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Do reexame necessário em matéria penal no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo

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25/05/2006 às 00:00
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3. DO INSTITUTO DO REEXAME NECESSÁRIO OU "RECURSO DE OFÍCIO" EM MATÉRIA PENAL.

3.1 – Considerações preliminares.

Antes de quaisquer considerações acerca da permanência ou não do instituto em tela no ordenamento jurídico pátrio em face da ordem constitucional inaugurada com a Carta de 1988 e do Direito Internacional Público, debate ao qual se propõe o presente trabalho, tecer-se-ão algumas considerações preliminares acerca do sistema acusatório no processo penal, assim como sobre a Ação Penal e os Recursos, por imprescindíveis ao desenvolvimento adequado do tema.

3.1.1– Do Sistema acusatório.

Parece oportuno repisar alguns conceitos sobre os sistemas penais e processuais penais conhecidos pela humanidade ao longo de sua história, resgatando, notadamente, aquelas noções distintivas entre os sistemas inquisitivo e acusatório, esclarecedoras na análise do tema proposto.

De se recordar, neste intuito, alguns aspectos básicos da história do direito repressivo.

Nos primórdios o mal acarretado pela prática dos atos anti-sociais que hoje conhecemos pela denominação ilícito, eram atribuídos a forças sobrenaturais, sendo seu autor punido como forma de desagravar as divindades. [13]

Mais tarde, passou-se à fase da vindita ou vingança privada, que não raro desembocava em conflitos intertribais ou intergrupais, em prejuízo de toda uma coletividade.

Neste contexto primitivo, o advento da "lei de talião", cujo conceito se resumia, a grosso modo, no brocardo "olho por olho, dente por dente", não pode deixar de ser visto como uma evolução, face a noção de proporcionalidade que encerra, inexistente ou rara até então. [14]

Posteriormente evoluiu-se para o sistema denominado composição, sistema este no qual o infrator comprava a sua liberdade, para livrar-se do castigo, precursor da moderna reparação civil e das penas pecuniárias. [15]

Por fim afastou o Estado a vingança privada, chamando para si o poder-dever de manter a ordem e a segurança sociais, através da atuação da jurisdição heterônoma na composição das lides.

Ao longo do lento e gradual desenvolvimento do direito penal e do processo penal, algumas fases ou etapas destacam-se sobremaneira. Em toda a história do direito penal, foram conhecidos dois grandes sistemas, a saber, o inquisitivo e o acusatório. O primeiro foi típico do direito medieval e do direito canônico, o segundo de feição liberal, pós-iluminista, nitidamente influenciado pelas idéias de pensadores como Cesare de Beccaria, John Howard ou Jeremias Bentham.

Dignas de análise, neste ponto, algumas das principais características distintivas de ambos os sitemas, de conformidade com a doutrina pátria.

PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN e JORGE ASSAF MALULY, referindo-se ao processo de caráter inquisitivo, ensinam:

No autorizado magistério de Giovanni Corso, o sistema inquisitivo, tal como praticado no tempo de Diocleciano, dos imperadores do Oriente e no Direito Canônico, tem como principais características:

"(a) intervenção ex officio do juiz; (b) caráter sigiloso do processo com relação não apenas aos cidadãos, mas ao próprio acusado; (c) procedimento e defesa totalmente escritos; (d) desigualdade de poderes entre o juiz-acusador e o acusado; (e) total liberdade do juiz na colheita da prova; (...) (g) encarceramento preventivo do acusado".

Por suas características, não é difícil inferir que o acusado é, na verdade, objeto do processo (e não sujeito de direitos) e não tem, como conseqüência, a proteção de qualquer garantia substancial. [16] (destacou-se).

Com efeito, o festejado autor FERNANDO CAPEZ, discorrendo sobre o sistema inquisitivo, assevera:

É sigiloso, sempre escrito, não é contraditório, e reúne na mesma pessoa as funções de acusar, defender e julgar. O réu é visto nesse sistema como mero objeto da persecução, motivo pelo qual práticas como a tortura eram freqüentemente admitidas como meio para se obter a prova-mãe: a confissão. [17] (sem destaques no original).

Das lições da doutrina vê-se claramente que o réu não era encarado, no sistema inquisitivo, como sujeito do processo e, por conseguinte, sujeito de direitos, mas como mero objeto da persecução. [18]

As citadas observações doutrinárias apontam ainda, como traços marcantes do sistema, a falta de imparcialidade do órgão julgador, de contraditório e ampla defesa, bem como de publicidade. Outro traço típico do sistema inquisitivo que se deve sublinhar é aquele da inexistência de isonomia entre as partes.

Já o sistema acusatório, conforme afirmado anteriormente, norteia-se por princípios diversos, podendo-se afirmar até mesmo diametralmente opostos, inspirados pelo pensamento liberal.

O eminente FERNANDO CAPEZ, a discorrer sobre os tipos de processo penal, referindo-se desta feita ao sistema de cunho acusatório, enumera algumas de suas características, assinalando notadamente ser o mesmo "contraditório, público, imparcial, assegura ampla defesa; há distribuição das funções de acusar, defender e julgar em órgãos distintos." (CAPEZ, 2002, p. 40).

De tal enumeração vê-se com clareza a diferença existente entre ambos os sistemas, diferenças estas relevantes no exame do tema em mesa. [19]

Cabe transcrever ainda pequeno trecho da lavra dos doutos PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN e JORGE ASSAF MALULY:

No sistema acusatório as funções de acusar (pública ou privada), defender e julgar são incumbidas a diferentes pessoas. Assegura-se ao imputado a igualdade de armas, de acordo com o princípio do equilíbrio de situações. [20] (destacou-se)

São conhecidas de todos os operadores do direito, à saciedade, as conseqüências funestas da concentração, em um mesmo órgão, de funções distintas, como acusação e julgamento da causa, assim como aquelas oriundas de processos iniciados pelo órgão julgador de ofício, independentemente e provocação, notadamente o comprometimento da imparcialidade por tais métodos ocasionado.

Ademais não se pode crer que no atual estágio de desenvolvimento da ciência jurídica, notadamente dos ramos do Direito e do Processo Penal, bem como do Direito Constitucional, se questione sobre a importância da regra consagradora da isonomia processual, também nominada par conditio ou paridade de armas, segundo a qual as partes devem ser tratadas com igualdade.

