Capa da publicação Direito aos sonhos: direitos humanos dos indivíduos naturalmente vulneráveis
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O direito aos sonhos e os sonhos como direitos:

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Seria juridicamente aceitável, moralmente correto, politicamente conveniente e socialmente adequada a descriminalização do aborto, seja por via legislativa, seja por via judicial?

Sumário: 1. Uma longa introdução; 2. Os direitos humanos fundamentais do indivíduo naturalmente vulnerável; 3. A felicidade como direito e o direito à felicidade; 4. Os sonhos como direitos e os direitos aos sonhos; 5. Referências.


“O caos é o fundo do oceano aonde Pinóquio foi para resgatar seu pai do Monstro, o dragão-baleia que soltava fogo. Aquela viagem à escuridão e ao resgate é a coisa mais difícil que um fantoche deve fazer se quiser ser uma pessoa de verdade; se ele quiser escapar das tentações do engano, da encenação, da vitimização, do prazer impulsivo e da servidão totalitária; se ele quiser assumir seu lugar como um genuíno Ser no mundo.” (Jordan Peterson) 1


1. Uma longa introdução

Se você está lendo este texto é porque felizmente você teve muita sorte (isso mesmo, muita sorte) em ter tido em seu caminho existencial (desde a sua concepção) adultos responsáveis (inicialmente a sua mãe), que cumpriram com os seus deveres e, quem sabe (?), se sacrificaram em seu favor. Com certeza, esses adultos eram (são) imperfeitos, limitados, cometeram erros e nem sempre acertaram em tudo o que lhe dissesse respeito, porque humanos, portanto falíveis e corruptíveis. Mesmo assim, se você se sente grato a esses adultos (provavelmente seus pais, avós, tios, demais familiares, amigos, conhecidos, vizinhos, médicos, enfermeiros, professores etc.), este texto talvez lhe tenha alguma utilidade, pois esses adultos responsáveis possibilitaram e contribuíram para que você pudesse neste exato momento lê-lo. Mas se você não se sente grato e não se sente moralmente devedor de nada e nem de ninguém, sugiro que não continue nesta leitura.

O ordenamento jurídico (direito objetivo) consiste no conjunto de autorizações válidas para o exercício regular de possibilidades fáticas. O direito (subjetivo) consiste no exercício regular e autorizado de possibilidades fáticas. A possibilidade fática validamente autorizada é o objeto de regulação da normatividade jurídico-política. Um ordenamento jurídico, e a Constituição de modo muito mais específico, consiste em um “totem” com “tabus” e “dogmas”. É um “totem” porque consiste em um “símbolo” objeto de “culto ou adoração” coletiva, possuidor de crenças intersubjetivamente compartilhadas. Os “tabus” porque nele (ou nela) há “proibições culturais ao faticamente possível”, por meio dos modais deônticos do “proibido”, do “obrigatório” e do “facultativo”, que autorizam ou desautorizam determinados comportamentos humanos, como a proibição de matar ou a obrigação de cuidar das crianças ou a permissão para casar. E os “dogmas” porque são plenos de pontos-de-partida ou de verdades inquestionáveis e indiscutíveis, com o da própria vinculação e respeito ao ordenamento jurídico ou da supremacia normativa da Constituição, ou da igualdade moral e da dignidade ética de todos os seres humanos.

Pois bem, se o Direito (“totem”) tem as suas prescrições (“tabus”) e as suas verdades (“dogmas”), pode ter os “sonhos” como objeto de normatização ou regulação? Podem os “sonhos” se tornarem “possibilidades fáticas” validamente autorizadas e regularmente exercitáveis? Ou seja, podem os “sonhos” se tornarem “direitos”? Quais “sonhos” podem ser regulados? Todo e qualquer “sonho” pode ser objeto do Direito ou somente aqueles que sejam intersubjetivamente compartilhados e faticamente possíveis? Em nossa avaliação, sonhos possíveis e intersubjetivamente compartilhados podem ser juridicamente normatizados e podem ser efetivamente concretizados.

