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Do reexame necessário em matéria penal no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo

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25/05/2006 às 00:00
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4.COTEJO DO INSTITUTO EM FACE DA ORDEM CONSTITUCIONAL INSTAURADA PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988.

Uma vez traçadas as premissas para análise do tema proposto pelo presente trabalho, através do histórico do instituto que constitui seu objeto, bem como dos conceitos doutrinários mais importantes à sua adequada compreensão, passar-se-á à análise da compatibilidade do mesmo com os princípios e normas constitucionais vigentes desde a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 05-10-1988.

Para tanto, subdividir-se-á tal análise em duas partes: a primeira cuidará especificamente das normas constitucionais e dos posicionamentos esposados pela doutrina acerca do tema, ao passo que a segunda abordará as posições jurisprudenciais a ele concernentes, tomando a liberdade de fazer apreciações críticas acerca de tais posicionamentos, com vistas à conclusão do trabalho, após o item subseqüente, onde tratar-se-á da compatibilidade do instituto com os Princípios e normas do Direito Internacional Público.

Recorrer-se-á, ainda, ao estudo do Direito Constitucional comparado, incidentalmente, como expediente válido para demonstrar a sintonia dos dispositivos constitucionais pátrios com algumas das constituições da Europa ocidental, notadamente a Constituição da República Francesa de 1958 e a Constituição da República Italiana, de 1947.

4.1 – Doutrina.

A despeito de ter havido divergência doutrinária acerca da compatibilidade ou incompatibilidade do reexame necessário com os Princípios e normas preconizados pela Constituição Federal de 1988, ou seja, sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade, cujo reconhecimento desembocaria, necessariamente, no reconhecimento da não-recepção do instituto pela nova ordem constitucional, é forçoso admitir que a doutrina amplamente majoritária já se posicionou pela inexistência de tal incompatibilidade, como demonstrar-se-á no desenvolvimento do presente item.

Assim, para a imensa maioria dos doutrinadores pátrios inexiste qualquer vício de inconstitucionalidade a inquinar o reexame necessário em matéria penal, de modo que teria o mesmo sido recepcionado pela Constituição de 1988, em consonância com o entendimento da jurisprudência dominante, inclusive do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, acerca do tema, conforme ver-se-á no tópico apropriado.

Não obstante, entende-se que a questão deve ser vista cum granus salis, colocando-se a discussão em termos, até certo ponto, diversos daqueles que até hoje tem servido de base a um e outro posicionamentos.

Com vistas a desenvolver tal estudo, passa-se, num primeiro momento, a verificar os fundamentos da doutrina em ambas as posições, para, ao longo de tal estudo, fazer-se a crítica acerca dos mesmos.

Antes, porém, far-se-á uma breve apreciação acerca de alguns Princípios e normas constitucionais importantes ao adequado desenvolvimento do tema, notadamente naquilo que concerne aos direitos e garantias fundamentais e aos Princípios informadores da República, para somente então se passar à análise das posições doutrinárias específicas sobre o tema.

4.1.1 – Do instituto do reexame necessário em face dos direitos e garantias fundamentais e dos princípios informadores da República Federativa do Brasil.

Dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 4º:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

I – independência nacional;

II – prevalência dos direitos humanos;

[...]

(destaques ausentes no original).

O primeiro aspecto digno de destaque na disposição constitucional transcrita é a determinação no sentido de que a República deve reger-se, no âmbito de suas relações internacionais, pelo Princípio da Prevalência dos Direitos Humanos, o que é válido para demonstrar o relevo conferido pelo constituinte originário às normas internacionais protetivas dos direitos humanos, através deste e de outros dispositivos, especialmente os parágrafos 1º e 2º do art. 5º, conforme ver-se-á oportunamente.

Além disto é importante ressaltar, ainda, que, a despeito de referir-se o artigo 4º às relações internacionais, evidentemente os princípios enumerados pelo artigo 4º da Carta Magna, dada a relevância a eles conferidos pela mesma, podem e devem servir como verdadeiros princípios informadores de todo o texto constitucional e, ainda, como referenciais para a interpretação constitucional.

A posição de relevo conferida pelo texto constitucional aos direitos humanos será de grande valia para a análise satisfatória do tema, conforme demonstrar-se-á.

A Carta de 1988 inaugura seu Capítulo I, intitulado "Dos Direitos e Garantias Individuais e Coletivos", com o artigo 5º, cláusula pétrea da Constituição por excelência, que traz um amplo, mas não exaustivo, rol de direitos e garantias fundamentais.

O teor do caput do artigo 5º é o seguinte:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:..

. [72]

Princípio simétrico encontra-se inscrito no artigo 1º da Constituição da República Francesa, de 1958, cujo teor é o seguinte:

Article 1. La France est une république indivisible, laïque, démocratique et sociale. Elle assure l’égalité devant la loi de tous les citoyens sans distinction d’origine, de race ou de religion. Elle respecte toutes les croyances.(sem destaques no original) [73].

O retro-transcrito artigo 5º preconiza, em primeiro lugar, o Princípio constitucional da Isonomia ou Igualdade Legal, vedando qualquer disposição discriminatória injustificada, ou seja, desprovida de razoabilidade e proporcionalidade. [74]

Com efeito, o magistério de ALEXANDRE DE MORAES é neste sentido:

Dessa forma, o que é vedado são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois o tratamento desigual dos casos desiguais, à medida que se desigualam, é exigência do próprio conceito de Justiça, pois o que se protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito... [75]

Assim, toda disposição legal discriminatória que não se paute pelo critério da proporcionalidade ou razoabilidade, ou seja, que não vise justamente corrigir uma distorção indesejada pela ordem jurídica, em outros termos, que não vise à tutela de um bem jurídico protegido pelo ordenamento, encontrar-se-á fatalmente inquinada do vício da inconstitucionalidade.

Sobre a amplitude do preceito constitucional mencionado, é ainda ALEXANDRE DE MORAES que ensina:

O princípio da igualdade consagrado pela Constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, diante do legislador ou do próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que eles possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se encontrem em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e os atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social. [76]

Assim, vê-se que a norma constitucional aludida implica em uma dúplice proibição aos agentes públicos, restando impedido o administrador de adotar critérios discriminatórios irrazoáveis, assim como também o legislador, inquinando-se de inconstitucionalidade eventuais diplomas legislativos que violem referido princípio.

Tal Princípio, o da Isonomia, encontra-se intimamente relacionado com o desenvolvimento do tema proposto, como se verá oportunamente.

Consagra a Carta Constitucional de 1988, no rol do artigo 5º, em seu inciso LIII, o festejado Princípio do Juiz Natural:

LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;

PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN e JORGE ASSAF MALULY

, sobre o princípio constitucional do Juiz Natural, ensinam:

A Constituição Federal consagra o princípio do juiz natural no art 5º, inciso LIII, quando determina que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente, "isto é, pelo seu juiz natural, que, em nosso sistema judiciário, outro não é que o órgão previsto implícita ou explicitamente pelo Estatuto Constitucional, como de competência genérica para a espécie" (cf. José Frederico Marques). Todo cidadão tem o direito de ser julgado pelo juiz natural, que é aquele que está no exercício de sua competência constitucional e legalmente estabelecida.