Aliás, destaque-se que a mesma é decorrência direta do princípio, também constitucional, da isonomia jurídica geral (Art. 5º, caput, da CF).

Das lições transcritas depreendem-se as principais características de ambos os sistemas, sucintamente:

a.sistema inquisitivo: 1 - concentração numa mesma pessoa ou órgão das funções de acusar, defender e julgar; 2 - sigilo; 3 - ausência de ampla defesa e contraditório; 4 - supremacia do acusador sobre o acusado.

b.sistema acusatório: 1 – divisão das funções processuais de acusação, defesa e julgamento em pessoas ou órgãos distintos; 2 – publicidade; 3 – garantia de ampla defesa e contraditório; 4 – isonomia de partes e paridade de armas.

Estabelecidas as bases sobre as quais se assenta o sistema acusatório, inequivocamente adotado pela Carta de 1988, e partindo de tais premissas, passa-se, no item seguinte, a uma breve análise da ação penal e seus pressupostos, bem como, no subitem sucessivo, da teoria geral dos recursos, tudo com vistas ao adequado desenvolvimento do tema proposto, ao final.

3.1.2 –Da ação penal de do processo penal.

No conceito elaborado pelo insigne FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, citado por JULIO FABRINI MIRABETE, "ação é direito subjetivo de se invocar do Estado Juiz a aplicação do direito objetivo a um caso concreto. Tal direito é público, subjetivo, autônomo, específico, determinado e abstrato." [21]

Na lição de JULIO FRABRINI MIRABETE,

A Ação penal é, assim, "a atuação correspondente ao direito à jurisdição, que se exercita perante os órgãos da Justiça Criminal", ou "o direito de pedir ao Estado-Juiz a aplicação do Direito Penal Objetivo", ou ainda, o direito de invocar-se o Poder Judiciário para aplicar o direito penal objetivo. [22]

Em uma síntese das lições deixadas pela doutrina em geral, pode-se tentar definir a Ação Penal como sendo o direito-dever do Estado, ou de outros eventuais legitimados pela lei [23], a perseguir os Autores de infrações penais para, após comprovada a materialidade e autoria do delito, observadas as regras do devido processo legal constitucionalmente preconizado, puni-los de conformidade com as normas penais em vigor.

Trata-se de um direito que respeita, em princípio, somente ao Estado, haja vista a proibição da autotutela, assim como de um dever, uma vez que o Estado deve procurar a paz social e tendo-se em mente que o exercício preliminar do direito de ação é necessário ao exercício do jus puniendi estatal. [24]

Digna de nota a lição de FERNANDO CAPEZ:

Trata-se, pois, de jurisdição necessária, já que o ordenamento jurídico não confere aos titulares dos interesses em conflito a possibilidade, outorgada pelo direito privado, de aplicar espontaneamente o direito material na solução das controvérsias oriundas das relações da vida.

Nesse ponto entra o processo penal. A jurisdição só pode atuar e resolver o conflito por meio do processo, que funciona, assim, como garantia de sua legítima atuação, isto é, como instrumento imprescindível ao seu exercício. Sem o processo, não haveria como o Estado satisfazer sua pretensão de punir, nem como o Estado-Jurisdição aplicá-la ou negá-la. [25]

É sabido que a ação penal pode ser pública ou privada, subdividindo-se à primeira em pública incondicionada ou propriamente dita e pública condicionada à representação da vítima. [26]

O exercício da Ação Penal Pública incondicionada é atribuição constitucional do Ministério Público (Art. 129, I, CF), com exclusividade, e, conforme sugere o próprio nome, independe de condições para ser exercitada pelo órgão ministerial, bastando para isso a existência de justa causa, consubstanciada em indícios suficientes de autoria e prova da materialidade delitiva.

O exercício da Ação Penal pública condicionada à representação da vítima ou de quem tenha qualidade para representá-la visa permitir à vítima o exercício de um juízo de conveniência e oportunidade para o exercício da representação [27], a qual é, segundo a doutrina predominante, condição objetiva de procedibilidade.

Tal condicionamento tem em vista a própria preservação dos interesses da vítima, que muitas vezes pode preferir deixar o autor da infração penal impune a expor-se com a publicidade do processo (stepitus processus).

A Ação Penal privada pode ser exclusiva ou personalíssima, cabendo o exercício da primeira à vítima ou, em caso de óbito, a determinados familiares (cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, conforme art. 31 do CPP), e da segunda – personalíssima-, somente ao próprio ofendido, e hipótese na qual, sobrevindo o óbito do ofendido, não existe qualquer legitimado a propor a ação ou nela prosseguir.

O exercício da Ação Penal privada rege-se pelos mesmos fatores relativos ao juízo de conveniência e oportunidade da vítima já aludidos quando da menção à Ação Penal pública condicionada à representação. [28]

Existe ainda a Ação Penal privada subsidiária da pública, intentada pela vítima ou pelos legitimados do art. 31 do Código de Processo Penal pátrio, nas hipóteses de inércia do órgão ministerial, preconizada no inciso LIX do art. 5º da Constituição Federal, e tratada pelo art. 29 do CPP.

A importância do direito de ação é evidente, como meio adequado à provocação da jurisdição, para aplicação da lei ao caso concreto, diante da vedação da autotutela, bem como do princípio da inércia da jurisdição.

Além disso, a legitimidade para a ação penal guarda íntima relação com a legitimidade recursal, havendo certa simetria entre os pressupostos e condições da ação e os pressupostos e condições recursais, tema este que será mais detidamente explorado no capítulo seguinte.

Através do exercício do direito da ação penal pelo legitimado, conforme a hipótese, instaura-se o processo penal, que desempenha papel instrumental de dupla feição, conforme mencionado na introdução do presente estudo: além de ser instrumento que viabiliza a imposição da sanção penal, ou seja, veículo do direito penal material, é garantia constitucional, assecuratória de inúmeros direitos fundamentais arrolados no artigo 5º da Carta Magna e em outros instrumentos normativos, conforme se verá oportunamente.

