3. PRINCIPAIS TEORIAS INFORMADORAS DA RESPONSABILIDADE PROCESSUAL PELAS DESPESAS DO PROCESSO
A questão das despesas processuais encontra sua importância na medida em que ela serve para a administração da justiça. E, como bem ressalta José de Moura Rocha [37], ‘’aí estaríamos incluindo honorários de advogado e demais despesas judiciais tudo orientando no sentido de liberar o vencedor de quaisquer ônus’’.
Trata-se de um instituto eminentemente processual, até porque as mencionadas despesas decorrem do processo e, ao final deste, ‘’transforma-se o referido ônus em obrigação consistente na obrigação de reembolsar as quantias pagas em juízo e de pagar os honorários de advogado da parte adversa’’. [38]
A responsabilidade das partes pelas despesas do processo, segundo ensina Yussef Said Cahali [39], pode ser resolvida de acordo com três critérios fundamentais:
(...) nos dois extremos, isto é, no sentido de que cada qual dos litigantes tenha as suas próprias despesas, ou no sentido de que o vencido as suporte por inteiro; ou conforme um sistema intermediário, híbrido, segundo o qual o vencido poderá, ou não, atentas as circunstâncias, ser compelido ao reembolso.
No presente capítulo, tratar-se-á das principais teorias informadoras da responsabilidade processual pelas despesas do processo e, ao final, analisar-se-á a posição delas frente ao direito positivo brasileiro.
3.1 A TEORIA DA SUCUMBÊNCIA
São da autoria de Chiovenda [40] as principais idéias acerca da teoria da sucumbência.
Sucumbir, segundo a definição do Aurélio [41], é ‘’não resistir, ceder, ser derrotado’’. Na linguagem jurídica, o significado não é diferente, sendo sucumbente aquele que é vencido na demanda judicial.
Assim, é o ‘’fato objetivo da derrota’’ [42] que legitima a sucumbência. Comportamentos subjetivos das partes não interessam à teoria da sucumbência: vencido no processo, deverá arcar com as despesas do processo.
E o fundamento da teoria da sucumbência é de que a aplicação da lei, no processo, não deve onerar a quem ela dá razão. Quem tem o direito não pode sofrer o prejuízo pelo fato de querer que ele seja concretizado através da tutela jurisdicional.
A justificação para o princípio da sucumbência é uniforme entre os autores: aquele que se pretende necessitado da tutela jurisdicional, se não é atendido senão recorrendo às vias judiciais, não deve suportar um sacrifício econômico (que, segundo a clássica proposição, diminuiria o valor do direito reconhecido); ‘’à sentença cabe prover para que o direito do vencedor não saia diminuído de um processo em que foi proclamada a sua razão’’. [43]
A teoria da sucumbência, contudo, tem-se revelado insuficiente para atender a situações específicas, nas quais não se justificava que a parte arcasse com o ônus da sucumbência, ainda que vencida na demanda. Foi quando a teoria da causalidade começou a ganhar espaço.
3.2 A TEORIA DA CAUSALIDADE
A teoria da causalidade mostrou-se muito mais racional como regra da responsabilidade processual pelas despesas do processo, preenchendo as lacunas das hipóteses em que a teoria da sucumbência não se mostrava adequada.
Defendida principalmente por Carnelutti, [44] a teoria da causalidade funda-se no princípio de que aquele que deu causa à movimentação do aparato judiciário, do processo judicial, deve arcar com as suas despesas.
(...) o princípio da causalidade responde justamente a um princípio de justiça distributiva e a um princípio de higiene social. De um lado, é justo que aquele que tenha feito necessário o serviço público da administração da Justiça lhe suporte a carga; é oportuno, pois, a previsão deste encargo reage a uma contenção no sentido de se fazer valer o cidadão mais cauteloso (...)
Portanto, diferentemente da teoria da sucumbência, a da causalidade prescinde de um comportamento subjetivo das partes, principalmente para se auferir se este comportamento foi o responsável, foi quem deu causa, à instauração do processo judicial. Exige, pois, ‘’uma indagação mais criteriosa e penetrante das razões dos litigantes’’. [45]
Mas embora conceitualmente diferentes, a aplicação da teoria da causalidade não exclui necessariamente a da teoria da sucumbência. Ao revés, a teoria da sucumbência revela-se mais como um dos critérios de aplicação da teoria da causalidade.