Assim, por exemplo, o juiz natural dos crimes dolosos contra a vida é o Júri (art. 5º, inciso XXXVIII, CF); o juiz natural para o julgamento de promotores de Justiça, juízes estaduais, é o Tribunal de Justiça do respectivo Estado, por força da própria Constituição (art. 96). [77]

Note-se que, de uma perspectiva constitucionalista do Direito, que se impõe na atualidade, juiz natural é o Constitucionalmente predeterminado, o que difere substancialmente do conceito tradicional, que ensina ser o juiz natural pura e simplesmente aquele estabelecido pela lei.

Evidentemente a Constituição Federal não elenca todas as regras de competência, tampouco deveria fazê-lo, mas é de relevo ímpar a acepção de que legislação infraconstitucional que estabeleça competência ao arrepio das disposições constitucionais, direta ou indiretamente, é flagrantemente inválida. [78]

Elenca o artigo 5º da Carta Magna o Princípio do Devido Processo Legal:

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

Previsão análoga encontra-se no artigo 111, caput, da Constituição da República Italiana, in verbis:

Articolo 111. La giurisdizione si attua mediante il giusto processo regolato dalla legge. Ogni processo si svolge nel contraditorio tra le parti, in condizioni di parità, davanti a giudice terzo e imparciale. La legge ne assicura ragionevole durata. [79][80]

A inviolabilidade da liberdade pessoal, por sua vez, é consagrada pela Constituição italiana, em sua Parte Primeira, que trata dos direitos e deveres dos cidadãos, no título I, artigo 13, cujo teor transcreve-se:

Articolo 13. La libertà personale è inviolabile. [81]

A Constituição da República Francesa, em seu Título VIII, que trata da autoridade judiciária, contém disposição semelhante:

Article 66. Nul ne peut être arbitrairement détenu. L’autorité judiciaire, gardienne de la liberté individuelle, assure le respect de ce principe dans les conditions prévues par la loi. [82]

Assim, como visto, a Constituição Cidadã, a exemplo do que fazem as constituições francesa e italiana, asseguram o devido processo legal como garantia primordial aos direitos fundamentais da liberdade e da propriedade, dentre outros tutelados pelo ordenamento.

Modernamente, impõe-se ler a expressão devido processo legal como significando devido processo legal constitucional, tendo em vista que o processo legal não pode ser regular e legítimo se se afastar de seus postulados informativos encartados na Constituição, dada a primazia desta.

O inciso LV do artigo 5º da Carta Magna traz as garantias do contraditório e da ampla defesa, ínsitas ao devido processo legal. In verbis:

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Norma similar encontra-se insculpida no artigo 111, caput, da Constituição italiana de 1947, cujo teor é o seguinte:

Articolo 111. La giurisdizione si attua mediante il giusto processo regolato dalla legge. Ogni processo si svolge nel contradittorio tra le parti, in condizioni di parità, davanti a giudice terzo e imparciale. La legge ne assicura ragionevole durata.

[...]

Il processo penale è regolato dall principio dell contraddittorio nella formazione della prova. La colpevolezza [83] dell’imputato non può essere provata sulla base di dichiarazioni rese da chi, per libera scelta, si è sempre volontariamente sottrato all’interrogatorio da parte dell’imputato o del suo difensore. [84]

Com efeito, sem a observância do contraditório e da ampla defesa não se pode falar, hoje, em due process of law.

Consiste a ampla defesa na possibilidade conferida ao imputado de lançar mão de todos os meios legalmente admitidos para refutar a imputação que lhe é feita.

Consiste o contraditório, corolário da ampla defesa, essencialmente, na possibilidade das partes, notadamente o imputado, de conhecerem as alegações da parte adversa, assim como as provas por esta produzidas, e sobre elas poder manifestar-se.

Neste sentido é a lição de ALEXANDRE DE MORAES, que assevera:

Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido caberá igual direito da outra parte de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que lhe convenha, ou ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor. [85]

Assim qualquer disposição legal que fira as possibilidades de produção de provas e manifestação sobre provas e alegações deduzidas pela parte ex adversa restará inquinada de flagrante inconstitucionalidade.

A ampla defesa compreende a possibilidade de recorrer e, logo, de conhecer e refutar também os fundamentos das decisões prolatadas pelos órgãos jurisdicionais.

Neste contexto, vê-se com maior clareza ainda a relevância da exigência constitucional, sob cominação de nulidade, de fundamentação das decisões judiciais, contida no inciso X do art. 93 da Constituição Federal. [86]

Estabelece o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil:

LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

Norma análoga é encontrada no artigo 27 da Constituição italiana, in verbis:

Articolo 27. La responsabilità penale è personale. L’imputato non è considerato colpevole sino alla condana definitiva. [87]

O Princípio da Presunção de Inocência ou Presunção de Não-culpabilidade (esta última expressão adotada por parte da doutrina, oriunda da doutrina afetada pelo pensamento fascista) encontra-se consagrado expressamente na Carta Magna, em seu art. 5º, inciso LVII, retro-transcrito, que dispõe que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

ALEXANDRE DE MORAES, a comentar o referido dispositivo, ensina que:

A Constituição Federal estabelece que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, consagrando a presunção de inocência, um dos princípios basilares do Estado de Direito, como garantia processual penal, visando à tutela da liberdade pessoal. [88]

E prossegue o eminente constitucionalista, asseverando:

O direito de ser presumido inocente, consagrado constitucionalmente pelo art. 5º, LVII, possui quatro básicas funções:

- limitação à atividade legislativa;

- critério condicionador das interpretações das normas vigentes;

- critério de tratamento extraprocessual em todos os seus aspectos (inocente);

- obrigatoriedade de o ônus da prova da prática de um fato delituoso ser sempre do acusador. [89]

Ressalte-se que das lições do ilustre constitucionalista depreende-se que o primeiro aspecto da disposição constitucional que consagra o Princípio da Presunção de Inocência é aquele de limitação da atividade legislativa, compreendida esta em uma dupla acepção: impedimento de produção legislativa violatória de tal presunção e não-recepção, com conseqüente perda de validade, de qualquer disposição legal anterior à Carta Constitucional que viole referido preceito.

Ademais, ainda conforme as lições do insigne doutrinador, a hermenêutica das normas infraconstitucionais deve ser feita, desde a entrada em vigor do texto constitucional, de conformidade com tal disposição, de modo a compatibilizar a normatividade infraconstitucional com os preceitos da Carta Magna.

Estes seriam os mais relevantes princípios e normas da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 para a análise do tema em mesa, no que se refere ao rol dos direitos e garantias individuais e coletivos.

Dos princípios e normas abordados depreende-se, com clareza meridiana, a adoção, pela Carta Constitucional de 1988, de um sistema jurídico de natureza eminentemente garantista, de cuja orientação não é lícito aos poderes constituídos desviarem-se.

O mesmo se diga quanto ao processo penal, em particular, pois os princípios adotados expressa e tacitamente [90] pela Carta de 1988 conferem ao processo penal brasileiro um modelo evidentemente acusatório.