Segundo FERNANDO CAPEZ,

A finalidade do processo é propiciar a adequada solução jurisdicional do conflito de interesses entre o Estado-Administração e o infrator, através de uma seqüência de atos que compreendam a formulação da acusação, a produção das provas, o exercício da defesa e o julgamento da lide. [29]

Prossegue o renomado mestre:

Para a consecução de seus fins, o processo compreende:

a.o procedimento, consistente em uma seqüência ordenada de atos interdependentes, direcionados à preparação de um provimento final; é a seqüência de atos procedimentais até a sentença;

b.a relação jurídica processual, que se forma entre os sujeitos do processo (juiz e partes), pela qual estes titularizam inúmeras posições jurídicas, expressáveis em direitos, obrigações, faculdades, ônus e sujeições processuais. [30]

Através da observância do procedimento legal e constitucionalmente preconizados com uma relação processual válida e regular, pretende o Estado a imposição válida de uma pena ao imputado, uma vez comprovada a autoria e materialidade delitiva.

3.1.3– Dos recursos.

Prolatada a decisão pelo órgão jurisdicional competente, de conformidade com as regras constitucionais e legais sobre a matéria, abre-se às partes, de regra, a possibilidade de recorrer da referida decisão, caso entendam que a mesma lhes causa gravame, ou seja, lhes foi desfavorável, com vistas a permitir sua revisão pelo mesmo ou por outro órgão jurisdicional. [31]

No magistério do insigne mestre VICENTE GRECO FILHO, "recurso é o pedido de nova decisão judicial, com alteração de decisão anterior, previsto em lei, dirigido, em regra, a outro órgão jurisdicional, dentro do mesmo processo".(GRECO FILHO, 1993, p. 307).

Segundo GRINOVER, GOMES FILHO e FERNANDES, recurso é "o meio voluntário de impugnação das decisões, utilizado antes da preclusão e na mesma relação jurídica processual, apto a propiciar a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou a integração da decisão". (GRINOVER, GOMES FILHO, FERNANDES, 2001, p. 30).

Na definição de FERNANDO CAPEZ, recurso é:

a providência legal imposta ao juiz ou concedida à parte interessada, consistente em um meio de se obter nova apreciação da decisão ou situação processual, com o fim de corrigi-la, modificá-la ou confirmá-la. Trata-se do meio pelo qual se obtém o reexame de uma decisão. [32][33]

CAMARA LEAL citado por FERNANDO CAPEZ, define recurso como sendo "’o meio processual que a lei faculta à parte ou impõe ao julgador para provocar a reforma, ou confirmação de uma decisão judicial’ (Comentários ao Código de Processo Penal brasileiro, 1943, v. 4, p. 32)." (CAPEZ, 2002, p. 392).

EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, citado por FERNANDO CAPEZ, conceitua recursos da seguinte forma:

é um remédio, cujo uso a lei expressamente ordena ao juiz ou autoriza à parte, que se considera prejudicada por uma decisão daquele ou por uma situação processual, visando à nova apreciação do caso focalizado, endereçado ao próprio julgador ou ao tribunal, a fim de corrigir, modificar ou confirmar o estado de coisas existente (Código de Processo Penal anotado, cit., v. 6, p. 10). [34]

Uma das principais funções do recurso, correlata à devolução do exame da causa à apreciação do Poder Judiciário, é aquela de impedir o trânsito em julgado da decisão, a preclusão máxima, no dizer da doutrina.

Neste sentido, ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, ANTONIO SCARANCE FERNANDES:

O recurso é um remédio contra as decisões judiciais, mas estas podem ser atacadas também por ações autônomas de impugnação. Como traço distintivo, costuma-se apontar o fato de que as últimas se dirigem contra decisões já passadas em julgado, enquanto os primeiros são exercíveis antes do trânsito em julgado, visando exatamente a obstá-lo. [35]

Denomina-se coisa julgada a eficácia de imutabilidade adquirida pela decisão judicial, em não sendo oportunamente exercido o recurso cabível ou em sendo esgotados os recursos, ou ainda, em não havendo previsão legal de recurso cabível para a espécie.

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Assim, em suma, a decisão judicial, uma vez proferida, somente adquirirá a eficácia de coisa julgada em não se verificando, por qualquer razão, recurso porventura cabível.

Baseiam-se os recursos em diversos fundamentos, dentre os quais destacam-se o normal inconformismo da parte sucumbente, a maior segurança jurídica oriunda do duplo grau de jurisdição, dentre outros.

O primeiro refere-se à natural insatisfação da parte com provimento jurisdicional que entenda desfavorável a si, permitindo-se à mesma a obtenção um novo pronunciamento sobre a matéria, normalmente feito por outro órgão jurisdicional, de regra de maior hierarquia em relação ao juízo a quo, e colegiado.

O segundo fundamento é, basicamente, aquele da segurança jurídica. Evidentemente a revisão da decisão minimiza o risco de erro judiciário, assim como um órgão colegiado, composto por magistrados com larga experiência, tende, pelo menos em tese, a julgar com maior acerto a causa.

Dentre os diversos efeitos dos recursos, um destaca-se sobremaneira no trato do tema em mesa, qual seja, o impedimento da formação da coisa julgada, com a conseqüente prorrogação ou prolongamento do processo e do exercício da Ação Penal.

Assim, pode-se afirmar com segurança que, de certo modo, quando a parte autora, seja o Ministério Público ou o particular legitimado, inconformados com decisão judicial que lhes é desfavorável, interpõe recurso da mesma, exercem o próprio direito de ação conferido por lei, até porque o interesse é pressuposto recursal, provocando o prolongamento do processo.

Isto explica a relação existente entre os pressupostos dos recursos e os pressupostos e condições da ação, conforme abordar-se-á no tópico seguinte.

3.1.3.1. Relações entre as condições recursais e as condições da ação.

De uma maneira geral, é uniforme a doutrina em apontar como condições ao exercício da ação a legitimidade de parte, o interesse processual - este consubstanciado no binômio necessidade-utilidade do provimento jurisdicional - e a possibilidade jurídica do pedido. [36]

Embora o manejo de um recurso não seja, tecnicamente, exercício do direito de ação, encontra-se intimamente relacionado com este último, podendo até mesmo ser considerado como desdobramento seu.

Com efeito, ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, ANTONIO SCARANCE FERNANDES, ensinam que:

Dada a natureza do direito de recorrer, pode-se estabelecer um paralelo entre as condições da ação e as condições dos recursos. Assim como para o exercício do direito de ação é necessário o atendimento de condições, sem as quais não se pode exigir o provimento jurisdicional, também para o exame do mérito do recurso é preciso que se cumpram as condições de exercício do direito recursal. O recurso, é certo, não instaura nova relação processual, tratando-se apenas de outra fase da mesma relação aberta com a demanda. Mas o direito à fase impugnativa, como desdobramento do próprio direito de ação, também se sujeita a condições de admissibilidade. [37] (sem destaques no original).

