Natureza Jurídica do Interrogatório judicial no Processo Penal

Aspectos normativos e doutrinários

06/07/2020 às 10:16
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No recente noticiário jurídico, tem-se observado condutas de magistrados durante a realização do interrogatório do acusado que não têm reconhecido o direito ao silêncio total ou parcial. Tais condutas remetem à sua natureza jurídica, se prova ou defesa.

Inicialmente, não custa recordar ao caro leitor que o interrogatório deixou, há muito tempo, de ser ato inquisitório, de exclusividade do juiz.

Escrevi sobre esse mesmo tema em 2015 (aqui: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/45753/natureza-juridica-do-interrogatorio-judicial-no-processo-penal-aspectos-normativosedoutrinarios. ) ao tratar da natureza jurídica do interrogatório do acusado no processo penal e reproduzo, com finalidade didática aqui, com pontuais atualizações para uma melhor compreensão contextual.

INTRODUÇÃO

No Brasil, previsto nos artigos 185 a 196 do CPP, o interrogatório do acusado é o momento da persecução penal cujo imputado poderá, se desejar, dar sua versão dos fatos.

Nessa medida, é o momento de expressão concreta de seu exercício de autodefesa (que junto com a defesa técnica são corolários do princípio da ampla defesa, previsto o art. artigo 5º, LV. Visto que que é o próprio acusado que se defende da imputação do fato penal narrado na inicial acusatória (chamado de “direito de audiência”).

Sobre o ventilado, observe o dispositivo constitucional:

art. 5º:

(...)

"aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes"

Note que, o interrogatório também é chamado de defesa material (Rangel, 2012, p. 571), pois o acusado refutaria o direito material imputado contra ele na denúncia ou queixa.

Nessa medida, o interrogatório é ato personalíssimo porque somente o acusado pode ser interrogado (influindo diretamente e pessoalmente no convencimento do Juiz). Sendo direito do acusado que lhe seja oportunizado (ainda que não obrigatória sua realização), pois é uma exigência do Pacto de San José da Costa Rica, cujo Brasil é signatário e segundo o Supremo Tribunal Federal, possui status de supralegalidade.

Todavia, ao adentrarmos na sua “natureza jurídica”, pode-se observar notáveis divergências no âmbito da literatura doutrinária, que se divide em intrincado problema interpretativo.

2. NATUREZA JURÍDICA

O cerne da questão proposta se concentra na natureza jurídica do interrogatório do acusado, tema que gera inúmeros desdobramentos que transbordam a mera discussão acadêmica, pois dependendo do olhar voltado para ato processual, mister será uma (re) leitura da Audiência de Instrução Debates e Julgamento e de toda a principiologia que a cerca.

Ad argumentandum, antes de mergulharmos em águas profundas, cumpre salientar o alerta dado por Eugênio Pacelli de Oiveira (2014. p. 380):

“Que continue a ser uma espécie de prova, não há maiores problemas, até porque as demais espécies defensivas são também consideradas provas. Mas o fundamental, em uma concepção de processo via da qual o acusado seja um sujeito de direitos, e no contexto de um modelo acusatório, tal como instaurado pelo sistema constitucional das garantias individuais, o interrogatório do acusado encontra-se inserido fundamentalmente no princípio da ampla defesa.”

Registre-se, a propósito, que ao todo existem quatro posições doutrinárias sobre sua natureza jurídica. Veja:

Primeira: É meio de prova. Em análise topográfica do Código de Processo Penal, verifica-se que o interrogatório foi alocado pela referida Lei, no Título VII – Da Prova, em capítulo específico – III – “Do interrogatório do acusado”.

Para essa posição, a localização do interrogatório no CPP, demonstra claramente a intenção de considerá-lo como meio de prova, isto é, um elemento para formação da convicção do juiz, já que antes da reforma pontual feita ao Código em 2008, o interrogatório era o primeiro ato da instrução (no rito comum e no especial do Tribunal do Júri).

Tal entendimento, em nosso sentir, reforça ainda mais o posicionamento ideológico do CPP dos anos de 1940, cujo no texto original do artigo 186 do CPP dizia: “O seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa”. Um verdadeiro descompasso aos olhares democráticos que devemos dar atualmente ao Código para que ele seja adequado à Constituição Federal.