Passa-se doravante à análise, à luz dos citados princípios, das já referidas posições da doutrina processual penal pátria acerca da remessa necessária.

4.1.2 – Das posições da doutrina processual penal acerca da recepção do reexame necessário pela Constituição Federal de 1988.

Enfrentando o tema da recepção do reexame necessário, em matéria penal, pela Constituição Federal de 1988, assim se manifesta JULIO FABRINI MIRABETE:

Diante da Constituição Federal de 1988, que estabelece como função institucional do Ministério Público promover privativamente a ação penal pública, já se entendeu que os dispositivos que obrigam ao recurso ex officio foram revogados Entendeu-se que a apelação de ofício é forma de iniciativa da ação penal, agora exclusiva do Ministério Público, estando revogadas pelo art. 129, I, da CF [91], as normas que obrigam os juízes a recorrer. Como diz, porém, Antonio Scarance Fernandes, não há nas hipóteses legais, nova acusação, nem alteração daquela originariamente oferecida pelo Ministério Público na denúncia, pois o reexame necessário pelo tribunal, assim como ocorre com o recurso voluntário, somente instaura uma nova fase procedimental, não outro processo. (grifos constantes do original). [92]

Como leciona o citado mestre, recorrendo ao magistério de ANTONIO SCARANCE FERNANDES, uma das primeiras teses levantadas, logo após a promulgação da nova Constituição, no sentido da não-recepção do instituto do "recurso de ofício", foi aquela que defendia a incompatibilidade entre este e o disposto no artigo 129, inciso I, da Carta Magna, que estabelece ser função institucional privativa do Ministério Público a ação penal pública.

Com efeito tal dispositivo constitucional afetou o processo penal em diversos pontos, tornando excepcional o exercício do direito de ação penal pública por particulares, restringindo-o à ação penal privada subsidiária da pública [93], bem como a instauração de processo ex officio, pela autoridade policial ou pelo juiz.

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Neste sentido, é válida a citação da doutrina de PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN e JORGE ASSAF MALULY, que asseveram:

Com o advento da Constituição Federal de 1988, os arts. 26 e 531 do CPP, que previam o início da ação, em determinados casos, por auto de prisão em flagrante ou portaria expedida pelo Juiz de Direito ou Autoridade Policial, foram revogados pelo art. 129, inciso I. Esse mesmo dispositivo constitucional revogou também a Lei nº 4.611/65, que admitia a iniciativa da ação nos crimes de trânsito nos mesmos moldes dos retromencionados artigos. Agora, o Ministério Público é o titular exclusivo da ação penal pública, da mesma forma que a vítima ou seu representante legal na ação privada (art. 30, CPP). [94]

Parte da doutrina e da jurisprudência passou a entender que o artigo 129, I, da CF, havia banido o reexame necessário do ordenamento jurídico brasileiro, por vislumbrar o recurso como uma continuidade do direito de ação que, na espécie, passava a ser privativa do Ministério Público.

Assim, passaram os defensores de tal entendimento a propugnar pela não-recepção do instituto pela nova ordem constitucional.

Referindo-se à controvérsia, assim se manifesta o insigne FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO:

O extinto Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul (cujos membros passaram a integrar o Tribunal de Justiça daquele Estado), em várias decisões, entendeu que o recurso ex officio foi banido do nosso sistema processual penal, em face do art. 129, I da Constituição da República, com este argumento: "... constituindo a apelação de ofício forma de iniciativa da ação penal, e sendo esta, quando pública, privativa do Ministério Público, seguem-se como tendo sido revogadas pelo art. 129, I, da CF as normas que obrigam os Juízes a recorrer de ofício." (cf. RT, 609:305). Assim, também, vários julgados do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo (cf. Revista de Julgados e Doutrina do TACrimSP, 13:118, 124 e 204, 1992). [95]

Ocorre que, como visto, tecnicamente não se trata de recurso, mas sim de uma providência jurisdicional ditada pela lei, de modo que tal entendimento, com base naquele fundamento, tão somente, veio a sucumbir diante da doutrina majoritária e da jurisprudência dominante, como demonstrar-se-á.

É ainda TOURINHO FILHO que, continuando a discorrer sobre referido entendimento, assevera:

Data venia, não nos parece. Tal recurso deveria existir apenas quando o Juiz ou o Tribunal do Júri impusesse uma severa pena. Não somos, pois, a favor dele. Contudo, sua vigência é inegável. Pelo só fato de parte da doutrina entender que o recurso representa um desdobramento da ação penal, não se pode concluir, de logo, que o recurso representa verdadeira ação penal. [96]

A despeito de afirmar ser contra o referido recurso, entendendo-o viável somente se se tratasse de instituto em favor do réu [97], o renomado jurista não vê incompatibilidade entre o instituto e o exercício privativo da ação penal pública pelo Parquet, conforme visto.

Resta evidenciado que de nova ação penal efetivamente não se trata, por óbvio. No entanto, o recurso pode e deve ser compreendido como desdobramento e, por conseguinte, continuidade do exercício da ação penal, haja vista sua eficácia no sentido de prolongar o processo, impedindo a preclusão e a formação da coisa julgada.

Em outros termos, embora diante da Teoria Geral dos Recursos, de recurso, em sentido próprio e técnico, não se trate, dada a identidade de efeitos, merece igual tratamento.

As evidentes relações entre as condições e pressupostos da ação e as condições e pressupostos recursais, já referidas, apontam em tal direção, reforçando tal entendimento.

Destas relações, as mais evidentes que se podem argüir em defesa do mesmo são aquelas pertinentes à legitimidade para a ação e a legitimidade recursal, assim como as relativas ao interesse processual e o interesse recursal. [98]

Sobre a natureza jurídica do "recurso ex officio", assim manifestam-se ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, ANTONIO SCARANCE FERNANDES:

Por último, cumpre notar que não encontra embasamento científico a classificação dos recursos, quanto ao critério da iniciativa, em voluntários e de ofício. Qualquer recurso depende da iniciativa da parte, sendo sempre um meio voluntário de impugnação (supra,n. 8). O juiz não tem interesse em recorrer e não pode impugnar a sua própria decisão. Assim, não constituem conceitualmente recursos os casos em que o ordenamento exige que a sentença de primeiro grau seja necessariamente submetida à confirmação do segundo, para passar em julgado. Trata-se de condição de eficácia da sentença. [99]

Semelhante é o entendimento do insigne VICENTE GRECO FILHO sobre o assunto, in verbis:

O Código prevê hipóteses denominadas "recurso de ofício", nas quais o próprio juiz determina a remessa dos autos para o tribunal para reexame de sua decisão. Essa providência não é recurso, mas requisito ou condição necessária à preclusão ou trânsito em julgado de uma decisão ou sentença. Em outras palavras, não é certo dizer que o juiz recorre da própria decisão; esta é que não pode tornar-se preclusa ou transitar em julgado sem que seja examinada e confirmada pelo tribunal. O juiz, ao proferir decisão em determinado sentido, previsto na lei, deve remeter os autos ao exame do tribunal, porque se não o fizer, sua decisão jamais alcançará a preclusão ou a coisa julgada. [100]

Com efeito, é uniforme a doutrina em reconhecer ser a natureza do instituto diversa daquela dos recursos, apesar da terminologia impropriamente utilizada pelo legislador ordinário.