O presente texto (verdadeiro panfleto) tem como finalidade realizar uma leitura realista e pragmática dos direitos humanos fundamentais do indivíduo naturalmente vulnerável, sob as luzes do dever de sacrifício e da ética da responsabilidade, a partir da ideia de que os sonhos também podem ser vislumbrados como direitos humanos fundamentais e que estes - os direitos humanos fundamentais - podem ser considerados como sonhos concretizáveis.

Delimitaremos o objeto deste artigo nos direitos humanos fundamentais dos indivíduos naturalmente vulneráveis, segundo o disposto no Capítulo VII, arts. 226 a 230, Constituição Federal, que normatiza a Família, a Criança, o Adolescente, o Jovem e o Idoso. Nesse citado capítulo da Constituição também há preceitos sobre as pessoas com deficiência, que inclusive serão destinatárias de nossas considerações, assim como as mulheres. Convém, nada obstante longos, transcrever esses elucidativos e pedagógicos preceitos:

CAPÍTULO VII

Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos:

I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil;

II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação.

§ 2º A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.

§ 3º O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7º, XXXIII;

II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas;

III - garantia de acesso do trabalhador adolescente e jovem à escola;

IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica;

V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade;

VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado;

VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins.

§ 4º A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.

§ 5º A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros.

§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

§ 7º No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se- á em consideração o disposto no art. 204.

§ 8º A lei estabelecerá:

I - o estatuto da juventude, destinado a regular os direitos dos jovens;

II - o plano nacional de juventude, de duração decenal, visando à articulação das várias esferas do poder público para a execução de políticas públicas.

Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.

Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

§ 1º Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares.

§ 2º Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos.

Além dos aludidos preceitos constitucionais, serão visitados textos normativos nacionais e internacionais sobre essas temáticas, como sucede, por exemplo, com o “Estatuto da Criança e do Adolescente” (Lei n. 8.069/1990), o “Estatuto da Juventude” (Lei n. 12.852/2013), o “Estatuto do Idoso” (Lei n. 10.741/2003), o “Estatuto da Pessoa com Deficiência” (Lei n. 13.146/2015) a “Convenção sobre os Direitos da Criança” (Decreto n. 99.710/1990), a “Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência” (Decreto n. 6.949/2009), dentre outros. E, evidentemente, analisaremos algumas decisões judiciais ou administrativas que versem sobre esses direitos humanos fundamentais.

Tenha-se que não cuidaremos das minorias ou grupos vulneráveis no plano social, cultural ou econômico, como sucede com as minorias étnico-raciais ou religiosas, dentre outras, porque essas minorias vulneráveis estão circunscritas a contingências espaciais ou a contextos históricos, e são eminentemente construtos sociais ou culturais. É óbvio que esses outros temas são relevantes na proteção e promoção dos direitos humanos fundamentais, porém não serão, neste texto, objeto de nossas atenções2 3 . Focaremos nos destinatários naturais e civilizatórios dos direitos humanos fundamentais: crianças, adolescentes, jovens, idosos, deficientes e mulheres. 4

Motivo desse recorte metodológico e epistemológico? Essas são as pessoas humanas natural e universalmente vulneráveis e sujeitas à eventual covardia dos que tenham força física ou psicológica superior e que podem usar dessa eventual superioridade para prejudicar ou para fazer o mal, ao invés de ajudar e fazer o bem. Isso porque os direitos humanos fundamentais são uma promessa (expectativa) de que os mais fortes não deverão utilizar dessa “superioridade” em desfavor dos mais fracos ou vulneráveis. Os “mais fortes” não estão autorizados a utilizar de seu poder contra os “mais fracos ou vulneráveis”. Essa é a diferenciação ética que concede a superioridade moral dos direitos humanos fundamentais: um compromisso civilizatório entre o “poderoso” e o “vulnerável”, visando uma convivência simbiótica, cooperativa, harmônica e equilibrada. 5

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Em nossa avaliação, podemos divisar, quanto à essência, três espécies de direitos humanos fundamentais: a) os naturais; b) os morais; e c) os artificiais. 6 Os primeiros dizem respeito aos direitos humanos fundamentais “naturais” (aqui entendidos como legítimas possibilidades) que todo ser vivo possui de garantir e de ter garantida a sua sobrevivência, a sua integridade física e moral, e a sua perpetuação, como sucede com o direito de viver, de não sofrer agressões e de ter uma boa, adequada e suficiente subsistência, bem como de satisfazer suas necessidades biológicas e antropológicas.