Dessarte, interessante mencionar que, embora o referido texto se chocasse diretamente com o direito ao silêncio previsto no artigo 5º, LXIII, da CF de 1988 que diz: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado...” e, ademais a doutrina majoritariamente pregasse a não recepção desse trecho em face à CF, o artigo 186 do CPP só viria a ser modificado pela lei 10.792/2003, que vedou a utilização do direito ao silêncio do réu (e isso inclui, por exemplo, o direito de não comparecimento à instrução) em seu desfavor.

A edição legislativa se mostrou necessária pela absoluta insistência de alguns magistrados ao câmbio democrático que ousavam em fundamentar suas decisões judiciais no senso comum do “quem cala consente”.

Ad argumentandum, antes de 2008, o interrogatório do acusado ocorria como primeiro ato da instrução penal, o que na prática, se verificava verdadeira desvantagem ao acusado e prejuízo ao seu direito de defesa. (fato este que ainda persiste, por exemplo, na Lei de Drogas 11.343/2006).

Sendo assim, pelo exposto, consideramos o posicionamento segundo o qual o interrogatório do acusado é um mero objeto de prova, ultrapassado.

Segunda: O interrogatório do acusado é meio de prova e de defesa, de forma indistinta.

De início, a nosso ver, entendemos com a devida licença que tal posicionamento também deve ser entendido com ressalvas, justamente em razão da vigência do princípio do nemo tenetur se detegere, (não produzir prova contra si próprio), garantido pelo artigo , LXIII da CF cujo silêncio é forma de seu exercício.

Sobre o direito ao silêncio, mister observar as palavras do professor Guilherme Nucci (2009, p. 419):

“É preciso abstrair, por completo, o silêncio do réu, caso o exerça, porque o processo penal deve ter instrumentos suficientes para comprovar a culpa do acusado, sem a menor necessidade de se valer do próprio interessado para compor o quadro probatório da acusação.”

Assim, caso o réu invoque o direito de permanecer calado, não haverá qualquer prova a ser produzida em favor da acusação, em tal grau que não se pode falar, portanto, que o interrogatório é meio de prova e de defesa, indistintamente.

Terceira: O interrogatório judicial do acusado é precipuamente meio de defesa e subsidiariamente, meio de prova (Nesse sentido: Nucci; Paulo Henrique A. Fuller; Gustavo D. Junqueira, entre outros).

Em outras palavras, para esse posicionamento, o interrogatório apresenta-se com natureza híbrida ou mista (meio de prova e de defesa).

Nesse diapasão, observe os dizeres de Nucci (2009, p. 404):

“Note-se que o interrogatório é fundamentadamente meio de defesa, pois a Constituição assegura ao acusado em geral, o direito ao silêncio. Logo, a primeira alternativa que se avizinha ao acusado é calar-se, daí não advindo consequência alguma. Defende-se apenas. Entretanto, caso opte por falar, abrindo mão do direito ao silêncio, seja lá o que disser, constitui meio de prova inequívoco, pois o magistrado poderá levar em consideração suas declarações para condená-lo ou absolvê-lo.”

A referida corrente busca sustentação no crivo do contraditório, presente no interrogatório e em todo o processo penal, pois as partes podem intervir no ato fazendo perguntas diretamente ao acusado.

No entanto, o fato de se permitir tanto ao Ministério Público quanto ao juiz e, obviamente, também à defesa técnica de fazerem perguntas, demonstra que o contraditório foi trazido para dentro do interrogatório, sem que haja alteração da natureza jurídica, como meio de defesa.

Quarta: O interrogatório é meio de defesa (Fernando da Costa Tourinho Filho; Eugênio Pacelli; Paulo Rangel).

Com a nova sistemática vigente desde a lei 11.719/2008, o interrogatório passou a ser o último ato da instrução, após a oitiva das testemunhas de acusação e defesa, esclarecimento dos peritos, acareações e demais diligências.

Nesse ponto, as partes indagadas pelo juiz se restou algum fato a ser esclarecido no interrogatório, passando-se, com isso, a ser um verdadeiro meio de defesa (a defesa se manifesta de duas formas: por meio da autodefesa, no caso do interrogatório e, pela defesa técnica promovida por advogado legalmente habilitado).