A despeito de não se tratar, tecnicamente, de recurso [101], o reexame necessário possui os mesmos efeitos impeditivos da preclusão e da formação da coisa julgada daquele, de modo que, mesmo não possuindo natureza jurídica recursal, revela-se como um instituto jurídico que prorroga automaticamente o processo.

Logo, estende, amplia, prorroga também o exercício da ação penal (pois não há como se conceber processo sem direito de ação).

E o faz sem ter havido recurso voluntário interposto por quem de direito (no caso de absolvição ou outra hipótese desfavorável à acusação, pelo Ministério Público, em se tratando de ação penal pública), a quem incumbe, dentre outras atribuições, velar pela indisponibilidade da ação penal.

Já na seara daquilo que respeita à constitucionalidade do reexame necessário, assim se manifestam PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN e JORGE ASSAF MALULY:

A previsão do chamado "recurso necessário" não se reveste de qualquer inconstitucionalidade e também não fere o processo penal de estrutura acusatória, que impõe a inércia da jurisdição. Esse reexame necessário nada mais é do que um requisito imposto pelo legislador para se aperfeiçoar o trânsito em julgado da sentença. Embora denominado recurso de ofício, não se trata, propriamente de um recurso, notadamente porque não está sujeito a todos os pressupostos que serão analisados mais a frente. [102][103]

Pode-se afirmar que o sistema acusatório foi adotado pela Constituição Federal de 1988, haja vista os princípios naquela consignados, relativos à ampla defesa, contraditório, publicidade, dentre outros, todos típicos do referido sistema, conforme abordado no item 3.1.1. retro.

Naquele tópico abordou-se, ainda que perfunctoriamente, algumas das características marcantes de tal sistema, especialmente: 1 – divisão das funções processuais de acusação, defesa e julgamento em órgãos distintos; 2 – publicidade; 3 – garantia de ampla defesa e contraditório; 4 – isonomia de partes e paridade de armas.

PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN e JORGE ASSAF MALULY, no trecho retro-transcrito, manifestam entendimento no sentido de inexistir ofensa ao sistema acusatório, vislumbrando, ao que parece, somente o princípio da inércia da jurisdição.

Ao contrário, parece bastante clara a violação ao sistema acusatório pelo instituto, tendo em vista que: a) atribui ao Poder Judiciário um resquício da anômala função de acusar, haja vista os efeitos impeditivos da preclusão e da formação da coisa julgada pelo reexame necessário; b) viola a publicidade e fundamentação das decisões, vez que se trata de um "recurso", impropriamente utilizado o termo de forma proposital, que não possui razões; d) a inexistência de razões recursais fere ainda a ampla defesa e o contraditório, haja vista a dificuldade da parte contraditar razões recursais inexistentes e d) viola, por fim, o princípio da isonomia das partes e o Princípio do Favor Rei, tendo-se em vista que estabelece uma hipótese impeditiva de preclusão e de formação da coisa julgada em favor da acusação e em detrimento da defesa.

A doutrina pátria majoritária não tem manifestado maiores dúvidas sobre a constitucionalidade da remessa necessária, considerando-a válida. Vejamos o que diz o ilustre FERNANDO CAPEZ:

O recurso ex officio, de ofício, obrigatório, necessário ou anômalo é aquele que obrigatoriamente deve ser interposto pelo próprio juiz em determinadas decisões. Nesse caso, costuma-se dizer que a decisão está forçosamente sujeita ao duplo grau de jurisdição. No final de sua decisão, quando exigido o recurso de ofício, dirá o juiz: "desta decisão recorro ex officio". [104]

Da mesma forma, PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN e JORGE ASSAF MALULY asseveram:

Em alguns casos, o legislador determinou que o próprio julgador recorresse de sua decisão para o Tribunal. São hipóteses dessa espécie de recurso oficial, previstos no art. 574 do CPP: (a) da sentença que absolver sumariamente o réu, com fundamento no art. 411 do CPP; (b) da decisão que conceder habeas corpus. Também está previsto o recurso necessário quando for julgada improcedente ação penal por crime contra a economia popular ou for determinado o arquivamento do respectivo inquérito policial (art. 7º da Lei nº 1.521, de 26-12-51), e ainda da decisão que conceder a reabilitação (art. 746 do CPP). [105]

Não é outro o entendimento manifestado por FRANCISCO DE ASSIS DO RÊGO MONTEIRO ROCHA:

O recurso de ofício é obrigatório, devendo o juiz interpô-lo nas hipóteses recomendadas pela lei. A não-interposição de recurso obrigatório, de ofício ou oficial, impede até mesmo que a decisão transite em julgado, quando não haja recurso voluntário. A Súmula nº 432, do STF, assentou que: "Não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso ex officio, que se considera interposto ex lege". [106]

Como se vê, é a doutrina majoritária no sentido de afirmar a permanência e validade do instituto, sem maiores questionamentos.

O fundamento freqüentemente mencionado para justificar a submissão da decisão ao duplo grau de jurisdição, independentemente de iniciativa das partes, é aquela a respeito interesse público e da relevância ínsita às hipóteses e situações às quais a lei sujeita à referida providência.

Neste sentido, a lição de E. MAGALHÃES NORONHA:

Tais recursos são obrigatórios: deles não pode declinar o juiz.

Fundamenta-os o interesse público relevante, de modo que se busca o exame pela instância superior, com o fito de manter ou reformar a decisão. O recurso é, então, interposto na própria sentença, que concede ou não o habeas corpus, ou que absolve sumariamente o acusado, na conformidade do art. 411. É ex officio o recurso, é interposto pelo próprio juiz, que vem a ser, então, o recorrente sendo recorrida a parte objetivada pela decisão, isto é, o réu ou acusado. [107]

O mesmo entendimento é manifestado pelo já citado FRANCISCO DE ASSIS DO RÊGO MONTEIRO ROCHA, in verbis:

A previsão do recurso obrigatório é ditada por questões de alto interesse do Estado no administração da justiça. Com efeito, em todas as hipóteses em que ele é cabível, verifica-se estarmos diante de questão relevante, pois se está a absolver sumariamente alguém acusado da prática de grave crime; ou se está colocando em liberdade quem deveria continuar preso; ou se reabilita sumariamente quem, efetivamente, não mereceria tal favor legal. [108]

Note-se que os entendimentos expendidos buscam seu fundamento em conceitos vagos de que apelam à segurança jurídica, utilizando-se se expressões como "interesse público relevante", "altos interesses do Estado na administração da justiça", "questão relevante", e congêneres, sem maiores cogitações acerca de princípios constitucionais expressos, como aquele da ampla defesa e contraditório, que pressupõe isonomia de partes ou, principalmente, aquele da presunção de inocência.

