Capa da publicação Direito aos sonhos: direitos humanos dos indivíduos naturalmente vulneráveis
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O direito aos sonhos e os sonhos como direitos:

uma leitura realista e pragmática dos direitos humanos fundamentais dos indivíduos naturalmente vulneráveis

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3. A felicidade como direito e o direito à felicidade

A concretização dos aludidos direitos humanos fundamentais é um “sonho” capaz de transformar a nossa sociedade em uma comunidade de pessoas “felizes”. Mas o que seria essa felicidade e esse direito à felicidade? Cuide-se que uma das motivações provocativas deste artigo descansa suas raízes no livro “Direito à Felicidade”, de autoria de Saul Tourinho Leal52 , que tem se tornado, desde o seu surgimento, em valioso magistério doutrinário na justificação de várias decisões judiciais, mormente em julgados do Supremo Tribunal Federal. Com efeito, não são poucas as decisões emanadas de nossa Suprema Corte que utilizam os subsídios doutrinários contidos no aludido magistério, razão pela qual visitaremos essa citada obra que já se tornou canônica, e o seu autor uma referência no tema.

Segundo esse autor, o direito à felicidade é o direito de planejar e dar execução a um projeto racional de satisfação de preferências legítimas, considerando, nessa tarefa, ainda que minimamente, chances de êxito. Saul Tourinho Leal buscou no conceito de felicidade estabelecido por John Rawls a sua fonte inspiradora, visto que para Rawls a pessoa é feliz quando está a caminho da execução (mais ou menos) bem-sucedida de um plano racional de vida elaborado em condições (mais ou menos) favoráveis e tem razoável confiança na possibilidade de realização de suas intenções (ou preferências, como utiliza Saul).

Pedagógicas as valiosas conclusões contidas no citado livro “Direito à Felicidade”:

O constitucionalismo moderno, marcado pelas revoluções norte-americana e francesa, alçou a felicidade pública como sua meta, influenciando, com essa bandeira, a independência do Brasil e seus primeiros documentos constitucionais, que também eram profundamente marcados pela teoria da felicidade.

A filosofia oferece um marco teórico forte no que diz respeito à formatação da teoria da felicidade e sua aliança contemporânea com o constitucionalismo.

O movimento utilitarista, outrora relegado ao ocaso em razão das suas falhas no que diz respeito aos direitos naturais, pode ser submetido a uma calibração, desde que suas ideias – especialmente as de John Stuart Mill -, transitem sob a nuvem dos direitos fundamentais, sendo possível utilizá-lo como elemento informacional disponibilizado ao julgador no momento de proferir uma decisão no âmbito da jurisdição constitucional.

As pesquisas sobre a felicidade dos povos têm mostrado realidades que não podem estar afastadas do constitucionalismo. As impressões da sociedade sobre democracia, minorias, saúde, corrupção, religião, desemprego, divórcio e muitos outros campos da vida, devem contar com a consideração e respeito da jurisdição constitucional, que, a cada dia, passa a tomar decisões mais importantes no bem-estar da sociedade.

A teoria da felicidade não pode ser utilizada de forma incriteriosa como justificativa de decisões autoritárias que ao invés de ouvir as impressões dos cidadãos acerca da felicidade, passa a impor suas próprias ideias sobre o que faz cada pessoa mais feliz. A experiência do Reino do Butão e na África do Sul, além de alguns episódios na América Latina são ilustrativos.

O direito à busca da felicidade tem sido confrontado nos tribunais, a exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos, na Coreia do Sul e no Brasil. Trata-se de mais do que um obter dictum, passando a compor a ratio decidendi de importantes casos apreciados pela jurisdição constitucional.

Alguns julgamentos ocorridos no âmbito da jurisdição constitucional brasileira têm usado a nomenclatura proporcionalidade e razoabilidade para justificar a tomada de decisão quando a Corte está diante de uma aparente colisão de bens. Todavia, muitas vezes o que se faz é um emprego de ideias utilitárias, como se deu no julgamento sobre as uniões homoafetivas, das políticas de cotas e na construção da jurisprudência dos crimes de bagatela.

A teoria da felicidade oferece um novo critério de mensuração de danos impostos às pessoas nas suas relações, os danos hedônicos, que suplantando a ideia inicial de danos morais, tenta compensar a pessoa pela perda da felicidade com o gozo da vida em razão de danos injustamente suportados.

Saul Tourinho Leal denomina as aludidas conclusões como “primeiras conclusões”. E com humilde sabedoria assinala:

Não fechamos a porta, contudo, para que novas impressões surjam à medida que os debates se intensifiquem e que o trabalho seja submetido à crítica pública. Sempre que novas impressões, pela sua consistência, contarem com a nossa atenção, poderemos retornar as linhas teóricas apresentadas no trabalho e promover releituras que, inevitavelmente, podem nos dirigir para conclusões mais refinadas. De todo modo, até aqui, essas são, de fato, as nossas conclusões.