Basta partir da idéia estatisticamente comprovada de que geralmente quem dá causa ao processo é quem está errado e, conseqüentemente, resta vencido na demanda. Sob esta ótica, o princípio da sucumbência nada mais é do que um dos parâmetros para a aplicação da teoria da causalidade.
(...) entre a sucumbência e a causalidade não existe contraste, mas harmonia; trata-se de dois conceitos, do qual o primeiro é o conteúdo, o segundo o continente. O círculo do princípio da causalidade tem em seu interior vários círculos reveladores da existência do princípio; o mais importante é constituído pelo subcírculo, por assim dizer, da sucumbência. A sucumbência será, sob um plano conceitual e estático, ao mesmo tempo, o elemento normalmente revelador mais expressivo da causalidade, pois, normalmente, aquele que sucumbe é exatamente o sujeito que havia provocado o processo, fazendo surgir a necessidade da utilização do instrumento do processo, para que o titular do direito obtivesse coativamente aquilo que espontaneamente não havia obtido. E, em ordem de disposição, este elemento estatístico constitui a base da construção tradicional do princípio da sucumbência. [46]
Dessa maneira, mercê da teoria da causalidade ser atualmente a mais eficiente regra da responsabilidade processual pelas despesas do processo, a sucumbência, antes de ser um princípio que lhe contraria, constitui verdadeiramente o seu principal critério para aplicação.
3.3 O PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE NO DIREITO BRASILEIRO
Como norma genérica, o art. 20 do CPC é o principal dispositivo do sistema processual brasileiro relativo à responsabilidade processual pelas despesas do processo, ao preceituar que ‘’a sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios. Essa verba será devida, também, nos casos em que o advogado funcionar em causa própria.’’ (grifos nossos).
Numa interpretação literal do dispositivo acima transcrito, poder-se-ia ter uma idéia inicial de que o ordenamento jurídico pátrio adotou a teoria da sucumbência como regra da responsabilidade processual pelas despesas do processo. Todavia, esta idéia é equivocada.
Ora, conforme se afirmou, no tópico anterior, o princípio da sucumbência, de abrangência menor, nada mais é do que um indício, um parâmetro, para a aplicação do princípio da causalidade, de abrangência muita mais ampla e suficiente.
E, sob esse aspecto, o princípio da causalidade, além de apresentar-se com melhor justificação e mais preciso na prática, é aquele que se caracteriza por uma generalidade menos vulnerável à crítica sob pretexto de insuficiência. Ademais, traz em seu contexto a regra da sucumbência, como especificação objetiva, complementando-se, por outro lado, com as demais regras que não lhe são conflitantes, para a solução dos casos. [47]
Diverso não é o entendimento de Nelson e Rosa Maria Nery [48], ao comentarem justamente o art. 20 do CPC, reconhecendo como vigente o princípio da causalidade em nosso ordenamento.
5. Princípio da causalidade. Pelo princípio da causalidade, aquele que deu causa à propositura da demanda ou à instauração de incidente processual deve responder pelas despesas daí decorrentes. Isto porque, às vezes, o princípio da sucumbência se mostra insatisfatório para a solução de algumas questões sobre a responsabilidade pelas despesas do processo.
No mesmo sentido leciona o prof. Cândido Dinamarco: [49]
Só por comodidade de exposição alude-se à sucumbência como critério para atribuir o custo final do processo a uma das partes, sabendo-se no entanto que essa é apenas uma regra aproximativa, ou mero indicador do verdadeiro critério a prevalecer, que é o da causalidade: deve responder pelo custo do processo, sempre, aquele que houver dado causa a ele ao propor uma demanda improcedente ou sem necessidade, ou ao resistir a ela sem ter razão.
Em verdade, por ser a sucumbência apenas um indício da causalidade, não goza ela sequer do status de um princípio informador da responsabilidade processual pelas despesas do processo. Já a teoria da causalidade, por ser muito mais genérica e ter o condão de exaurir os casos de responsabilidade pelas despesas, pode (e deve!) ser considerado o princípio vigente no ordenamento jurídico brasileiro.
Tal assertiva assume o escopo de verdade na medida que, nos artigos subseqüentes, encontram-se diversos dispositivos que ignoram a regra da sucumbência para se auferir a responsabilidade pelas despesas do processo.