Examinem-se, por oportuno, as justificativas apresentadas por FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO para justificar a existência do recurso anômalo:

Pode-se dizer que, nas hipóteses para as quais a lei prevê o recurso necessário, há uma que espécie de prejuízo, de gravame presumido. Presume-se o gravame, e isto em virtude dos altos interesses sociais que a lei procura resguardar e proteger. Com tal recurso, o Estado exige dos órgãos superiores da Justiça um controle maior sobre a solução de certas causas, exercendo a Instância Superior aqueles atti de controllo de que fala a doutrina italiana. [109][110]

Mais uma vez encontram-se os fundamentos como "os altos interesses sociais" protegidos pela lei, para justificar o instituto.

Refere-se o douto a uma presunção legal de gravame ao interesse público quando das decisões cuja eficácia a lei sujeita ao reexame necessário pela superior instância, as quais são, como visto, todas favoráveis ao réu, de modo que o envio de ofício ocorre em detrimento dos interesses deste.

No entanto, deve-se perceber que referida presunção nada mais é do que uma presunção de culpabilidade – com todas as conseqüências daí oriundas. Desimportante denominá-la diferentemente, haja vista suas características inequívocas.

Nenhuma outra razão poderia ensejar a remessa de ofício ao órgão jurisdicional ad quem senão uma presunção de culpabilidade, haja vista que, à exceção de uma única, todas as demais hipóteses de cabimento são contrárias ao réu.

A este ponto convém avaliar se é possível existir, validamente, na legislação infraconstitucional, uma presunção de culpabilidade, diante da regra insculpida no inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal, que estabelece uma presunção de inocência, diametralmente oposta àquela.

E mais, em se admitindo, ad argumentandum tantum, a existência de duas presunções em sentido contrário, uma de dignidade constitucional, outra implícita na ordem infraconstitucional, a qual deve dar-se prevalência? A resposta é evidente.

Embora por muitas vezes com fundamentos um pouco diversos destes, há e houve entendimentos doutrinários respeitáveis, embora minoritários, no sentido da não recepção do reexame necessário pela ordem constitucional instaurada com a Carta de 1988.

Não é outro o entendimento do insigne PAULO LÚCIO NOGUEIRA, citado por FRANCISCO DE ASSIS DO RÊGO MONTEIRO ROCHA:

Sobre a titularidade recursal exclusiva do Ministério Público, manifesta-se o ilustrado prof. Paulo Lúcio Nogueira, no sentido de que, após o advento da Constituição Federal de 1988, que em seu art. 129, inciso I, estabelece constituir função institucional do Ministério Público promover privativamente a ação penal pública, deixou de existir, entre nós o recurso oficial. Justificando seu modo de pensar, escreve o ilustre juiz: "Realmente, se cabe privativamente ao Ministério Público a iniciativa da ação penal pública, deve-se-lhe também atribuir a iniciativa recursal como prolongamento do princípio da legalidade" (Curso Completo de Processo Penal, Ed. Saraiva, 1993, p. 344). [111]

Vê-se que o entendimento do insigne jurista baseia-se, como as decisões judiciais que acabaram por restar vencidas nos tribunais pátrios, no entendimento do recurso como continuidade da ação penal e na legitimidade para tanto, cuja discussão fez-se linhas atrás.

JOSÉ LIBERATO DA COSTA PÓVOA, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Tocantins e doutrinador, em sua obra "O Procedimento no Juízo Criminal", ensina:

Embora expressamente previsto no Código de Processo Penal, no caso de absolvição sumária (art. 411), bem como nos casos previstos no art. 574, entendemos estarem revogados tais dispositivos, em razão do art. 129, inc. I, da Constituição Federal, que, ao fortalecer o Ministério Público, conferiu-lhe novas atribuições, dentre as quais a de promover, privativamente, a ação penal pública. Ao absolver sumariamente o acusado com base no Art. 411 da lei adjetiva penal, não pode recorrer de ofício ao Tribunal, pois, no momento em que a Carta Política Pátria conferiu ao Parquet, com exclusividade, a titularidade da ação penal, tornaram-se letra morta todos os dispositivos conflitantes com a norma constitucional. (grifos no original). [112]

Como visto, o magistrado também esposa entendimento no sentido de que, diante do novo status constitucional do Ministério Público, tornaram-se inaplicáveis as disposições infraconstitucionais que usurpam suas funções.

O ilustre jurista, citando PONTES DE MIRANDA e outros respeitáveis doutrinadores, aduz outro argumento de peso à tese da não-recepção do reexame necessário pela Constituição Federal de 1988, a saber, aquele do Princípio da Isonomia ou Igualdade Processual:

PONTES DE MIRANDA (Comentários à Constituição de 1967, RT 197/698) diz que o regramento da igualdade das partes "é cogente para a legislatura, para a administração e para a Justiça". Comungando esse entendimento, ROGÉRIO LAURIA TUCCI e JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI (Constituição de 1988 e Processo, Ed. Saraiva, 1989, p. 39) entendem que não é dado estabelecer privilégios, nem discriminações, sejam quais forem as circunstâncias, devendo todas ser tratadas com a igualdade que preconiza a Constituição [...] E dentro dessa isonomia processual, aliada à titularidade da ação penal, entendemos revogado, pelo menos no processo penal, o recurso de ofício, consagrado nos art. 411 e 581 do CPP, uma vez que a titularidade para recorrer é inerente à titularidade da ação. [113] (destaques constantes do original).

Vê-se, da lição do desembargador, que PONTES DE MIRANDA já chamava a atenção para a regra cogente, para todos os Poderes, incluído aí o Poder Legislativo, da isonomia ou paridade de armas, também conhecida como par conditio.

E segundo a opinião manifestada por ROGÉRIO LAURIA TUCCI e JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI, ilegítimas e inconstitucionais quaisquer discriminações a afetar a igualdade de partes e o equilíbrio processual.

O insigne desembargador JOSÉ LIBERATO DA COSTA POVOA menciona ainda, em sua obra, a escassez de manifestações judiciais acerca do tema, cuja constitucionalidade, ao que parece, passou desapercebida pelos operadores do direito, mencionando, no entanto, entendimentos jurisprudenciais do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (RT 659/305), do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo (RT 684/336), além de Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Tocantins, oriundo de voto da lavra do próprio autor, acolhido por unanimidade (DJ n. 171, de 1/3/93, p. 5). [114]

Conclui o citado autor a abordagem sobre o tema, afirmando categoricamente:

Admitir-se o recurso ex-officio, seria institucionalizar a usurpação, pelo Judiciário, das atribuições do Ministério Público, principalmente da titularidade da ação penal, em boa hora colocada em termos constitucionais. Até mesmo por razões de lógica, nem recurso seria, pois a parte só recorre para buscar modificar uma decisão com a qual não se conforma, e, além de o Juiz não ser parte, não busca modificar ou reformar uma decisão que ele próprio prolatou. [115] (destaques do original).

Por todos os fundamentos até aqui postos pode-se perceber que constitui o reexame necessário uma franca violação a importantes princípios constitucionais, além de uma espécie de capitis diminutio do Ministério Público, ao qual incumbe primordialmente o zelo pela indisponibilidade da ação penal.