Ou seja, da lição dos supracitados juristas depreende-se com clareza ser o direito subjetivo à impugnação decorrência do próprio direito de ação, dada a íntima relação existente entre o exercício deste último e o exercício daquele.

Assim, é possível vislumbrar a necessidade do preenchimento de condições análogas às condições da ação para o exercício válido e regular do direito recursal. Neste sentido, a doutrina dos retro-citados autores:

Trata-se das mesmas condições exigidas para o exercício do direito de ação, quais sejam: a) a possibilidade jurídica, entendida como previsão, pelo sistema, do recurso utilizado; b) o interesse em recorrer, visto como necessidade (ou utilidade) e mais adequação; c ) a legitimação ao recurso.

O primeiro, na classificação tradicional, é considerado pressuposto objetivo dos recursos; e os dois últimos, pressupostos subjetivos. [38]

Do paralelismo assim estabelecido podemos vislumbrar que o pressuposto do cabimento recursal corresponde à possibilidade jurídica do pedido, o interesse recursal, relacionado em grande medida com a sucumbência, corresponde ao interesse processual.

A legitimidade, evidentemente, é requisito comum a ambos, ou seja, para o exercício do direito de recorrer é necessária a legitimidade de parte, sem a qual não pode se falar em recurso.

ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTÔNIO MAGALÃES GOMES FILHO e ANTÔNIO SCARANCE FERNANDES, continuando a discorrer sobre a correspondência entre o direito de ação e o direito de impugnação das decisões, nos ensinam:

Assim, é a seguinte a classificação tradicional dos requisitos de admissibilidade dos recursos penais, divididos em pressupostos objetivos e pressupostos subjetivos:

A- pressupostos objetivos dos recursos: a) cabimento; b) adequação; c) tempestividade; d) regularidade procedimental; e) inexistência de fato impeditivo ou extintivo.

B- Pressupostos subjetivos: a) interesse em recorrer (falando alguns em sucumbência); b) legitimação aos recursos.

Novamente surge, como pressuposto subjetivo, a legitimação recursal para que seja viável a pretensão recursal. Neste momento, ilustrativa a lição de Grinover, Gomes Filho e Scarance doutrinam, discorrendo sobre as condições de admissibilidade dos recursos.

Assim como a legitimidade para agir é condição para o regular exercício do direito de ação, a legitimação ao recurso também é condição de admissibilidade deste.

Por razões óbvias de conveniência, a lei limita o círculo dos possíveis recorrentes. Surge assim o problema da legitimidade para recorrer – analogamente ao que ocorre no tocante à propositura da ação – impondo-se verificar se quem interpôs o recurso está habilitado a fazê-lo.

O art. 577 do CPP traça os limites da legitimação para recorrer, prescrevendo que o recurso pode ser interposto pelo Ministério Público, ou pelo querelante, ou pelo réu, seu procurador ou seu defensor. [39]

Analisando os pressupostos recursais subjetivos, VICENTE GRECO FILHO assevera que "podem recorrer, respeitada a sucumbência, o querelante, o querelado, o acusado e seu defensor, o assistente, o ofendido ou sucessores do ofendido, e o Ministério Público."(GRECO FILHO, 1993, p. 314).

Como dito e reiteradamente afirmado pela doutrina e jurisprudência, a legitimidade recursal vincula-se intimamente à legitimidade para a ação (de regra somente partes podem recorrer), ao passo que o interesse recursal vincula-se à sucumbência.

Sobre a sucumbência, eis o que ensina o eminente VICENTE GRECO FILHO:

A sucumbência tem sido definida ora como o prejuízo causado à parte pela decisão, ora como a relação desfavorável entre o que foi pedido e o que foi concedido. Ambos os conceitos esclarecem, parcialmente, a situação. De fato, se a parte tiver prejuízo decorrente da decisão, haverá sucumbência, o mesmo acontecendo se pediu algo que não foi concedido ou se foi concedido menos. [40]

Continua o douto, manifestando entendimento no sentido da direta vinculação da sucumbência, ainda, com o interesse recursal:

A sucumbência, portanto, deve ser conceituada como a situação que decorre do não-atendimento de uma expectativa juridicamente possível, o que caracteriza o interesse de recorrer, de pedir a reforma de uma decisão. [41]

Com efeito, parte que não sofreu sucumbência, que não experimentou gravame trazido pela decisão impugnada, carece de interesse recursal, que se consubstanciam, como visto, na necessidade-utilidade do recurso como meio hábil a impedir a consolidação da situação tida pela parte como prejudicial a seus interesses, assim como procurar provocar sua revisão e modificação.

Do exposto resta claro, em primeiro lugar, devido à simetria entre as condições da ação/pressupostos processuais e as condições e pressupostos recursais, pensamos restar ainda mais aclarada a íntima relação existente entre o direito de ação penal e o direito de recorrer.

Ademais, os conceitos trabalhados, notadamente os de legitimidade recursal e interesse em recorrer, consubstanciado o último na necessidade-utilidade da impugnação, serão úteis no exame do instituto do reexame necessário que se desenvolverá a seguir, notadamente no esclarecimento de sua real natureza jurídica.

3.1.3.2 – Do reexame necessário ou "Recurso de Ofício".

Denomina a doutrina Reexame Necessário, Remessa Necessária ou Recurso de Ofício, ou ainda Recurso Ex Officio, a providência de remessa dos Autos, pelo magistrado, ao órgão jurisdicional de segundo grau, para reexame da decisão proferida, nos casos taxativamente previstos em lei, independentemente da existência de recurso voluntário interposto pelas partes.

