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Do reexame necessário em matéria penal no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo

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25/05/2006 às 00:00
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5. COTEJO DO INSTITUTO EM FACE DA ORDEM JURÍDICA INTERNACIONAL.

Após a análise acerca da compatibilidade do reexame necessário com os Princípios e normas da Constituição da República vigente, far-se-á uma incursão nos domínios do Direito Internacional Público, particularmente naquilo que se refere aos instrumentos internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil, em matéria de Direitos Humanos, com vistas a concluir pela compatibilidade ou não do instituto em exame com a ordem jurídica internacional.

Para tanto, faz-se necessária a análise de instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil em espécie. No entanto, antes de tal análise, afigura-se indispensável uma incursão preliminar acerca de dois aspectos respeitantes à norma internacional e suas relações com o direito interno: sua vigência e sua hierarquia. Sobre tais temas desenvolver-se-ão os próximos subitens.

5.1. Da vigência dos instrumentos internacionais em matéria de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro.

Preliminarmente à análise das normas de Direito Internacional relacionadas com o tema em estudo, convém uma rápida incursão em alguns aspectos correlatos à norma internacional, notadamente aqueles que dizem respeito à sua vigência e hierarquia no ordenamento interno.

Dispõe o artigo 5º, parágrafos primeiro e segundo, da Constituição da República de 1988:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

§ 1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. (sem destaques no original).

O parágrafo primeiro do artigo 5º determina que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são auto-aplicáveis, ou seja, auto-executáveis, independendo de regulamentação infraconstitucional para sua aplicabilidade e exigibilidade no plano interno.

O parágrafo segundo dispõe que os direitos e garantias elencados na Constituição Federal não excluem outros decorrentes do regime, dos princípios ou dos instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil.

Esta segunda disposição, de fundamental importância para a implementação efetiva dos direitos e garantias fundamentais em nosso ordenamento, demonstra o crescimento da importância do Direito Internacional em matéria de direitos e garantias fundamentais na nova ordem constitucional.

A conformidade dos ordenamentos constitucionais e infraconstitucionais dos Estados às normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são uma tendência na atualidade. [148]

Com efeito, a Constituição de República Italiana, de 1947, determina, em seu artigo 10:

Articolo 10. L’ordinamento giuridico italiano si conforma alle norme dell diritto internazionale generalmente riconosciute. [149]

Assim, vê-se que o ordenamento jurídico da península reconhece a cogência das normas do Jus Gentium, determinando a Constituição de 1947 a sua observância, inclusive pelo legislador ordinário.

Sobre o tema, dispõe o Artigo 55 da Constituição da República Francesa:

Article 55. Les traités ou accords regulièrement ratifiés ou approuvés ont, dès leur publication, une autorité supérieure à celle des lois, sous réserve, pour chaque accord ou traité, de son aplication par l’autre partie. [150]

Em primeiro lugar, deve-se observar que a Constituição francesa de 1958 determina a vigência da norma internacional a partir de sua publicação.

Merecedor de destaque, ainda, o fato de que a Constituição da República Francesa confere à norma internacional, expressamente, através do artigo retro-transcrito, status hierárquico superior àquele da norma interna, tema este que será desenvolvido no tópico subseqüente, mas para o qual desde logo convém chamar a atenção.

Os instrumentos internacionais em geral, entram em vigor de conformidade com o critério que for determinado no próprio texto [151], sendo diversas as possibilidades e técnicas conhecidas pelo direito internacional [152], devendo ser observadas, ainda, para sua vigência no plano interno de cada Estado-parte, as disposições constitucionais deste acerca da matéria, no que se refere à ratificação e aprovação e outros processos de integração da norma internacional ao ordenamento jurídico nacional.

Pela disposição contida no parágrafo primeiro do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Esta aplicabilidade imediata, constitucionalmente consagrada, aplica-se aos tratados internacionais que versem sobre direitos e garantias fundamentais, por força da norma de extensão contida no parágrafo 2º do citado dispositivo constitucional.