A única hipótese em que o instituto em exame não se encontra inquinado de flagrante inconstitucionalidade é aquela contida no artigo 625, parágrafo 3º, do Código de Processo Penal Brasileiro, ao qual se refere FRANCISCO DE ASSIS DO RÊGO MONTEIRO ROCHA nos seguintes termos:

Também recurso obrigatório deve haver na hipótese do art. 625, § 3º, do CPP, que trata do indeferimento in limine, pelo relator, da revisão criminal, quando deve dar recurso para as câmaras criminais reunidas ou para o tribunal, conforme o caso (art. 624, parágrafo único). [116]

Nesta única hipótese legal é defensável a permanência, com validade, do reexame necessário, haja vista a conformidade da previsão com o princípio do Favor Rei, presente na Constituição Federal, assim como na legislação infraconstitucional, e amplamente consagrado pela doutrina e pela jurisprudência.

Ver-se-á, no capítulo sucessivo, as posições jurisprudenciais acerca do assunto, de modo a poder fazer a adequada apreciação das razões favoráveis e contrárias ao recurso anômalo, ao final.

4.1.3 – Do instituto do reexame necessário em face do novo status constitucional do Ministério Público.

Além de todos estes aspectos, é de se destacar a já mencionada "capitis diminutio" que o instituto do reexame necessário representa para o Ministério Público, cuja importância foi marcantemente ampliada pela Constituição Federal de 1988.

Com efeito, dispõe a Constituição da República ser o Ministério Público "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis." [117]

De órgão consultivo ou representante dos interesses do Poder Executivo, passou ao status de órgão independente de qualquer dos poderes [118], cujo amplo leque de atribuições constitucionalmente conferidas passa pelo zelo ao respeito, pelos Poderes e serviços públicos, aos direitos assegurados pela Constituição [119], proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos [120], exercer o controle externo da atividade policial [121], dentre inúmeros outros.

Para que os membros do Parquet possam exercer suas atribuições com toda a liberdade e desembaraço, confere-lhes a Constituição da República garantias iguais àquelas conferidas aos magistrados, a saber, vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio. [122]

Sua importância no processo penal é indiscutível. A teor do disposto no artigo 129, inciso I da Carta Magna, constitui função institucional do Parquet, privativamente, a promoção da ação penal pública incondicionada [123], sendo a doutrina unânime em afirmar que lhe compete velar pela indisponibilidade da ação penal.

Neste sentido, válida a transcrição da lição de JULIO FABRINI MIRABETE:

O órgão do Ministério Público, na ação penal pública, está submetido ao princípio da obrigatoriedade (ou legalidade ou necessidade) da ação penal (item 1.5.8). Não fica ao seu arbítrio ou discricionariedade mover ou não a ação penal. [...] Como regra vige, pois, o princípio da indisponibilidade da ação penal pública. [124] (destaques constantes do original).

Referindo-se ao princípio da indisponibilidade da ação penal, FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO doutrina:

Pertencendo a ação penal ao Estado (salvo as exceções), segue-se que aquele a quem se atribui seu exercício, o Ministério Público, não pode dela dispor. E por não lhes pertencer, não podem os órgãos do Ministério Público dela desistir, transigindo ou acordando, pouco importando seja ela incondicionada ou condicionada. Entre nós, o art. 42 do CPP, às expressas, veda a desistência da ação penal pública: "O Ministério Público não poderá desistir da ação penal." [125][126]

Do exposto, vê-se constituir uma das principais atribuições do órgão o zelo pela indisponibilidade da ação penal, não apenas naquilo que respeita ao seu exercício como também no que se refere a recorrer das decisões judiciais que entender contrárias aos interesses do Estado, no exercício do jus puniendi.

O reexame necessário, nesses termos, fere também as atribuições institucionais do Ministério Público conferidas pela nova Constituição, usurpando-lhe funções que lhe são privativas e essenciais, malferindo o sistema preconizado pela Carta Magna.

De regra, é sabido que o Ministério Público mostra-se zeloso de seus deveres constitucionais e legais, não se descurando da obrigatoriedade da ação penal e recorrendo, sempre que entende restar prejudicado o interesse da sociedade em virtude de decisões judiciais nos processos em que atua ou intervém.

Afigura-se mesmo absurdo sujeitar uma causa julgada por um magistrado ao duplo grau de jurisdição mesmo na ausência da interposição de recurso voluntário pelo Ministério Público, ao qual incumbe zelar pela indisponibilidade da ação penal.

Como visto, a posição vencedora na doutrina pátria acerca do tema é aquela que não vê inconstitucionalidade no mesmo, propugnando pela sua recepção pela nova ordem constitucional.

Não obstante, levantam-se importantes objeções à tese vencedora, por uma doutrina minoritária, mas respeitável. Passar-se-á, após a análise da doutrina acerca do tema, às posições adotada pela jurisprudência dos tribunais pátrios.

4.2 – Jurisprudência.

Dando continuidade ao debate acerca da constitucionalidade do instituto do reexame necessário após o advento da Carta Constitucional de 1988, ou seja, em outras palavras, sobre sua recepção pela nova Constituição, passar-se-á a confrontar a jurisprudência sobre o tema.

Adianta-se que o entendimento francamente majoritário esposado pelos tribunais brasileiros acerca da recepção do reexame necessário em matéria penal pela Constituição Federal de 1988 é no sentido positivo, ou seja, os pretórios, em sua maior parte, não vislumbram incompatibilidade deste instituto de processo penal com a nova ordem constitucional, tampouco com o sistema acusatório adotado pela mesma, como visto.

Com efeito, neste sentido foi o entendimento do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, através de sua 6ª Câmara Criminal, nos seguintes termos:

168131 JCPP.574 JCPP.574.I JCF.129 JCF.129.I – RECURSO DE HABEAS CORPUS – REEXAME NECESSÁRIO – Artigo 574, inciso I do Código de Processo Penal. Obrigatoriedade. Artigo 129, I da Constituição Federal de 1988 que não extinguiu o recurso de ofício. Ocorrência de nova fase procedimental e não de outro processo. Recurso ex officio conhecido. (TJSP – RHC 347.912-3/4 – 6ª C.Crim. – Rel. Des. Debatin Cardoso – J. 24.05.2001).

Nota-se que o fundamento eleito pela decisão transcrita para entender pela permanência do "recurso de ofício" no ordenamento jurídico pátrio sob a nova Constituição foi o entendimento de que o mesmo não fere a privatividade do exercício da ação penal pública pelo Parquet, preconizada pelo artigo 129, I, da Constituição vigente, por entender que não se trata propriamente de exercício da ação penal.