Tal previsão legal levou a doutrina a criar uma classificação que distingue entre recursos voluntários e necessários, conforme nos informa o magistério do insigne FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO:

Os recursos ainda se distinguem em voluntários e necessários. Os primeiros são aqueles cujo ônus de interpô-los cabe, exclusivamente, ao que sucumbiu. É apenas um ônus: recorre-se se quiser. Já os necessários, também denominados ex officio, são aqueles que, necessariamente, obrigatoriamente, devem ser interpostos pelo próprio Juiz. [42]

JÚLIO FABRINI MIRABETE, referindo-se ao princípio da voluntariedade dos recursos, ensina que:

Como o recurso objetiva a reforma de uma decisão, deve ficar na dependência da parte sucumbente, ou seja, daquela que foi lesada por ela. Em princípio somente a essa parte deve ser conferida ampla liberdade para interpor o recurso, demonstrando, assim, sua concordância ou não com o pronunciamento jurisdicional. Por isso se fala em recurso voluntário. Evidentemente, pode ser ele interposto também pelo Ministério Público, quer como representante da parte (Estado), quer como custos legis, como já visto (item 19.1.6). É seu direito e dever a interposição quando, como titular da ação penal ou fiscal da lei, discordar da decisão. É um ônus das demais partes, que recorrem se quiserem. [43]

Vê-se, por conseguinte, a natureza de ônus processual do recurso, bem como a íntima dependência da qualidade de parte ou interveniente legalmente autorizado, além do interesse na reforma da decisão, para o manejo válido do instituto processual.

Prossegue o citado autor, discorrendo acerca do reexame necessário:

Mas a esse princípio, da voluntariedade do recurso, a lei abre exceções, prevendo o denominado recurso de ofício (recurso obrigatório, recurso necessário). Apresenta-se o recurso ex officio como uma providência imposta por lei no sentido do reexame de sentenças e decisões pelos órgãos judiciários superiores, quando versem determinadas matérias e segundo a decisão adotada. Por isso o recurso de ofício é chamado recurso anômalo, sendo considerado por muitos como uma extravagância judiciária e arcaica, hoje totalmente desnecessária. São recursos que obrigatoriamente devem ser interpostos pelo juiz, na decisão, não transitando em julgado a sentença em que tiver sido omitido (Súmula 423, do STF)(grifos no original). [44]

De se destacar, em primeiro lugar, que de recurso, na acepção técnica do termo, não se trata, razão pela qual preferimos denominá-lo reexame necessário no presente trabalho.

Com efeito, conforme abordado nos itens precedentes, recurso é um remédio processual facultado à parte para tentar modificar uma decisão que entenda desfavorável a si.

Assim, apenas as partes preenchem a condição de legitimidade para interpor recursos, na medida em que tenham sofrido gravame, o que se traduz no interesse recursal.

Apenas excepcionalmente, como vimos, terceiros podem ser legitimados a recorrer de decisões judiciais, como o Ministério Público quando oficie nos autos em qualidade de custos legis, por exemplo.

No caso do instituto do reexame necessário, que considera-se interposto por lei, enviado pelo magistrado, independentemente de provocação, para a superior instância, vê-se não existir legitimidade, nos termos conceituais adotados pela doutrina.

Tampouco vislumbra-se interesse do magistrado, na condição de prolator da decisão, em sua reforma, razão pela qual, tecnicamente, de recurso não se trata. Por estas e outras razões, pondera FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO:

Qual seria a natureza desse recurso? Sabe-se que o recurso é o resultado de um inconformismo. A parte vencida, não se conformando com a decisão que lhe foi desfavorável, pede o seu reexame. Sendo assim, na justa observação de Alcides de Mendonça Lima, o recurso necessário não pode ser considerado recurso, pois o Juiz, que tem o dever de recorrer de ofício, não haveria de ficar inconformado com a sua própria decisão... Ademais, quando alguém recorre, evidentemente, há de desejar seja o recurso provido. No recurso ex officio dá-se o contrário: o Juiz deseja que o Tribunal não lhe dê provimento. Por essas razões, diz-se que o recurso ex officio não é propriamente um recurso, e sim uma providência, uma medida prevista em lei, em situações especiais, porque interesses superiores reclamam mais cautela na solução dos litígios. [45]

Como visto, trata-se portanto de uma simples medida imposta pela lei ao magistrado, medida esta à qual encontra-se sujeita a eficácia da decisão, também denominada duplo grau de jurisdição necessário ou obrigatório, sob pena de nulidade (artigo 564, inciso III, letra "n", do Código de Processo Penal).

Após esta breve incursão no campo da natureza jurídica do reexame necessário, vejamos uma a uma as hipóteses de cabimento deste, de conformidade com a legislação infraconstitucional pátria.

Nesta seara, é ainda TOURINHO FILHO que nos ensina:

No processo penal, as hipóteses de recurso necessário são:

a) das decisões que concedem habeas corpus (art. 574, I);

b) das decisões proferidas nos termos do art. 411 (art. 574, II);

c) das decisões que concedem a reabilitação (art. 746);

d) nas hipóteses previstas no art 7º da Lei n. 1521, de 26-12-1951. [46]

O ilustre JULIO FABBRINI MIRABETE, após referir-se às hipóteses de cabimento elencadas no artigo 574 do Código de Processo Penal Brasileiro, assevera:

Há, porém, outras hipóteses de cabimento do recurso de ofício além dos mencionados no artigo 574. São também hipóteses de interposição obrigatória de recurso as sentenças absolutórias referentes aos crimes contra a economia popular ou a saúde pública, bem como os despachos que determinarem o arquivamento dos autos do inquérito policial referentes a esses crimes (art. 7º da Lei nº 1.521, de 26-12-51). Incluem-se nessa regra os crimes referentes à incorporação imobiliária previstos na Lei nº 4.591, de 1964. Todavia, referindo-se apenas a "crimes", a lei não inclui na obrigatoriedade o recurso no processo das contravenções contra a economia popular. No que se relaciona com os crimes contra a saúde pública, é jurisprudência pacífica que não cabe o recurso de ofício nas decisões a respeito do comércio clandestino de entorpecentes, embora sejam eles dessa espécie, já que o processo penal a eles relativos está disciplinado integralmente em lei especial (Lei nº 6.368, de 21-10-76). Também são hipóteses de cabimento do recurso de ofício o indeferimento in limine da revisão pelo relator que dará recurso para as Câmaras Reunidas ou para o Tribunal (art. 625, § 3º, do CPP) e a decisão que conceder a reabilitação (art. 746 do CPP). Quanto a esta última hipótese, não têm razão os que o consideram abolido pela Lei nº 7210/84, já que ela não revogou o artigo 746 do Código de Processo Penal, apesar de se encontrar ele no livro IV deste Estatuto, que trata da execução penal, por serem compatíveis os dispositivos referentes à reabilitação e a Lei de Execução Penal. [47]