Segundo doutrina do eminente constitucionalista ALEXANDRE DE MORAES, ao comentar o parágrafo primeiro do art. 5º da Carta Magna:

Em regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia e aplicabilidade imediata. A própria Constituição Federal, em uma norma-síntese, determina tal fato dizendo que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. As exceções ficarão por conta de expressa previsão constitucional. [153]

Pode-se afirmar que a Constituição Federal, ao dispensar a adoção de medidas legislativas internas para implementar o disposto em instrumentos internacionais que versem sobre direitos e garantias fundamentais, conferindo-lhes aplicabilidade imediata, adotou, no particular, a teoria monista, com prevalência das normas internacionais sobre as normas ordinárias internas. [154]

É de longa data o debate entre as teorias monista e dualista, no que se refere à vigência e eficácia das normas de Direito Internacional.

Caracteriza-se o monismo como a posição doutrinária que encara a ordem jurídica interna e a internacional como única, razão pela qual ficam dispensadas medidas legislativas internas para a aplicabilidade das disposições constantes de instrumentos internacionais.

Já o dualismo consubstancia-se na adoção do entendimento de que existem duas ordens jurídicas distintas, a interna e a internacional, razão pela qual entende-se indispensável a adoção de medidas legislativas para que direitos consubstanciados em instrumentos internacionais sejam exigíveis e aplicáveis no plano interno.

Ensina ADHERBAL MEIRA MATTOS, referindo-se à corrente dualista:

A teoria dualista parte do princípio de que existem duas ordens jurídicas separadas, autônomas e independentes. O Direito Interno e o Direito Internacional são dois sistemas jurídicos distintos. Daí haver uma dualidade normativa. Entre seus defensores estão Triepel, Oppenheim e Anzilotti. [155][156]

Quanto à corrente oposta, o insigne mestre afirma que "a teoria monista, por sua vez, admite a existência de apenas uma ordem jurídica coordenada, i.e., de uma unidade normativa." (MEIRA MATTOS, 1996, p. 47).

Dentre os doutrinadores que defenderam o monismo, conforme o referido autor, destaca-se Hans Kelsen.

GUIDO FERNANDO SILVA SOARES, quanto a primeira corrente, observa que a mesma se encontra impregnada de um forte componente nacionalista e baseada num conceito de soberania nacional incontrastável, sendo inconciliável mesmo com a responsabilidade internacional dos Estados por inadimplência de obrigações originárias em tratados ou costumes internacionais. [157]

Observa ainda o referido mestre:

Na verdade, nos dias correntes, há uma regra escrita, no art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, que é igualmente costume internacional, e que se encontra ancorada em farta jurisprudência internacional, de que "uma parte (leia-se: um Estado parte da Convenção de Viena do Direito dos Tratados) não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o descumprimento de um tratado". [158]

Ora, tal disposição da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, deixa clara a desnecessidade da adoção de medidas de direito interno para implementar direitos e obrigações oriundos de instrumentos internacionais regularmente ratificados, dada a inoponibilidade das disposições de direito interno quanto ao descumprimento da norma.

GUIDO FERNANDO SILVA SOARES refere-se a outros posicionamentos doutrinários que buscaram superar a oposição dualismo-monismo, como o do norte-americano Richard Falk, que refere-se à preponderância de relações de subordinação nos ordenamentos jurídicos internos e a uma preponderância de relações de coordenação no ordenamento jurídico internacional. [159]

De modo geral, a doutrina pátria entende ter o Brasil adotado um sistema monista, mas com prevalência da norma interna sobre a internacional. [160]

O fato é que, com relação às normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, a discussão perde um pouco de sua importância, diante do disposto no parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição, que confere aplicabilidade imediata às mesmas, o que significa que estas independem de qualquer medida legislativa interna do Estado para serem aplicáveis e exigíveis no plano jurídico do mesmo. [161]

Note-se que tal previsão encontra assento constitucional, de modo que hoje pode até mesmo ser defensável o debate entre as correntes dualista e monista no que se refere a instrumentos internacionais em geral, exceto naquilo que diz respeito aos instrumentos internacionais que consubstanciem direitos e garantias fundamentais, diante do disposto no § 1º do Art. 5º da Carta Magna.