Os segundos, os direitos humanos fundamentais “morais”, dizem respeito aos avanços civilizatórios e culturais de decência ética, na medida em que se reconhece o valor moral do outro, mormente do mais fraco e do indefeso, daquele que sozinho não se basta e que necessita de uma especial proteção, ante as diferenças naturais, como ocorre com os fetos nascituros e os idosos, por exemplo.

E por fim os direitos humanos fundamentais “artificiais” que resultam dos avanços tecnológicos, científicos e econômicos de determinada sociedade em determinado espaço geográfico e em determinado período temporal, como os avanços nos campos da saúde, da educação, da moradia, das comunicações, dos transportes e tantos outros confortos e melhorias decorrentes da opulência ou da riqueza produzida em uma sociedade.

À luz dessa classificação, neste texto, como já mencionado, cuidaremos da justa e correta moralidade dos direitos humanos fundamentais das crianças, dos adolescentes, dos jovens, dos idosos, dos deficientes e das mulheres. Por consequência, trataremos dos deveres humanos fundamentais dos “fortes ou poderosos”, ou seja, daqueles que estejam em uma situação fática e natural de superioridade quanto a esses referidos destinatários da proteção normativa dos direitos humanos fundamentais. É que para todo direito (bônus) há um correspondente dever (ônus). Se se diz que há “direitos humanos fundamentais” por decorrência lógica inescapável há “deveres humanos fundamentais”, e esses “deveres” também podem ser divisados, quanto à essência, em três: a) os deveres naturais; b) os deveres morais; e c) os deveres artificiais.7

Essa aludida classificação espelha a relativa aos direitos naturais, morais e artificiais. E esses “deveres humanos fundamentais” significam o sacrifício e a responsabilidade em respeitar os “direitos humanos fundamentais”. E na hipótese de ameaças ou lesões aos “direitos humanos fundamentais” surge o “dever” de punir quem viole esses “direitos”. Essa punição tem caráter “ortopédico”, “terapêutico” e “pedagógico”, pois corrige “fratura” moral, e instrui para uma correção de postura, seja do violador seja de potencialmente violadores.

Nada obstante esteja prescrita a inviolabilidade dos direitos humanos fundamentais, essa inviolabilidade, infelizmente, é frustrável. Reitera-se: todo direito é uma promessa, uma expectativa, e como tal ela pode ser frustrada. Direito não é uma certeza, mas uma possibilidade. E os direitos humanos fundamentais são passíveis de lesões ou violações. Daí que a inviolabilidade e a sacralidade dos direitos humanos fundamentais consistem no alto reconhecimento simbólico desses acordos civilizatórios decorrentes da evolução moral da sociedade, sobretudo nos últimos 250 anos da história humana. Com efeito, e de modo bem mais específico, nos últimos 50 anos o Mundo mudou muito e para muito melhor para quase todos. E a tendência é continuar melhorando para absolutamente todos, sobretudo para os seres humanos mais vulneráveis, ou seja, para as crianças, os adolescentes, os jovens, os idosos, os deficientes e as mulheres. 8

Eis a premissa fática: para todo direito surge um dever correspondente. Ou em uma contabilidade singela: para todo “bônus” surge um “ônus” correspondente. E “deveres” ou “ônus” implicam “responsabilidades” ou “sacrifícios”. Assim, todas as vezes que se reivindicar um “direito”, que é uma “promessa” (e não um fato), deve-se vislumbrar quem terá o “dever”, que também é uma outra “promessa”, de se responsabilizar ou de se sacrificar. Em linguagem sem rebuços: se “A” tem um “direito”, é porque “B” tem um “dever”. Se “A” tem um “bônus”, é porque “B” tem um “ônus”. Se “A” está autorizado a satisfazer as suas necessidades ou interesses, é porque “B” tem de se responsabilizar e de se sacrificar para a satisfação das necessidades ou interesses de “A”.