Como a porta ficou aberta, senti-me convidado a entrar, promovendo a minha leitura dessa opus magnum de Saul Tourinho Leal.

Para alcançar suas conclusões, Saul Tourinho Leal percorreu um longo caminho na construção de seu livro, como se percebe, tanto na leitura da Introdução quanto se vê ao longo do desenvolvimento de seus 19 capítulos. Com efeito, Saul parte da premissa de que a felicidade passou a compor os debates jurídicos internacionais, tanto no plano acadêmico quanto no político-normativo, e que o tema, no Brasil, necessitaria de uma investigação específica. Saul indaga se é possível defender a existência de um direito à felicidade e se a felicidade poderia ser entendida como um bem constitucionalmente protegido, viabilizado por leis e políticas públicas, bem como usada como fundamento normativo pelos tribunais. Saul também lança preocupações sobre o uso abusivo ou demagógico, quiçá espúrio, do “direito à felicidade” mormente por aqueles que a pretexto de “felicitar” as nações, causam “infelicidades” entre a população, como sucede, por exemplo, com a Venezuela e o seu Ministério da Suprema Felicidade Social.

Para o autor, se faz necessário verificar se assim como “liberdade” e “igualdade”, a “felicidade” pode ser base de um direito. Saul faz um longo passeio pela história política e pela história das ideias para construir o seu edifício doutrinário, passando, também, por uma série de textos normativos, bem como decisões judiciais nacionais e estrangeiras. Nessa perspectiva, avança em uma dogmática jurídica, procurando nos termos jurídicos significados que podem ser entendidos como viabilizadores da felicidade, como o termo “bem-estar”. E, ainda em uma dogmática jurídica, para o autor o direito à felicidade abriria espaço para um sistema normativo cujas bases se apresentariam em pelo menos seis vieses:

  • (i) felicidade pública (participação popular);

  • (ii) direito à busca da felicidade (liberdade);

  • (iii) direito ao bem-estar objetivo (direitos sociais);

  • (iv) direito ao bem-estar subjetivo (felicidade);

  • (v) vedação aos prazeres sádicos (dignidade da pessoa humana); e

  • (vi) ampliação da felicidade coletiva como consequência da decisão estatal (método utilitarista).

A indiscutível e inquestionável complexidade do tema exigiu que o autor se aprofundasse na história das ideias para poder demarcar os sentidos possíveis do termo “felicidade” e os vários tipos de “felicidade”. Principiando pelos pais fundadores da filosofia ocidental (Sócrates, Platão, Aristóteles), o autor perpassa pelas tradicionais escolas greco-romanas (epicurismo, hedonismo, estoicismo etc.), e salta para autores modernos como Hobbes, Locke e Kant, até chegar nas figuras de Nietzsche, Schopenhauer e da “revolucionária” figura de Madame du Châtelet, para quem “só vale a pena viver quando se têm sensações e sentimentos agradáveis; quanto mais vívidos forem os sentimentos agradáveis, mais felizes somos”. Saul visita os filósofos dos iluminismos escocês e alemão, e finaliza com Sigmund Freud e a subjetividade da felicidade.

Nos capítulos subsequentes, Saul analisa o utilitarismo de Jeremy Bentham e de John Stuart Mill. Em síntese, a partir da premissa benthamniana de que as escolhas devem se guiar pelo princípio da felicidade maior, ou seja, deve-se escolher aquilo que provocar maior felicidade para a maior quantidade de pessoas, tendo em perspectiva a luta permanente entre os dois soberanos da natureza: a dor e o prazer. Saul faz análise crítica dos críticos de Bentham, como Richard Posner, Michael Sandel, Amartya Sem e John Rawls, para quem as pessoas devem assumir as responsabilidades por suas preferências. Mas as ideias que seduziram Saul foram as de Mill, tendo em vista o profundo conteúdo ético desse utilitarismo, que, segundo Saul, consiste em fonte inspiradora dos direitos humanos fundamentais, como a defesa da igualdade jurídica e moral entre os homens e mulheres, demonstrando os ganhos objetivos, subjetivos e intersubjetivos dessa possibilidade.

Em outro capítulo, Saul avança em estudos econômicos sobre a felicidade e em pesquisas que visavam parametrizar objetivamente a felicidade das nações e povos, mas apresenta a conclusão de que nem sempre sociedades ricas são necessariamente felizes ou as mais felizes, tendo em vista a múltipla complexidade da questão “felicidade” e os problemas das comparações entre as felicidades possíveis.

Posteriormente, Saul visita os documentos e movimentos políticos fundantes da modernidade constitucional, como a Declaração de Independência dos Estados Unidos, onde se positiva a busca da felicidade como direito inato do homem, a própria Revolução Francesa e os reflexos sentidos no Brasil que resultaram na Independência. Saul descortina que a felicidade ora foi o “pretexto” ora a “finalidade” dos vários movimentos político-constitucionais, servindo de combustível para rupturas institucionais relevantes. Nessa perspectiva, Saul alerta para os riscos da captura da felicidade pelos populistas e demagogos, que utilizam dessa poderosa ferramenta retórica para deturpar a substância dela, ao invés de produzir felicidade causam infelicidade, em utilização distorcida da felicidade.