Reiteradas revelam-se as decisões neste sentido, por parte dos mais diversos tribunais. A título de exemplo, traz-se à colação acórdãos prolatados pelo Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais e do Tribunal de Alçada de Minas Gerais:

A Constituição da República, ao reservar o exercício da Ação Penal Pública ao Ministério, não extinguiu o recurso ex officio, pois este jamais possibilitou a instauração desta modalidade de ação por determinação judicial, sendo seu objetivo e alcance manifestamente outros, quais sejam, o de fazer com que determinadas matérias, pelo interesse público que seu solucionamento implique, sejam necessariamente apreciadas em duplo grau de jurisdição. (TACRIM-SP – REO 690.553-5 – Rel. Marrey Neto – RJD 14/212). [127]

O fato da Constituição Federal de 1988 atribuir ao Ministério Público a exclusividade da iniciativa da ação penal não acarretou a revogação das normas determinadoras do reexame obrigatório de certas questões pela E. Superior Instância, pois, ao recorrer de ofício, de forma alguma estará o Juiz a instaurar a ação penal, mas apenas a determinar a aplicação da lei nos casos em que a previsão legal torna obrigatório o duplo grau de jurisdição. (TACRIM-SP – REO 692.331-8 – Rel. Lourenço Filho – RJD 14/211). [128]

O recurso oficial continua existindo nos casos cominados, malgrado o disposto no inc. I do art. 129 da CF/88; pretendeu o constituinte extinguir a ação penal ex officio que a lei permitia ao Juiz ou à Autoridade policial, mediante portaria. Ao elevar o MP como titular exclusivo da ação penal pública, a Constituição não derrogou ou revogou os recursos necessários ou oficiais previstos em leis ordinárias. (TJMG – RHC 18.865-6 – rel. Gudesteu Biber – JM 126-127/346). [129]

No mesmo sentido, decisão do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, cujo teor é o seguinte:

O fato de o art. 129, I, da CF haver conferido ao MP, com exclusividade, a iniciativa da ação penal pública não implica extinção do recurso de ofício, providência cautelar cuja finalidade é dar maior proteção aos interesses que reclamam exame mais acurado. (TAMG – RO 224.060-2 – Rel. Jane Silva – RJ 233/130);" [130]

Por útil ao deslinde do tema proposto, transcreve-se um pequeno trecho do voto da ilustre Relatora:

Quanto ao conhecimento do recurso.

Entendo que o art. 129, I, da CF não o extinguiu, uma vez que se refere apenas à iniciativa da ação penal e não a recurso, sendo os mesmos coisas diversas.

Filiamo-nos, modestamente, à corrente que nem mesmo considera o chamado "recurso de ofício" como recurso propriamente dito [131], mas sim uma providência cautelar, imposta pela lei porque interesses maiores reclamam exame mais acurado de soluções que lhe são dadas pelo juiz do feito. A sua finalidade é a proteção maior a interesses maiores. Caso não interposto o recurso voluntário, por omissão de quem pode fazê-lo, o princípio da proteção maior a tais interesses, estabelecido pelos legisladores, ficaria ferido.

Digo que não é recurso porque não há interesse do recorrente na reforma, mas simplesmente o faz por uma imposição legal, sem a qual a decisão não transita em julgado, consoante o disposto na Súm. 423 do STF.

Acho até desnecessária tal providência, dada a zelosa e constante atuação do MP, entendendo ainda que melhor seria que fosse eliminada de nossa lei processual penal, substituindo (in recto: subsistindo) apenas o recurso voluntário, como um direito de quem sucumbiu, mas ao mesmo tempo tenho que, existindo, não podemos deixar de examiná-lo. [132]

Os Tribunais Superiores não consagram tese muito diversa daquela até aqui exposta. Não foi diferente o entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal, através de sua Segunda Turma, no julgamento do Habeas Corpus n. 74.634-9, in verbis:

O impropriamente denominado "recurso ex officio" não foi revogado pelo art. 129, I, da Constituição, que atribui ao Ministério Público a função de promover, privativamente, a ação penal, e, por extensão, a de recorrer nas mesmas ações. A pesquisa da natureza jurídica do que se contém sob a expressão "recurso ex officio" revela que se trata, na verdade, de decisão que o legislador submete a duplo grau de jurisdição, e não de recurso no sentido próprio e técnico. (STF – 2º T, - HC 74.634-9 – Rel. Maurício Correa – j. 24.6.97 – DJU 22.8.97, p. 38.761). [133]

As reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal acerca do tema encontram-se consolidadas na súmula da jurisprudência dominante daquela corte, notadamente a teor das Súmulas 423, 344 e 160, cujos enunciados transcreve-se:

Enunciado da Súmula 423 do Supremo Tribunal Federal:

Não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso "ex-oficio", que se considera interposto "ex-lege". [134][135]

Enunciado da Súmula 344 do Supremo Tribunal Federal:

Sentença de primeira instância concessiva de habeas-corpus, em caso de crime praticado em detrimento de bens, serviços ou interesses da união, está sujeita a recurso "ex-officio". [136]

Enunciado da Súmula do Supremo Tribunal Federal nº 160.

É nula a decisão do tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não arguida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício. [137]

A jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça acerca do tema não é muito diferente daquela do Supremo Tribunal Federal e demais tribunais inferiores. Manifestando-se precisamente acerca da vigência do reexame necessário após a Constituição de 1988, entendeu o STJ:

O recurso de ofício, previsto no art. 574, do CPP, não está revogado. (Súmula nº 423, STF). (STJ, HC nº 7.017/CE, Rel. Min Felix Fischer, DJU, 30.03.1998, p. 101).

Embora as Súmulas 160, 344 e 423 do STF tenham sido editadas nos anos de 1963 - as duas primeiras - e 1964 - a última -, ou seja, muito antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, o fato é que a Corte Constitucional tem aplicado as mesmas habitualmente, mesmo após a vigência da nova ordem constitucional, além de ter se manifestado expressamente, em diversos acórdãos, no sentido da constitucionalidade do instituto.

Não obstante tal posição, francamente vencedora nos pretórios brasileiros, encontram-se decisões respeitáveis em sentido contrário, oriundas de diversos tribunais. Vale transcrever r. decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, principal foco da tese minoritária, em sede de tribunal, in verbis:

Recurso de ofício. Absolvição sumária. Preliminar de não conhecimento. Sendo o recurso de ofício uma forma de iniciativa da ação penal que, quando pública, é privativa do MP (art. 129, I, CF), têm-se como revogados os dispositivos processuais normativos do recurso oficial. (TJRS – 3ª Câmara C. Recurso Criminal nº 690.085.162 – Rel. Des. José Eugênio Tedesco, decisão: 14-2-1991). [138]

Como visto, referida decisão baseia-se no entendimento de que, em virtude de provocar a continuidade do processo contra o imputado, consiste o reexame necessário em verdadeira continuidade do direito de ação e, portanto, incompatível com a norma inscrita no art. 129, I, da Constituição da República.

Decisão fundada em entendimento semelhante foi proferida também pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, tendo funcionado como relator o MM. Desembargador Federal Ivo Tolomini, cuja ementa é a seguinte:

A CF/88 estabeleceu ser a iniciativa da ação penal privativa do Ministério Público. Sendo o recurso de ofício forma de iniciativa da ação, que faz prosseguir o exercício da jurisdição, tem-se como revogados os dispositivos da lei processual penal que determinam a obrigatoriedade de sua interposição pelo juiz. (TRF 4ª Reg. – RO 940444901-61 – Rel. Ivo Tolomini – 29.03.95). [139]

Como visto, referido entendimento já foi esposado por órgãos da Justiça Comum estadual e federal.