É o magistério de FLÁVIA PIOVESAN neste sentido:

No capítulo anterior, apontou-se para o inédito princípio da aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais, assegurado pelo art. 5º, parágrafo 1º, da Constituição de 1988. Ora, se as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais demandam aplicação imediata e se, por sua vez, os tratados internacionais de direitos humanos tem por objeto justamente a definição de direitos e garantias, conclui-se que estas normas merecem aplicação imediata. [162]

A regra de extensão do parágrafo 2º do art. 5º, da CF, que assegura a observância a outros direitos e garantias fundamentais, faz com que a regra de aplicabilidade imediata, contida no parágrafo 1º do mesmo artigo, se aplique também aos instrumentos internacionais que versem sobre a referida matéria.

Já se defendeu que a vinculação oriunda da celebração de um tratado ou convenção internacional obrigaria os Estados-partes deste instrumento, mas não geraria direitos para os particulares antes da adoção de medidas legislativas para implementá-los (entendimento de caráter eminentemente dualista), o que, face aos dispositivos constitucionais examinados, não é mais defensável em matéria de instrumentos que consubstanciem direitos e garantias fundamentais.

É, mais uma vez, a insigne FLÁVIA PIOVESAN que ensina:

Em outras palavras, não será mais possível a sustentação da tese de que com a ratificação os tratados obrigam diretamente os Estados, mas não geram direitos subjetivos para os particulares, enquanto não advier a referida intermediação legislativa. Vale dizer, torna-se possível a invocação imediata dos tratados e convenções de direitos humanos, dos quais o Brasil seja signatário, sem a necessidade de edição de ato com força de lei, voltado à outorga de vigência interna aos acordos internacionais. (sem destaques no original). [163]

Não é outro o entendimento esposado por FERNANDO LUIZ XIMENES ROCHA, citado por ALEXANDRE DE MORAES:

Posição feliz a do nosso constituinte de 1988, ao consagrar que os direitos garantidos nos tratados de direitos humanos em que a República Federativa do Brasil é parte recebe tratamento especial, inserindo-se no elenco dos direitos constitucionais fundamentais, tendo aplicação imediata no âmbito interno, a teor do disposto nos §§ 1º e 2º do art 5º da Constituição Federal. [164]

Apenas para reforçar a tese ora esposada, menciona-se a autoridade da doutrina de ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE, citado por FLÁVIA PIOVESAN (Op. Cit., p. 94/95):

Se para os tratados internacionais em geral, se tem exigido a intermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar as suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, distintamente no caso dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é parte, os direitos fundamentais neles garantidos, consoante os arts. 5º (2) e 5º (1) da Constituição brasileira de 1988, passam a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano do ordenamento jurídico interno.

É fácil perceber que esta entrada em vigor imediata das normas internacionais no plano interno geram importantes conseqüências, dentre as quais aquela que confere ao particular a faculdade de exigir, de imediato, a implementação de suas disposições.

Mas conseqüência não menos importante é a revogação imediata de toda e qualquer norma anterior que conflite com as disposições do tratado, no particular.

Fala-se em revogação tendo-se em vista que a maioria da doutrina e da jurisprudência confere à norma internacional posição hierárquica equivalente à da lei ordinária.

Para aqueles que atribuem natureza constitucional aos tratados internacionais em matéria de direitos e garantias fundamentais (conforme ver-se-á no item sucessivo) [165], seria de rigor referir-se à não-recepção da norma preexistente incompatível com as disposições convencionais.

Recorre-se ainda uma vez ao magistério de FLÁVIA PIOVESAN:

A incorporação automática do Direito Internacional dos Direitos Humanos pelo Direito brasileiro – sem que se faça necessário ato jurídico complementar para a sua exigibilidade e implementação – traduz relevantes conseqüências no plano jurídico. De um lado, permite ao particular a invocação direta dos direitos e liberdades internacionalmente assegurados e, de outro, proíbe condutas e atos violadores a estes mesmos direitos, sob pena de invalidação. Conseqüentemente, a partir da entrada em vigor do tratado internacional, toda norma preexistente que seja com ele incompatível perde automaticamente a vigência. (destaques ausentes no original). [166]

Assim, dispositivos de lei federal incompatíveis com a norma internacional, a partir da vigência desta, perdem sua eficácia, pelo fenômeno da revogação ou não-recepção. E, em se tratando de normas internas que conflitem com normas internacionais em matéria de direitos e garantias fundamentais, tal revogação ou não-recepção é imediata e automática, diante do disposto no parágrafo primeiro do artigo 5º da Constituição da República.