Logo, só onde houver uma profunda cultura do “dever de responsabilidade” e da “ética do sacrifício” é que vicejam os “deveres humanos fundamentais”, e a partir destes (dos deveres humanos fundamentais) é que aqueles (os direitos humanos fundamentais) se tornam um sonho concretizável ou uma esperança realista. Daí que a ênfase tradicional está equivocada: em vez de focar nos “direitos”, sugiro centrar as atenções nos “deveres”. 9

Sem estes (os deveres) não há aqueles (os direitos). Direitos e deveres visam a paz e a justiça. Paz significando o fim de conflitos e controvérsias, a ordem, a tranquilidade, a previsibilidade, a certeza e a segurança. Justiça significando a satisfação de legítimas e lícitas pretensões, interesses e necessidades, de sorte a viabilizar uma sociedade equilibrada, que reconhece e dá a cada um segundo o seu valor, o seu esforço, o seu talento, as suas capacidades ou habilidades, mas não esquece de reconhecer e de dar a cada um segundo a sua necessidade. Ou seja, buscar a harmonia entre o “mérito”, a “necessidade” e as “limitações”.

Uma sociedade equilibrada requer o “indivíduo cooperativo” ao invés do “egoísta parasitário”. O “indivíduo cooperativo” se caracteriza e se distingue pelo senso do “dever de responsabilidade” e pela consciência da “ética do sacrifício”. Já o “egoísta parasitário” não se vê “responsável” nem “altruísta”, mas se julga credor dos outros, vítima da sociedade, e exige que o outro se sacrifique por ele: requer, do outro, responsabilidade, altruísmo e sacrifício. Normalmente o “egoísta parasitário” é uma figura possuidora de pelo menos uma das seguintes características: preguiça, hipocrisia, inveja, ressentimento e maldade. E tende a ser “covarde” ou “mau-caráter”, e excepcionalmente um “ignorante”, incapaz de reconhecer-se como corresponsável pelo seu destino, seja pelos os seus êxitos meritórios ou pelo infortúnio de seus fracassos.

Com efeito, o “dever de responsabilidade” e a “ética do sacrifício”, no rastro de Jordan Peterson, significam a capacidade de o indivíduo assumir o seu lugar no Mundo como agente e sujeito exclusivo de seu destino, assumindo as consequências de suas escolhas ou daquilo que não pode fugir, como sucede, por exemplo, com as responsabilidades paternas em relação aos filhos, ou destes em relação aos seus pais idosos ou incapacitados. Nessa perspectiva, imperam o livre altruísmo e o senso de moralidade, provocados, não raras vezes, por uma ação irracional, irrefletida e consubstanciada em uma longa tradição familiar ou comunitária, motivada ou pelos naturais vínculos biológicos ou pelos sagrados vínculos afetivos. Essa força mágica impulsiona o indivíduo a agir de modo “cooperativo” ou até mesmo com “heroísmo”, porquanto capaz de se sacrificar pelo outro, simplesmente por ser essa a sua responsabilidade. Daí que sem essas premissas (“ética do sacrifício” e “dever de responsabilidade”) não há como se falar em “deveres humanos fundamentais”, muito menos em “direitos humanos fundamentais”.

A rigor não se pretende ingênua e infantilmente cogitar de um “onirismo constitucional”, no sentido de uma defesa das promessas normativas inatingíveis ou de difícil concretização, tampouco cinicamente combater o “onanismo constitucional”, aqui entendido como o conjunto de preceitos inúteis ou que inconvenientemente sobrecarregam o texto normativo de assuntos que não deveriam ser veiculadas na Constituição. A Constituição somente deveria regular matérias relevantes e úteis para a comunidade. O efêmero, o irrelevante e o inútil não deveriam constar em uma Constituição (nem mesmo nas Leis). Recorde-se, ademais, que a Constituição sobrecarregada de promessas irresponsáveis ou inconsequentes tem provocado uma “ansiedade constitucional”, porque as pessoas leem o texto normativo e não compreendem o divórcio entre o texto (a promessa) e a realidade.