Com base nas lições dos eminentes doutrinadores supracitados, verifica-se serem as seguintes a hipóteses de cabimento para o reexame necessário, conforme a legislação infraconstitucional brasileira:

a)sentença concessiva de habeas corpus; [48]

b)absolvição sumária nos crimes de competência do Tribunal do Júri; [49]

c)decisão concessiva da reabilitação criminal; [50]

c)decisão de absolvição ou que determine o arquivamento dos autos de inquérito policial nos casos de crime contra a economia popular ou contra a saúde pública; [51]

d)decisão de absolvição ou que determine o arquivamento dos autos de inquérito policial nos casos de crimes referentes à incorporação imobiliária previstos na Lei nº 4.591, de 1964;

e)decisão de indeferimento liminar de revisão criminal, pelo relator; [52]

Estas são as previsões contidas na legislação infraconstitucional pátria, em matéria criminal, de reexame necessário. Cabe uma breve análise de cada uma delas.

Primeiramente temos a hipótese de concessão de habeas corpus, ação constitucional de rito mandamental que visa resguardar o direito de locomoção daquele que sofra ou se encontre ameaçado de sofrer violência ou coação quanto ao exercício de tal direito, por ilegalidade ou abuso de poder, que encontra guarida no artigo 5º, LXVIII, da Constituição Federal, e no artigo 647 e seguintes do Código de Processo Penal.

Uma vez impetrado o writ, pelo paciente ou por outrem em lugar daquele, independentemente de capacidade postulatória, deve o órgão jurisdicional competente analisar com brevidade a existência ou não de ilegalidade no constrangimento e, em concluindo por esta, expedir a competente ordem para fazer cessar a ilegalidade (alvará de soltura ou salvo conduto, conforme se trate de habeas corpus liberatório ou preventivo, respectivamente).

Segundo o comando legal contido no artigo 574, I, do CPP, uma vez concedida a ordem, deverá o magistrado remeter os autos à superior instância para reapreciação da decisão.

A segunda hipótese de cabimento da remessa necessária é no caso de ser proferida a denominada absolvição sumária, nos crimes de competência do Tribunal do Júri, ou seja, nos casos de crimes dolosos contra a vida, tentados e consumados [53].

Da exegese do artigo 411 do Código de Processo Penal pátrio, interpretada em conformidade com a nova redação dada à Parte Geral do Código Penal brasileiro pela lei nº 7.209, de 11-7-1984, depreende-se ser cabível a remessa nos casos em que o Juiz, ao final da fase denominada sumário de culpa no procedimento preconizado para os crimes de competência do Tribunal do Júri, decreta sua absolvição desde logo, por entender ter restado comprovada a existência de causa excludente de ilicitude ou de culpabilidade, a saber:

a)erro sobre elementos do tipo; [54]

b)erro sobre a ilicitude do fato; [55]

c)coação irresistível e obediência hierárquica; [56]

d)legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito; [57]

e)inimputabilidade penal; [58]

f)inimputabilidade por embriaguez fortuita e completa. [59]

Como se vê, nos casos referidos, pode e deve o magistrado subtrair o réu ao julgamento pelo Tribunal do Júri, absolvendo-o desde logo, até porque, conforme nos recorda FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO

Em qualquer desses casos, para que o Juiz possa subtrair do Tribunal popular o se julgamento, é preciso que as provas sejam estremes de quaisquer dúvidas. A excludente deve estar cumprida e incontroversamente demonstrada. [60]

Assim, para que o magistrado absolva sumariamente o réu, deverá ter restado demonstrada cabalmente, durante o sumário de culpa, a existência da excludente de ilicitude ou culpabilidade a militar em favor do réu.

De outro modo, havendo dúvida, o magistrado deveria submeter a decisão ao plenário do Júri, sentido no qual é pacífica a doutrina e uníssona a jurisprudência, afirmando preponderar, nesta fase, o princípio contido no brocardo in dubio pro societate.

A terceira hipótese de remessa necessária no processo penal, conforme dito, é a de prolação de sentença concessiva da reabilitação. Conforme nos ensina o ilustre CEZAR ROBERTO BITTENCOURT:

Reabilitação é "a declaração judicial de que estão cumpridas ou extintas as penas impostas ao sentenciado". Essa definição não corresponde aos efeitos que a reabilitação produz, destoando dos seus objetivos. Na verdade, apenas garante o sigilo da condenação, e suspende condicionalmente os efeitos secundários específicos da condenação. [61]

Referido autor salienta ainda a relativização da importância do instituto da reabilitação, cujo principal efeito seria o sigilo acerca da condenação havida, diante da disposição trazida pelo art. 202 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, Lei de Execução Penal, que assegura tal sigilo automaticamente. [62]

No entanto, através da reabilitação, pode o condenado, depois de extintas as penas a ele impostas, seja pelo cumprimento, seja por outra causa legalmente prevista, obter a cessação de efeitos extrapenais da condenação, contidos no artigo 92 do Código Penal brasileiro [63], a saber: a) perda de cargo, função pública ou mandato eletivo; b) incapacidade para o exercício do múnus parental [64], tutela, curatela e ainda c) inabilitação para dirigir veículo automotor, ressalvando-se a vedação legal à reintegração à situação anterior nas hipóteses previstas nos incisos I e II do artigo 92 do Código Penal. [65]

Com efeito, FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, com a clareza e propriedade que lhe são peculiares, nos ensina que a reabilitação, atualmente, é o "direito subjetivo [do condenado] para que se lhe assegure o sigilo dos registros sobre o seu processo e condenação, ou, se for o caso, para que cessem os efeitos extrapenais da condenação previstos no art. 92 do CP." (TOURINHO FILHO, 2001, p. 742).

Assim sendo, naqueles casos em que se tenha verificado algum dos efeitos extrapenais da condenação, o condenado tem evidente interesse na reabilitação, não obstante seja impossível a reintegração ao status quo ante.