Não é outro o entendimento de AGUSTIN GORDILLO, citado por FLÁVIA PIOVESAN:

Em matéria de direitos humanos em geral temos uma ordem jurídica supra-nacional e supra-constitucional a cumprir, operativa, direta e imediatamente aplicável também ao ordenamento interno, por juízes e demais órgãos nacionais do Estado. (...) Como conseqüência da aplicação direta da Convenção (Americana), toda norma contrária pré-existente – seja legal ou regulamentadora – perde automaticamente a vigência, a partir da entrada em vigor da Convenção, na medida em que a respectiva cláusula pode ser interpretada como operativa. [167]

Diante da existência de uma cláusula geral de recepção automática plena, na expressão de FLÁVIA PIOVESAN, consubstanciada no § 1º do artigo 5º da Constituição de 1988, aquelas normas de direito interno conflitantes, seja com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações Unidas, seja com a Convenção Americana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, ambos ratificados pela República Federativa do Brasil em 1992, perderam a validade, por inconstitucionais, uma vez que a Carta de 1988 confere grau hierárquico de norma constitucional aos mesmos, conforme se verá no item seguinte. [168]

Ainda que assim não se entendesse, ou seja, ainda que se defenda a paridade entre normas internacionais e normas internas, tema que será desenvolvido no item subseqüente, é evidente que teriam sido revogadas a partir da ratificação dos referidos instrumentos internacionais.

Como visto, pode-se afirmar, em ligeira síntese, que os tratados internacionais em matéria de direitos e garantias fundamentais independem de intermediação legislativa, produzindo efeitos de imediato, dentre os quais destacam-se a imediata exigibilidade de suas disposições, pelo particular, e a revogação da legislação anterior que com eles seja incompatível.

Passar-se-á, no item subseqüente, à análise da questão da hierarquia das normas internacionais, vale dizer, da prevalência no conflito entre estas e as normas internas.

5.2. Da hierarquia dos instrumentos internacionais em matéria de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro.

Outro aspecto relevante acerca das normas de direito internacional, para uma adequada compreensão do tema, é hierarquia que passam a ocupar, após a integração no plano do direito interno, que se opera, conforme preconizado pela Carta Constitucional, pela aprovação por decreto legislativo do Congresso Nacional e promulgação por decreto presidencial.

Muito se discutiu acerca do status hierárquico que ocuparia a norma internacional no plano interno, haja vista a omissão da Constituição, anteriormente à EC nº 45/04, a respeito. GUIDO FERNANDO SILVA SOARES aborda o problema, ensinando que

desde a primeira Constituição do país, a Constituição do Império do Brasil de 1824, e todas as Constituições republicanas, de 1891, 1924, 1937, 1946, 1967, a Emenda Constitucional de 1969, inclusive a atual Constituição de 1988, silenciam a respeito do posicionamento hierárquico entre, de um lado, as normas internas, constitucionais ou infraconstitucionais, e de outro, o costume internacional e, sobremaneira, os tratados e convenções internacionais. [169]

Como visto, até o advento da Emenda Constitucional nº 45, de 08.12.2004, inexistia, na história constitucional pátria, disposição expressa que determine a posição ocupada pela norma internacional após sua integração ao ordenamento interno. Tal lacuna, como não poderia deixar de ser, tem proporcionou o surgimento de divergência doutrinária.

A doutrina majoritária historicamente se inclina, no particular, para a solução que identifica o status da norma internacional com aquele ocupado pela legislação ordinária infraconstitucional, pura e simplesmente.