Também entendendo pela incompatibilidade do "recurso de ofício" com a Constituição de 1988, proferiu o Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo v. acórdão, cujo teor pede-se vênia para transcrever:

Com o advento da nova Constituição Federal, baniu-se da administração da Justiça Criminal o sistema inquisitivo e implantou-se o sistema acusatório, cuja característica principal é, exatamente, a repartição, entre órgãos autônomos diversos, das funções de acusar e de julgar [140]. Com efeito, é o que dispõe expressamente o art. 129, I, da CF ao estabelecer constituir função institucional do Ministério Público promover privativamente a ação penal pública. Assim, em sendo o recurso obrigatório forma de iniciativa da ação penal e sendo esta, quando pública, privativa do Ministério Público, segue-se com tendo sido revogada pelo art. 129, I, da CF a norma do art. 571, I, do CPP que obriga o juiz a recorrer de ofício. (TACRIM-SP-RO 695.063-2-Rel. Passos de Freitas – RT 677/374) [141]

Como visto, esta decisão baseia-se em fundamento um pouco diverso daquele utilizado nas duas primeiras, do TJRS e do TRF da 4ª Região, embora com ele conexo.

Como se pode depreender do teor da ementa retro-transcrita, o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo entendeu que o instituto em exame fere o sistema acusatório, adotado pela Carta Magna vigente, por cometer funções de acusação ao Poder Judiciário.

Não foi outro o entendimento esposado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais ao entender pela não-recepção da remessa necessária em matéria penal pela ordem constitucional instaurada em 1988:

O art. 129, I, da CF, revogou todo e qualquer dispositivo processual que obriga os juízes a recorrerem de ofício sempre que absolverem os acusados em processos por crime contra a economia popular, os afetos ao Tribunal do Júri, na hipótese de absolvição sumária, bem como, pelos mesmos argumentos, nos demais casos de recurso obrigatório, tais como aqueles interpostos das sentenças que concederam habeas corpus ou de reabilitação. Assim, a nova CF baniu da administração da Justiça Criminal o sistema inquisitivo e implantou o sistema acusatório, cuja principal característica é exatamente a repartição, entre órgãos autônomos e diversos, das funções de acusar e de julgar. (TJMG – RO 153/2 – Rel. Guido de Andrade – RT 698/384). [142]

Decisão memorável no sentido da tese minoritária é aquela proferida pelo extinto Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul, in verbis:

O recurso de ofício, em qualquer hipótese, viola os princípios da inércia jurisdicional, da dignidade do cidadão e da ampla defesa. Nada mais é que resquício medieval do sistema inquisitório, a que estão afeitos espíritos autoritários, incompatível com a vocação da Constituição de 1988. Resíduo de poluição antidemocrática varrida para baixo do tapete do Estado de Direito, que, vez por outra, é levantado por alguns juristas, a mostra que ela não foi totalmente eliminada pela nova ordem constitucional, resistindo ainda agora, como aconteceu ao longo da história jurídica e política brasileiras. Não conheceram. (TARS – RO 297039182 – Rel. Aramis Nassif – JUTARS 105/104). [143]

Aponta o referido acórdão como fundamentos para a não-recepção do instituto a violação da inércia ínsita à atividade jurisdicional, adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro (ne procedet judex ex officio), assim como violação à dignidade do cidadão, haja vista o caráter vexatório oriundo do strepitus processus, prorrogado pelo instituto, e finalmente violação à ampla defesa, ínsita ao sistema acusatório, haja vista estabelecer recurso automático em favor da acusação e em prejuízo da defesa, fundado em verdadeira presunção de culpabilidade.

Vislumbrando violação ao princípio acusatório pelo reexame de ofício, pela incompatibilidade entre a titularidade para a ação penal e a titularidade da jurisdição, e ainda apontando a falta de legitimidade recursal, a demonstrar a inexistência de recurso no sentido próprio e técnico, entendeu o antigo Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul:

O recurso de ofício mostra-se incompatível com o princípio acusatório, posto que este se caracteriza por separar a titularidade da ação penal da titularidade da jurisdição penal. A falta de legitimidade para a propositura da ação penal conduz à ausência de legitimidade para a interposição de recurso [144], pela substancial identidade entre o exercício da ação e o da apelação. Tendo a CF de 1988, no art. 129, inc. I, instituído o princípio acusatório, tal circunstância importou em revogar a regra precedente inscrita no art. 7º da Lei ordinária 1.521/51, que determina recorra o Juiz, de ofício, sempre que, acolhendo requerimento do MP, determinar o arquivamento do inquérito policial. (TARS – REO 291132470 – Rel. Vladimir Giacomuzzi – JUTARS 80/25; RT 676/348). [145] [146]

É também do extinto Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul entendimento no sentido banimento do instituto da ordem jurídica pátria pela Carta de 1988, com fundamento em ofensa ao sistema acusatório e falta de legitimidade recursal, assim como a necessidade de sucumbência, como expressão do interesse recursal:

A Constituição Federal, implantando o sistema acusatório (art 129, I, da CF), baniu o inquisitivo da administração da justiça criminal. A característica principal deste último é a repartição entre órgãos diversos das funções de acusar e de julgar. É função do Ministério Público promover privativamente a ação penal pública e, em conseqüência, é o legitimado a recorrer, pois o recurso não abre uma nova instância, mas busca um novo julgamento na fase de conhecimento. Ademais, é requisito do recurso a sucumbência, o prejuízo. Só o sucumbente tem legitimação para impugnar a sentença, face ao prejuízo que sofre em decorrência da decisão que pretende atacar. Na situação em tela, o Juiz não é sucumbente, porque a concessão do habeas corpus é resultado de seu entendimento, ao reconhecer que os pacientes sofriam constrangimento ilegal com um segundo inquérito instaurado pela Polícia Estadual. O prejudicado é o Ministério Público que, em última análise, determinou a abertura das investigações policiais. (TARS – HC 296021157 – Rel. Sylvio Baptista Neto – j. 8.8.96). [147]

Como visto, a despeito de minoritário, existiu entendimento nos pretórios no sentido da não recepção do reexame necessário pela Constituição de 1988, apontando as decisões em tal sentido, como fundamentos, basicamente, ofensa ao sistema acusatório, bem como ausência de legitimidade e interesse recursal do órgão jurisdicional na reforma de sua decisão, e a usurpação de funções privativas do Ministério Público.

Passar-se-á, no item subseqüente, à análise da compatibilidade do "recurso de ofício" com as normas estatuídas pelo Direito Internacional Público em matéria de Direitos Humanos, integradas ao ordenamento jurídico internacional na forma preconizada pela Constituição da República para, ao final, concluir-se o presente trabalho.

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Sobre o autor
Luis Fernando Sgarbossa

Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor do Mestrado em Direito da UFMS. Professor da Graduação em Direito da UFMS/CPTL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SGARBOSSA, Luis Fernando. Do reexame necessário em matéria penal no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1058, 25 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8410. Acesso em: 26 abr. 2024.

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