Em matéria na qual a própria fragmentariedade das disposições legais traduz a perplexidade do legislador diante do tema, o intérprete não pode proceder segundo esquemas rígidos de uma definição superada, e pela qual se deva entender como sucumbente apenas aquele a quem a demanda é imposta, e, como vencedor, aquele cuja demanda tenha sido acolhida. Acrescente-se que, se a adoção de um critério rigorosamente mecânico (como a regra da sucumbência) pode, eventualmente, liberar o juiz das dificuldades do problema em seu aspecto fundamental, as numerosas exceções que lhe são impostas pelo Código denunciam-lhe a insuficiência e o fazem eivado de incertezas. [50]
Assim, logo no art. 22 do CPC, encontra-se hipótese em que, mesmo vencedora, a parte que por sua conduta prolongue desnecessariamente o processo, originando despesas injustificadas, com elas arcará.
Também é o caso do art. 31 do CPC, onde ‘’as despesas dos atos manifestamente protelatórios, impertinentes ou supérfluos serão pagas pela parte que os tiver promovido ou praticado, quando impugnados pela outra’’.
O próprio tema objeto do presente trabalho induz à aplicação do princípio da causalidade, o que será objeto de análise no capítulo seguinte.
Por fim, a jurisprudência pátria é farta ao reconhecer a causalidade como princípio informador da responsabilidade processual pelas despesas do processo, bastando citar algumas das inúmeras decisões existentes:
RECURSO ESPECIAL – PROCESSUAL CIVIL – IMÓVEL – CONTRATO DE COMPRA E VENDA NÃO-REGISTRADO – PENHORA – EMBARGOS DE TERCEIRO – CONSECTÁRIOS DA SUCUMBÊNCIA – PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE – O princípio da causalidade não se contrapõe ao princípio da sucumbência. Antes, é este um dos elementos norteadores daquele, pois, de ordinário, o sucumbente é considerado responsável pela instauração do processo e, assim, condenado nas despesas processuais. O princípio da sucumbência, contudo, cede lugar quando, embora vencedora, a parte deu causa à instauração da lide. Se o credor indicou à penhora imóvel objeto de contrato de compra e venda não registrado, é iniludível que a necessidade do ajuizamento dos embargos de terceiro pelo adquirente é resultado da desídia deste em não promover o registro, providência que a par da publicidade do ato poderia evitar a indesejada constrição patrimonial, haja vista a eficácia erga omnes dos atos submetidos a registro. Assim, face ao princípio da causalidade, cabe aos terceiro-embargante, adquirente do imóvel, arcar com os consectários da sucumbência. [51]
Temos de ler o art. 20, caput, do CPC (‘interpretar’ é penetrar, ‘ler’ é colher o sentido) como se nele estivesse escrito: ‘...a menos que o próprio vencedor tenha dado causa ao ajuizamento da ação contra si’. Não o escreveu o legislador; não importa: nem ele é onisciente, nem é o responsável por aquilo que na natureza das relações sociais possa acontecer de imprevisível por ele, nem ele se liga com a sua vontade ou intenção ao mundo jurídico. Este é outro espaço, outro reino, outro mundo, diverso do mundo do conhecimento do legislador no momento de sua vida de legislador que é experiência política, e não vivência jurídica. [52]
Colocando uma pá de cal no assunto, o Superior Tribunal de Justiça publicou em 22.11.2004 Súmula com o já citado Enunciado nº 303, que determina que ‘’Em embargos de terceiro, quem deu causa à constrição indevida deve arcar com os honorários advocatícios’’, consagrando naquela Corte o princípio da causalidade como regra de responsabilidade dos encargos processuais.
Em precedente [53] que originou a súmula acima transcrita, afirmou-se que ‘’pelo princípio da causalidade, o terceiro que deu causa à constrição indevida é quem deve arcar com os ônus da sucumbência’’, decidindo-se ainda que o ‘’princípio da sucumbência cede lugar quando, embora vencedora, a parte deu causa à instauração da lide’’.
Do exposto, impende concluir que a teoria da causalidade está mais do que presente no sistema processual brasileiro, no qual a sucumbência se reveste apenas como um dos indícios para a sua aplicação. A causalidade é, em suma, o verdadeiro princípio informador da responsabilidade processual pelas despesas do processo no direito brasileiro.