Quanto ao tema, a jurisprudência dominante, inclusive a do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, também tem entendido que o tratado internacional ocupa a mesma posição hierárquica da lei ordinária federal, vale dizer, inferior à Constituição. [170]

ADHERBAL MEIRA MATTOS, abordando o problema da questão do primado no conflito das normas internas e internacionais, assevera:

A corrente constitucionalista aceita o primado do Direito Interno. A Constituição seria a lei máxima, sendo o Direito Internacional uma conseqüência (efeito) da legislação interna dos Estados. Foi defendida pelos clássicos, em geral, e contra ela se disse que visava apenas à população de determinado Estado (e não à Humanidade, como um todo), além de alimentar o imperialismo (o que colidiria com o pacifismo). [171]

Esta tem sido a orientação seguida majoritariamente pelos juristas brasileiros, entendendo que a Constituição Federal é a lei máxima do país, fundada na soberania nacional e, portanto, insuscetível de limitações por normas de cunho internacional. O mesmo jurista, referindo-se à corrente oposta, afirma:

Já a corrente internacionalista aceita o primado do Direito Internacional. A convenção (tratado) seria a lei máxima, sendo o Direito Internacional causa (e não efeito) da legislação interna dos Estados. Foi defendida, como vimos, por Kelsen e Mirkine Guétzévitch e a seu favor se afirmou que visava a toda a Humanidade (e não apenas à população de determinado Estado), favorecendo, em conseqüência, o pacifismo (ao invés do imperialismo). [172]

ADHERBAL MEIRA MATTOS ensina, ainda, que, "doutrinariamente, em nosso país, o tratado tanto foi aceito a nível de lei ordinária (Clóvis Beviláqua, Carlos Maximiliano), como a nível superior à simples lei ordinária (Raul Pederneiras, Faro Jr.)"(MEIRA MATTOS, 1996, pp. 50/51). Mas hoje é forçoso concluir, diante da doutrina e jurisprudência dominantes, que o entendimento nitidamente prevalente é o primeiro.

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No entanto, afigura-se importante ter em mente o que ensina o eminente GUIDO FERNANDO SILVA SOARES, referindo-se às relações entre o Direito Internacional Público e os demais ramos do direito:

Enfim, o próprio Direito Constitucional, o mais nacionalista de todos os ramos da Ciência Jurídica, tem sido invadido pela globalização e tem uma relevante vertente internacional, bastando para tanto apenas considerar a importância do capítulo constitucional de proteção dos direitos humanos e das garantias fundamentais, dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. [173]

Assim vê-se uma interpenetração e o desenvolvimento de uma íntima relação entre o Direito Constitucional e o Direito Internacional, conforme aponta uma doutrina respeitável, (Antônio Augusto Cançado Trindade, Flávia Piovesan e outros), sendo que, não raramente, o segundo influencia marcantemente o primeiro, de modo que tais posicionamentos merecem uma reavaliação. [174]

As bases da interpretação feita pela doutrina majoritária e pela jurisprudência dominante quanto ao posicionamento hierárquico das normas internacionais no ordenamento interno encontram-se, fundamentalmente, no disposto nos artigos 102, inciso III, alínea "b" [175] e 105, inciso III, alínea "a" [176], ambos da Constituição da República de 1988.

Como se vê, o primeiro dispositivo constitucional permite o acesso ao Supremo Tribunal Federal, por intermédio do Recurso Extraordinário, quando a decisão proferida declarar a inconstitucionalidade de lei federal ou tratado, equiparando-os para tanto. [177]

O segundo dispositivo abre a via do Recurso Especial para o Superior Tribunal de Justiça quando a decisão atacada ferir lei federal ou tratado internacional, novamente equiparando-os.

Com efeito, esta interpretação sistemática da Constituição da República demonstra-se razoável e adequada. Não obstante, a questão exige uma análise mais meticulosa e detida, pois o tema pode ser mais complexo do que parece.

O ilustre internacionalista ADHERBAL MEIRA MATTOS recorda que:

A Convenção de Viena enfatiza, na observância de tratados, a regra pacta sunt servanda: "todo tratado em vigor obriga as partes, e deve ser cumprido por elas de boa fé" (art. 26). Não pode, inclusive, uma parte contratante, invocar disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado (art 27), a não ser que se trate de uma regra interna de importância fundamental (art. 46, 1). [178][179]

Nestes termos, poder-se-ia até mesmo entender por uma superioridade hierárquica das normas internacionais inclusive às normas de ordem constitucional, nos moldes que o faz a doutrina internacionalista.