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Saul analisa o magistério doutrinário que percebeu a substituição dos ícones e a entronização de novos ídolos: o Direito no lugar da Religião, a Constituição no lugar da Bíblia, o Estado no lugar da Igreja, o Povo no lugar de Deus, que vem a ser a passagem da pré-modernidade para a modernidade juspolítica.

O autor demonstrou várias ações e medidas políticas, de caráter legislativo ou administrativo, e inclusive judicial, que contribuiriam para um implemento e incremento tanto da ideia quanto da efetividade da felicidade como do seu direito. Com fôlego, o autor mergulha na dogmática do direito à felicidade, visitando autores, textos normativos e julgados que revelariam um compromisso com esse direito, perspectivando, inclusive, um direito geral e seus desdobramentos, utilizando as poderosas luzes de denso magistério doutrinário para melhor iluminar seus passos e suas compreensões, e faz uma contundente crítica ao “achismo”, “intuições” e “voluntarismos” que se aproveitam da “felicidade”, sem consistência normativa e argumentativa.

Por fim, Saul alcançou as conclusões já aludidas. O seu texto está bem alicerçado. Não se trata de uma leitura ou interpretação frívola do direito de felicidade ou de busca da felicidade, mas de um texto que procurou delimitar qual felicidade seria juridicamente possível e reivindicável. Por essa razão, se tornou obra canônica e o autor nome referencial no tema.


4. Os sonhos como direitos e os direitos aos sonhos

O ceticismo de Millôr Fernandes (“Eu desconfio de todo idealista que lucra com o seu ideal”) deve nos servir como grave advertência para não nos deixarmos seduzir por falsos profetas e por suas sedutoras ilusões. Nada obstante, todos sabemos que o sonho requer o sono, mas pressupõe o desejo. A sua concretização requer o despertar, mas pressupõe a vontade e a ação.

Quais sonhos podem ser juridicamente regulados? Quais podem ser viabilizados? E quem deve viabilizar? Como viabilizar ou reivindicar? As respostas já foram explicitadas ao longo deste texto. Somente os sonhos faticamente possíveis podem ser objeto de regulação jurídica. Essa regulação jurídica deve ser bem calibrada e deve deixar claro quais as instituições responsáveis pela concretização desse direito aos sonhos. O Estado não pode nem deve ser o único a viabilizar a realização de direitos e de sonhos, por isso as promessas normativas estatais devem ser muito cautelosas para que ao invés de sonhos, não se concretizem pesadelos.

Não há indivíduos nem instituições perfeitos. Nada obstante, podemos vislumbrar alguns indivíduos ou instituições com muitas qualidades admiráveis e que espelham bons exemplos. No caso de instituições, podemos mirar nos países que alcançaram excelentes níveis de civilidade ética e de conforto material, com avanços tecnológicos e científicos, de sorte que os indivíduos que habitam e vivem nessas sociedades moral e materialmente avançadas consigam realizar os seus específicos projetos existenciais de vida, independentemente de suas singulares características, como a origem, o sexo, a idade, a cor, a crença religiosa, a intimidade ou vida sexual, a condição econômica ou social, e de quaisquer outras particularidades. Nessas sociedades vicejam o cooperativismo social entre os indivíduos naturalmente fortes e os indivíduos naturalmente vulneráveis.

Nessa perspectiva, a partir das experiências exitosas dessas sociedades e desses indivíduos, fazendo os necessários e devidos ajustes, devemos imitar esse bons exemplos e práticas de sucesso, bem como evitar o sabidamente fracassado. Para isso, que cada indivíduo assuma o seu papel no Mundo e se torne o responsável, na medida de suas possibilidades, pelo seu destino, ou assuma a sua responsabilidade e o seu sacrifício em favor daqueles que não consigam se responsabilizar, mormente por uma questão natural de vulnerabilidade. A concretização dos sonhos exige um compromisso ético. Não depende de apenas um indivíduo, mas não pode ser viabilizado sem o indivíduo.

Daí que tornar a nossa sociedade segura e justa para as crianças, para os adolescentes, para os jovens, para os idosos, para as mulheres e para as pessoas com deficiência, em comparação com outras sociedades que já conseguiram essa realidade, é um sonho absolutamente possível. Que os bons exemplos sejam imitados. Que a magia dos textos normativos seja uma poderosa aliada da busca dessa realidade: a felicidade dos indivíduos naturalmente vulneráveis, que repercutirá na felicidade dos fortes e heroicos responsáveis.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O direito aos sonhos e os sonhos como direitos:: uma leitura realista e pragmática dos direitos humanos fundamentais dos indivíduos naturalmente vulneráveis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7409, 14 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84040. Acesso em: 22 nov. 2024.

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