Todos os textos normativos (jurídicos, morais, religiosos etc.) veiculam promessas. Em nossa Constituição há promessas para o nosso “Leviatã tupiniquim” em uma perspectiva que nem mesmo a Bíblia sagrada fizera para o “Javeh dos hebreus”, que também é um livro de promessas. A principal diferença reside no cumprimento, na ansiedade e na angústia em relação a essas promessas. Para os fiéis crentes no “Deus de Abraão”, as suas promessas serão plena e totalmente honradas e cumpridas com a nossa morte (mas ninguém tem pressa nisso), enquanto que as promessas do “deus artificial”, que é o Estado, todos queremos que sejam plenamente honradas “hic et nunc” (aqui e agora), em vida, e muitos estamos apressados. Eis a angústia e ansiedade de nossa sociedade. É uma sociedade aflita por direitos (promessas): vivemos tempos de “aflição constitucional”.

Para esses tempos de aflição individual e angústia coletiva, convém recordar exemplos simbólicos. Devemos nos lembrar da promessa de Winston Churchill10 aos britânicos em relação à Segunda Guerra Mundial no que lhes prometeu somente “Sangue, trabalho, lágrimas e suor” para enfrentar os aparentemente invencíveis alemães. E devemos recordar de Martin Luther King Jr., que sem perder a esperança em uma humanidade digna, tinha o sonho (I have a dream) 11 de que cada pessoa saberia agir com igual responsabilidade para que todos, independentemente de sua cor ou etnia, crenças ou origens, pudessem conviver fraternalmente. É possível unir as “duras promessas” de Churchill com os “esperançosos sonhos” de Luther King, de modo a viabilizar a harmonia nas relações humanas e a pacificação social? Creio que sim.

Todavia, para isso, há de haver uma mudança cultural fortalecendo a importância do mútuo respeito e consideração entre pessoas que são moralmente iguais, independentemente de sua condição natural ou social. E aqueles que eventualmente não queiram ou não desejem cumprir com os seus “deveres humanos fundamentais” ou de respeitar os “direitos humanos fundamentais” alheios, agindo de modo “parasitário”, injustamente prejudicando e fazendo o mal, deverão ser exemplarmente punidos. Somente assim viabilizaremos uma sociedade equilibrada, fundada na paz, na justiça e na prosperidade, ou seja, uma sociedade de homens e mulheres que levam a sério os seus deveres e direitos fundamentais, e assim possam concretizar os seus “sonhos” e experimentar a “felicidade”.

Entendida a felicidade como a satisfação dos prazeres, desejos, necessidades e vontades, poderia ela ser vislumbrada como um direito? Ou seria apenas um sonho? Seria viável sonhar com esse direito? E o que seria esse “direito à felicidade”? Haveria um “dever à felicidade”? São compatíveis “felicidade”, “responsabilidade” e “sacrifício”? Quais as possibilidades, os parâmetros e os limites normativos do direito à felicidade? Quais prazeres ou desejos ou necessidades ou vontades individuais ou coletivas seriam lícita e legitimamente albergados pelo direito à felicidade? E as frustrações ou a não satisfação desses prazeres ou desejos ou necessidades ou vontades devem ser vislumbradas como violação ao direito à felicidade? Quais as consequências normativas das violações ao direito à felicidade? Quais as sanções aplicáveis aos eventuais violadores do direito à felicidade? Recorde-se, sempre, que a sanção punitiva é a “inflição de infelicidade”, ou seja, uma consequência ruim porque contrária aos prazeres ou desejos ou vontades ou necessidades do seu destinatário.

Mas antes de falarmos dos “sonhos”, ou mesmo da “felicidade”, falemos dos direitos humanos fundamentais dos indivíduos vulneráveis.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O direito aos sonhos e os sonhos como direitos:: uma leitura realista e pragmática dos direitos humanos fundamentais dos indivíduos naturalmente vulneráveis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7409, 14 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84040. Acesso em: 28 mar. 2024.

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