Para Paulo Rangel (2012, p. 570), ao conceituar a natureza jurídica do interrogatório, nos adianta o seguinte posicionamento:

“Tem natureza jurídica de um meio de defesa, pois é dado ao acusado o direito constitucional de permanecer calado, sem que o silêncio acarrete-lhe prejuízos, pois o parágrafo único do art. 186 do CPP veda expressamente aquilo que a CF já fazia, mas precisava de uma lei para dar efetividade à Constituição, o que, por si só, caracteriza um absurdo incomensurável. Ademais, o interrogatório é realizado depois da oitiva das testemunhas, isto é, como instrumento de defesa.”

3. DA FACULDADE DE NÃO RESPONDER

A título de digressão histórica, na Idade Média, pelo direito medieval e eclesiástico, caso o acusado não respondesse ao interrogatório do juízo inquisidor, não raras era torturado para que o dissesse.

Ademais, caso não respondesse ao que lhe era questionado, o silêncio lhe pesava no julgamento da mesma maneira que uma confissão. Em outras palavras, como assinala o jurista argentino e professor emérito da Universidade de Buenos Aires, Eugenio Raúl Zaffaroni (2017, p. 206 e ss.), qualquer ação praticada pelo acusado dentro do processo inquisitório do Direito medieval era tido como suspeita e capaz de autoincriminação, incluído o ato de silenciar-se.

Nesse contexto, observe a narrativa de Paulo Rangel (2012, p. 570) que categoricamente nos afirma:

“A possibilidade de as partes intervirem no interrogatório (contraditório) não elimina sua natureza jurídica de meio de defesa, como já dissemos, ou seja, continua o réu podendo se reservar ao direito de não responder, não só a todas as perguntas que forem formuladas, mas a apenas algumas, em especial aquelas formuladas pela acusação. As consequências de sua negativa, perante o conselho de sentença, por exemplo, é um ônus seu, já que, lamentavelmente, o júri brasileiro ainda trabalha com a íntima convicção.”

Posto isso, o interrogatório judicial do acusado por não se tratar exclusivamente de defesa técnica, é ato, ainda que necessário, prescindível (disponível), diferentemente da defesa técnica (essa, indisponível), pois ao ser citado regularmente, é lhe dada a possibilidade de não comparecer.

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Sobre a questão de eventual revelia declarada pelo juízo caso o acusado não compareça ao interrogatório, temos que, pela concepção do interrogatório como essencialmente um meio de defesa, como reconhecimento do direito ao silêncio, tem por consequência a conclusão no sentido de que o não comparecimento do acusado ao referido ato não poderá implicar a aplicação de quaisquer sanções processuais, daí por que inaplicável o agravamento de eventual medida cautelar imposta, a menos que se possa justificar a ausência no interrogatório como indício claro de risco à aplicação da lei penal (ex. fuga).

Por essa razão, o mencionado autor defende que ao se tratar de um direito, a ele não se poderá impor nem a revelia, nem restauração de prisão ao preso provisório, já que o direito à defesa não pode ser sancionado.

Acresça-se ainda, que em se tratando de interrogatório, oportuniza-se ao acusado de apresentar sua defesa, sem qualquer obrigação de fazê-lo.

Sobre a obrigatoriedade de realização do ato, Guilherme Nucci (2009, p. 564) entende que é possível a condução coercitiva para interrogatório, no entanto, apenas ao que diz respeito à qualificação do acusado, se este não tiver sido qualificado anteriormente nos autos.

A bem da verdade, o artigo 260 do CPP, mereceu (por meio das ADPFs n. 395 e 444) que o STF fornecesse uma nova interpretação do dispositivo à luz do Estado democrático, não se admitindo tentativas forçadas a obrigar que acusado produza prova contra si mesmo. Observe o dispositivo mencionado:

Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.

Segundo o STF, ao julgar as ADPFs declarou a não recepção da condução coercitiva pela CF/88, sendo inconstitucional o uso de condução coercitiva de investigados ou réus para fins de interrogatório. Posição que já defendíamos em 2015, na edição original deste artigo.

Ora, se o interrogatório fosse meio de prova como quer o CPP, ou parte da doutrina quando o trata como via de mão dupla (prova e defesa), haveria obrigatoriedade do depoimento do réu, para se efetivamente produzir alguma e qualquer prova que auxiliasse o juiz em seu convencimento ou garantisse o contraditório.