A quarta hipótese em que existe previsão legal para o reexame necessário é aquela que respeita à sentença absolutória em processos que versem sobre os crimes contra a economia popular ou a saúde pública e das decisões pelo arquivamento de inquéritos versando sobre os mesmos crimes, conforme preconizado pela Lei nº 1.521, de 26-12-51 [66], valendo o mesmo para os crimes referentes às incorporações imobiliárias, por força do disposto no artigo 65, parágrafo segundo, da Lei nº 4.591 de 16 de dezembro de 1964. [67]

Enumerar-se-á, inicialmente, as hipóteses de crimes contra a economia popular elencadas na Lei nº 1.521/51 [68], em seus artigos 2º, 3º e 4º:

Art. 2º. São crimes desta natureza:

I- recusar individualmente em estabelecimento comercial a prestação de serviços essenciais à subsistência; sonegar mercadoria ou recusar vendê-la a quem esteja em condições de comprar a pronto pagamento;

II - favorecer ou preferir comprador ou freguês em detrimento de outro, ressalvados os sistemas de entrega ao consumo por intermédio de distribuidores ou revendedores;

III - expor à venda ou vender mercadoria ou produto alimentício, cujo fabrico haja desatendido a determinações oficiais, quanto ao peso e composição;

IV - negar ou deixar o fornecedor de serviços essenciais de entregar ao freguês a nota relativa à prestação de serviço, desde que a importância exceda de quinze cruzeiros, e com a indicação do preço, do nome e endereço do estabelecimento, do nome da firma ou responsável, da data e local da transação e do nome e residência do freguês;

V - misturar gêneros e mercadorias de espécies diferentes, expô-los à venda ou vendê-los, como puros; misturar gêneros e mercadorias de qualidades desiguais para expô-los à venda ou vendê-los por preço marcado para os de mais alto custo;

VI - transgredir tabelas oficiais de gêneros e mercadorias, ou de serviços essenciais, bem como expor à venda ou oferecer ao público ou vender tais gêneros, mercadorias ou serviços, por preço superior ao tabelado, assim como não manter fixadas, em lugar visível e de fácil leitura, as tabelas de preços aprovadas pelos órgãos competentes;

VII - negar ou deixar o vendedor de fornecer nota ou caderno de venda de gêneros de primeira necessidade, seja à vista ou a prazo, e cuja importância exceda de dez cruzeiros, ou de especificar na nota ou caderno - que serão isentos de selo - o preço da mercadoria vendida, o nome e o endereço do estabelecimento, a firma ou o responsável, a data e local da transação e o nome e residência do freguês;

VIII - celebrar ajuste para impor determinado preço de revenda ou exigir do comprador que não compre de outro vendedor;

IX - obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos ("bola de neve´´´´, "cadeias´´´´, "pichardismo´´´´ e quaisquer outros equivalentes);

X - violar contrato de venda a prestações, fraudando sorteios ou deixando de entregar a coisa vendida, sem devolução das prestações pagas, ou descontar destas, nas vendas com reserva de domínio, quando o contrato for rescindido por culpa do comprador, quantia maior do que a correspondente à depreciação do objeto;

XI - fraudar pesos ou medidas padronizados em lei ou regulamentos; possuí-los ou detê-los, para efeitos de comércio, sabendo estarem fraudados.

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, de dois mil a cinqüenta mil cruzeiros.

Parágrafo único. Na configuração dos crimes previstos nesta Lei, bem como na de qualquer outro de defesa da economia popular, sua guarda e seu emprego considerar-se-ão como de primeira necessidade ou necessários ao consumo do povo, os gêneros, artigos, mercadorias e qualquer outra espécie de coisas ou bens indispensáveis à subsistência do indivíduo em condições higiênicas e ao exercício normal de suas atividades. Estão compreendidos nesta definição os artigos destinados à alimentação, ao vestuário e à iluminação, os terapêuticos ou sanitários, o combustível, a habitação e os materiais de construção.

Configuram, ainda, crimes contra a economia popular as condutas arroladas pela Lei nº 1.521/51, em seu art. 3º:

Art. 3º. São também crimes desta natureza:

I - destruir ou inutilizar, intencionalmente e sem autorização legal, com o fim de determinar alta de preços, em proveito próprio ou de terceiro, matérias-primas ou produtos necessários ao consumo do povo;

II - abandonar ou fazer abandonar lavoura ou plantações, suspender ou fazer suspender a atividade de fábricas, usinas ou quaisquer estabelecimentos de produção, ou meios de transporte, mediante indenização paga pela desistência da competição;

III - promover ou participar de consórcio, convênio, ajuste, aliança ou fusão de capitais, com o fim de impedir ou dificultar, para o efeito de aumento arbitrário de lucros, a concorrência em matéria de produção, transportes ou comércio;

IV - reter ou açambarcar matérias-primas, meios de produção ou produtos necessários ao consumo do povo, com o fim de dominar o mercado em qualquer ponto do País e provocar a alta dos preços;

V - vender mercadorias abaixo do preço de custo com o fim de impedir a concorrência;

VI - provocar a alta ou baixa de preços de mercadorias, títulos públicos, valores ou salários por meio de notícias falsas, operações fictícias ou qualquer outro artifício;

VII - dar indicações ou fazer afirmações falsas em prospectos ou anúncios, para fim de substituição, compra ou venda de títulos, ações ou quotas;

VIII - exercer funções de direção, administração ou gerência de mais de uma empresa ou sociedade do mesmo ramo de indústria ou comércio com o fim de impedir ou dificultar a concorrência;

IX - gerir fraudulenta ou temerariamente bancos ou estabelecimentos bancários, ou de capitalização; sociedades de seguros, pecúlios ou pensões vitalícias; sociedades para empréstimos ou financiamento de construções e de vendas de imóveis a prestações, com ou sem sorteio ou preferência por meio de pontos ou quotas; caixas econômicas; caixas Raiffeisen; caixas mútuas, de beneficência, socorros ou empréstimos; caixas de pecúlios, pensão e aposentadorias; caixas construtoras; cooperativas; sociedades de economia coletiva, levando-as à falência ou à insolvência, ou não cumprindo qualquer das cláusulas contratuais com prejuízo dos interessados;

X - fraudar de qualquer modo escriturações, lançamentos, registros, relatórios, pareceres e outras informações devidas a sócios de sociedades civis ou comerciais, em que o capital seja fracionado em ações ou quotas de valor normativo igual ou inferior a um mil cruzeiros com o fim de sonegar lucros, dividendos, percentagens, rateios ou bonificações, ou de desfalcar ou desviar fundos de reserva ou reservas técnicas.