Passando ao largo das discussões que se travam em torno do conflito entre o exercício da soberania nacional e as obrigações instituídas por instrumentos internacionais, de todo modo, é importante observar o que determina a Constituição da República Federativa do Brasil em seu artigo 5º e parágrafos:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

§ 1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. (sem destaques no original). [180]

Há, na doutrina, entendimento no sentido de que a disposição do parágrafo 2º supra, ao determinar a inclusão dos direitos e garantias constantes de tratados internacionais em que o Brasil seja parte, alçou tais normas ao patamar de normas constitucionais.

Neste sentido é o magistério de FLÁVIA PIOVESAN, in verbis:

Ora, ao prescrever que "os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais", a contrariu sensu, a Carta de 1988 está a incluir, no catálogo de direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja arte. Este processo de inclusão implica na incorporação pelo texto constitucional destes direitos. [181]

Ou seja, na ótica da referida jurista, o fato do parágrafo 2º do artigo 5º da Carta de 1988, incluir no rol de direitos e garantias fundamentais aqueles porventura previstos em instrumentos internacionais, tem a clara conseqüência de conferir a estes um status diferenciado da lei ordinária, vale dizer, um status constitucional. [182]

É ainda FLÁVIA PIOVESAN que ensina:

Ao efetuar tal incorporação, a Carta está a atribuir aos direitos internacionais uma hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a hierarquia de norma constitucional. Os direitos enunciados nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte integram, portanto, o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. [183]

Deste modo, é lícito entender que, assim como possuem uma disciplina jurídica diversa no que diz respeito à sua aplicabilidade e exigibilidade no plano interno, como visto no item precedente, os tratados internacionais que versem sobre direitos e garantias fundamentais tem, no particular, um posicionamento hierárquico próprio e diferenciado dos demais. [184]

Estão tais normas equiparadas a normas constitucionais instituidoras de direitos e garantias fundamentais, sendo conseqüência lógica de tal pensamento entender constituírem cláusulas pétreas, a teor do disposto no § 4º do artigo 60 da Carta Magna. Neste sentido é o magistério de FLÁVIA PIOVESAN:

Ressalte-se ainda que os direitos constantes nos tratados internacionais, como os demais direitos e garantias individuais consagrados pela Constituição, constituem cláusula pétrea e não podem ser abolidos por meio de emenda à Constituição, nos termos do art. 60, parágrafo 4º, da Constituição. Atente-se que as cláusulas pétreas resguardam o núcleo material da Constituição, que compõe os valores fundamentais da ordem constitucional. (...) Os direitos enunciados em tratados internacionais em que o Brasil seja parte ficam resguardados pela cláusula pétrea "direitos e garantias individuais", prevista no art. 60, parágrafo 4º, inciso IV da Carta. [185][186]

É importante observar os interessantes argumentos levantados pela eminente jurista em defesa de referido entendimento. Com efeito, afirma que

Em favor da natureza constitucional dos direitos enunciados em tratados internacionais, um outro argumento se acrescenta: a natureza materialmente constitucional dos direitos fundamentais. Este reconhecimento se faz explícito na Carta de 1988, ao invocar a previsão do art. 5º, parágrafo 2º. Vale dizer, se não se tratasse de matéria constitucional, ficaria sem sentido tal previsão. [187]

Citando a referida autora a lição de J. J. GOMES CANOTILHO, que assevera "registre-se, porém, que, historicamente (na experiência constitucional), foram consideradas matérias constitucionais, ‘par excellence’, a organização do poder político (informada pelo princípio da divisão dos poderes) e o catálogo dos direitos, liberdades e garantias." (PIOVESAN, 1990, p. 76).

Com efeito, os direitos e garantias fundamentais ligam-se, umbilicalmente, à própria história do constitucionalismo, sendo a doutrina unânime em afirmar que tais matérias são de índole constitucional por excelência, ou seja, são materialmente constitucionais, e não apenas formalmente, como tantas outras tratadas na analítica Carta de 1988.

FLÁVIA PIOVESAN conclui, afirmando que "os direitos internacionais integrariam, assim, o chamado ‘bloco de constitucionalidade’, densificando a regra constitucional positivada no parágrafo 2º, do art. 5º, caracterizada como cláusula constitucional aberta."(PIOVESAN, 2000, pp. 76/77).