A bem da verdade, o interrogatório é, totalmente e essencialmente uma estratégia (e meio) de defesa, amparado em juízo de conveniência ou oportunidade, de não comparecer, silenciar por completo ou parcialmente.

Nesse passo, sempre lúcido, Fernando da Costa Tourinho Filho (2009, p. 554) nos ensina que:

“Embora o Juiz possa formular ao acusado as perguntas que lhe parecerem apropriadas e úteis, transformando o ato numa oportunidade para a obtenção da prova, o certo é que a Constituição consagrou o direito ao silêncio. Em face ao texto constitucional, (art. 5º, LXIII), o réu responderá às perguntas a ele dirigidas se quiser.”

Assim, não se pode dizer, pois, ser o interrogatório meio de prova.

Acerca do direito ao silêncio e da eventual ausência do réu em audiência, assinala o ilustre Eugênio Pacelli de Oliveira (2014, p. 385):

“Com a Lei nº 11.689/08, e mais, desde a Lei nº 10.792/03, o que já se continha de modo implícito no ordenamento jurídico brasileiro, por força do texto constitucional, ocupa definitivamente seu espaço no Direito Processual Penal:

a) em primeiro lugar, a exigência de se esclarecer o acusado de seu direito a permanecer calado e a não responder perguntas, nos exatos termos do disposto no art. 186, caput, do CPP, cuja redação anterior encontrava-se já revogada;

b) em segundo lugar, a vedação de valoração do silêncio em prejuízo da defesa, conforme se acha também expresso no parágrafo único do mesmo artigo 186 do CPP. Nada mais evidente: se é de direito que estamos falando, como poderia ser sancionado seu exercício?”.

Frise-se que o interrogatório do acusado deverá ser realizado caso ele compareça para ser ouvido, sob pena de nulidade, ainda que decida ficar completamente silente.

Todavia, ao oportunizar o direito ao interrogatório e o réu, uma vez intimado regularmente para tanto, esse resolve não exercer seu direito, não comparecendo à audiência, não há que se falar em direito à repetição do ato (não confundir a diferença da oportunidade ao interrogatório e a sua realização obrigatória).

CONCLUSÃO

Como estudado, o interrogatório do acusado é o último ato da AIDJ, sendo imediatamente anterior à apresentação das alegações finais pelas partes (art. 403 do CPP), sendo efetivamente mais uma oportunidade de defesa que se abre ao acusado para expor sua versão dos fatos e tudo que lhe entender pertinente, cabendo a ele e seu defensor, em juízo de valor (conveniência e oportunidade) determinar se responderá perguntas da somente da defesa ou também da acusação e do juízo, da forma que quiser (fracionada). Em suma: será interrogado se quiser e por quem ele quiser, respondendo as perguntas me melhor se adequam a sua estratégia de defesa (ampla defesa).

 

Referências

FULLER, Paulo Henrique Aranda. JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz et. al. Processo Penal. 11 ed. Rev. E atual. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2012. - (Coleção elementos do direito; v. 8).

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo. Saraiva, 2012.

MIRABETE, JÚLIO FABRINI. Código de Processo Penal Interpretado. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2000.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal. 9. ed. rev., atual. E ampl. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2009.

OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. Natureza Jurídica do Interrogatório judicial no Processo Penal: Aspectos normativos e doutrinários Conteúdo Jurídico, Brasilia - DF: 26 jun 2020. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/45753/natureza-juridica-do-interrogatorio-judicial-no-processo-penal-aspectos-normativosedoutrinarios. Acesso em: 26 jun 2020.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 18. ed. rev. E ampl. Atual. De acordo com as leis nº 12.830, 12.850 e 12.878, todas de 2013. - São Paulo. Atlas, 2014.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 22.ed. São Paulo. Atlas, 2014.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 11 ed. ver. E atual. São Paulo. Saraiva, 2009.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl, Alejandro Slokar, Alejandro Alagia, Manual de derecho penal: parte general. 2. Ed. 10ª. Reimp. Ciudad Autónoma de Buenos Aires. Ediar, 2017.

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Atualizado em 26 de junho de 2020. (publicação original disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/45753/natureza-juridica-do-interrogatorio-judicial-no-processo-penal-aspectos-normativosedoutrinarios).

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