques. Do Contrato Social – Edição Ridendo Castigat Mores – www.jahr.org
Depoimento sem dano: vantagens e desvantagens do procedimento previsto na Lei nº 13.431/2017 - 11/10/2019 - Naiane Félix Pressler e Rubens Alves da Silva
https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-da-infancia-e-juventude/4575/depoimento-sem-dano-vantagens-e-desvantagens-do-procedimento-previsto-na-lei-n-13431-2017
A escuta, o depoimento especial e o novo crime de violação de sigilo processual – Guilherme de Souza Nucci, em https://guilhermedesouzanucci.jusbrasil.com.br/artigos/554147027/a-escuta-o-epoimento-especial-e-o-novo-crime-de-violacao-de-sigilo-processual
Comentários à Lei nº 13.431/2017 - Murillo José Digiácomo e Eduardo Digiácomo, em http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/caopca/lei_13431_comentada_jun2018.pdf
Lei 13431/17 - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13431.htm
CNJ – Conselho Nacional de Justiça - https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/878
Alienação parental. Uma análise da Lei 12.318/2010. http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=0c57998b6a829067