Pena - detenção, de 2 (dois) anos a 10 (dez) anos, e multa, de vinte mil a cem mil cruzeiros.

A lei dos crimes contra a economia encerra o largo rol destes em seu art. 4º, onde prescreve as seguintes condutas típicas:

Art. 4º. Constitui crime da mesma natureza a usura pecuniária ou real, assim se considerando:

a) cobrar juros, comissões ou descontos percentuais, sobre dívidas em dinheiro, superiores à taxa permitida por lei; cobrar ágio superior à taxa oficial de câmbio, sobre quantia permutada por moeda estrangeira; ou, ainda, emprestar sob penhor que seja privativo de instituição oficial de crédito;

b) obter, ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida.

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, de cinco mil a vinte mil cruzeiros.

§ 1º. Nas mesmas penas incorrerão os procuradores, mandatários ou mediadores que intervierem na operação usurária, bem como os cessionários de crédito usurário que, cientes de sua natureza ilícita, o fizerem valer em sucessiva transmissão ou execução judicial.

Como visto, o artigo 7º da Lei nº 1.521/51 determina a remessa necessária dos autos à superior instância toda vez que, nas hipóteses referidas pela lei, houver decisão absolutória ou que determine o arquivamento de inquérito policial.

A Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, em seu artigo 65, qualifica determinadas condutas relativas à incorporação imobiliária como crimes contra a economia popular, determinando aplicarem-se às mesmas o art. 7º da Lei nº 1.521/51:

Art. 65. É crime contra a economia popular promover incorporação, fazendo, em proposta, contratos, prospectos ou comunicação ao público ou aos interessados, afirmação falsa sobre a constituição do condomínio, alienação das frações ideais do terreno ou sobre a construção das edificações.

Pena - reclusão de um a quatro anos e multa de cinco a cinqüenta vezes o maior salário mínimo legal vigente no país.

§ 1º. Incorrem na mesma pena:

I - o incorporador, o corretor e o construtor, individuais, bem como os diretores ou gerentes de empresa coletiva, incorporadora, corretora ou construtora que, em proposta, contrato, publicidade, prospecto, relatório, parecer, balanço ou comunicação ao público ou aos condôminos, candidatos ou subscritores de unidades, fizerem afirmação falsa sobre a constituição das frações ideais ou sobre a construção das edificações;

II - o incorporador, o corretor e o construtor individuais, bem como os diretores ou gerentes de empresa coletiva, incorporadora, corretora ou construtora que usar, ainda que a título de empréstimo, em proveito próprio ou de terceiro, bens ou haveres destinados à incorporação contratada por administração, sem prévia autorização dos interessados.

§ 2º. O julgamento destes crimes será de competência de juízo singular, aplicando-se os artigos 5º, 6º e 7º da Lei nº 1.521, de 26 de dezembro de 1951.

§ 3º. Em qualquer fase do procedimento criminal objeto deste artigo, a prisão do indiciado dependerá sempre de mandado do juízo referido no § 2º. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 4.864/65.)

De se reiterar que em todos estes casos, impõe a lei a remessa necessária somente em se tratando de crimes contra a economia popular ou saúde pública, haja vista a referência expressa à palavra "crime" feita pelo artigo 7º da Lei nº 1.521/51, não existindo embasamento legal para hipóteses relativas a contravenções da mesma natureza, conforme observa JULIO FABRINI MIRABETE. [69]

A última hipótese de reexame necessário, em matéria penal, referida pela doutrina, é aquela que trata do indeferimento liminar do pedido de revisão criminal pelo relator, quando, conforme disposição constante do artigo 625, parágrafo terceiro, do Código de Processo Penal, deverá remeter de ofício os autos à apreciação do órgão competente do Tribunal. [70]

Esta breve análise das hipóteses de cabimento da remessa necessária em matéria penal faz-se necessária a fim de que se possa contemplar a feição atribuída ao instituto pela atual legislação infraconstitucional brasileira.

É esclarecedor, com vistas à posterior análise de sua constitucionalidade, assim como sua compatibilidade com o Jus Gentium, perceber que, de todas as hipóteses referidas, às quais a lei subordina a eficácia ao reexame pela superior instância, quatro são favoráveis ao réu (decisão concessiva de habeas corpus, absolvição sumária, decisão concessiva da reabilitação criminal e hipóteses de arquivamento de inquérito ou absolvição em crimes contra a economia popular, aí compreendidos os crimes relativos a incorporações imobiliárias, e contra a saúde pública), enquanto apenas uma hipótese submetida pela lei ao reexame necessário é desfavorável a este (a saber, aquela do indeferimento liminar da revisão criminal pelo relator).

Vemos, portanto, a feição nitidamente repressiva, marcantemente contrária aos interesses do réu, que se depreende primo ictu occuli de tais hipóteses de cabimento.

Não deter-se-á sobre os demais aspectos do instituto em análise, desimportantes, em princípio, para a análise dos aspectos aos quais propõe-se o presente trabalho de pesquisa, bastando consignar, quanto ao seu processamento, o quanto ensina o eminente JOSÉ FREDERICO MARQUES:

Os recursos ex officio seguem procedimento idêntico ao do recurso voluntário, que no caso seria cabível. Desse modo, todas as espécies acima enumeradas acompanham o rito procedimental do recurso em sentido estrito. Somente num caso deve ser adotado o rito da apelação: é naquele previsto no artigo 7º da Lei nº 1.521, de 1951 (retro, nº 1.068). No processo penal, os efeitos do recurso de ofício são, também, iguais aos efeitos do recurso voluntários que possa ser interposto. [71]

Como visto, em termos de processamento segue o reexame necessário o procedimento do recurso em sentido estrito, previsto no art. 581 do Código de Processo Penal brasileiro e regulado nos artigos seguintes daquele diploma legal, exceto nas hipóteses absolvição do réu ou arquivamento de autos de inquérito policial em caso de crime contra a economia popular e contra a saúde pública, quando deverá ser observado o procedimento previsto para o recurso de apelação (art. 593 e seguintes do CPP).

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Sobre o autor
Luis Fernando Sgarbossa

Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor do Mestrado em Direito da UFMS. Professor da Graduação em Direito da UFMS/CPTL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SGARBOSSA, Luis Fernando. Do reexame necessário em matéria penal no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1058, 25 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8410. Acesso em: 23 abr. 2024.

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