De fato, de matéria constitucional se trata, embora tratada fora da Constituição formal. [188] A norma de extensão inscrita no parágrafo 2º do artigo 5º, que elenca o rol de direitos e garantias fundamentais, torna ainda mais inequívoca a natureza constitucional de tais normatizações, por incluí-las, expressamente, no rol de direitos e garantias fundamentais constitucionalmente consagrado.

Parece evidente tal conjunto de fatores demonstrar que, em se tratando de instrumentos internacionais que versem sobre direitos e garantias fundamentais, tais dispositivos, uma vez incorporados ao ordenamento jurídico pátrio, através do procedimento constitucionalmente previsto, adquirem o status de normas constitucionais, devendo todo o ordenamento a eles conformar-se, sob pena de inquinar-se do insanável vício da inconstitucionalidade.

Além disso, os tratados sobre direitos e garantais fundamentais, após a entrada em vigor da Carta constitucional de 1988, passaram a ocupar hierarquia constitucional, como visto.

E, pelas mesmas razões, a legislação anterior porventura com eles incompatível, têm-se necessariamente por não-recepcionada pela nova ordem constitucional. [189]

E indo além, como se disse, uma vez incorporadas tais disposições ao rol dos direitos e garantias fundamentais, encontram-se cobertas pela proteção conferida pelo parágrafo 4º do artigo 60 da Carta Magna, sendo impossível sua denúncia, no particular, haja vista que tal procedimento equivaleria a medida tendente a abolir direitos e garantias fundamentais.

Ora, se nem mesmo através de Emenda Constitucional, através do processo legislativo constitucionalmente consagrado para tanto, seria possível abolir tais direitos, muito menos pela denúncia dos instrumentos internacionais que, na espécie, se mostra inviável.

5.2.1. Reflexos da EC nº 45/04 na hierarquia dos instrumentos internacionais em matéria de direitos humanos. [190]

A publicação, no Diário Oficial da União do último dia 31.12.2004, da Emenda Constitucional nº 45, promulgada no dia 08 do mesmo mês, que consubstancia a tão festejada "reforma do Judiciário", a qual procedeu a profundas alterações em diversos dispositivos constitucionais, afetando reflexamente parte dos fundamentos utilizados no presente trabalho, insta-nos a tecer algumas considerações acerca do tema.

Dentre as inovações procedidas pela Emenda em referência no texto constitucional, chama a atenção o novo parágrafo 3º, inserido pela referida emenda à constituição, cujo teor é o seguinte:

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Em princípio, numa leitura rápida, parecia uma alteração alvissareira, a valorizar os tratados e convenções internacionais sobre a matéria, reforçando tese pela qual, por longo tempo, debateram-se importantes doutrinadores, visando o reconhecimento do status hierárquico de norma constitucional aos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, conforme visto pelos excertos de doutrina colacionados nos capítulos precedentes.

Não obstante, esta impressão logo desapareceu, após breve reflexão acerca das conseqüências de referida alteração, razão pela qual parece oportuno expender os comentários que se seguem.

Como visto precedentemente, no Brasil é dominante o posicionamento que situa as normas internacionais no mesmo plano hierárquico que as normas infraconstitucionais, conferindo, em geral, o mesmo grau hierárquico de lei ordinária às normas internacionais. Isto verifica-se na doutrina e nos pretórios, equiparando-se as normas internacionais à lei ordinária e submetendo ambas à Constituição Federal.

Ocorre que tal entendimento deve ser analisado cum granus salis. Isto porque, conforme já ressaltamos linhas atrás, o constituinte originário, após o extenso rol de direitos e garantias fundamentais, constante do art. 5º da Carta Magnas, estabeleceu, nos parágrafos 1º e 2º do mesmo artigo, que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, bem como os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Numa interpretação sistemática do texto contido nos dois parágrafos supra, da lavra do constituinte originário, repise-se, verifica-se que o § 2º consubstancia uma espécie de cláusula geral aberta de recepção dos tratados internacionais que contenham direitos e garantias fundamentais pela Constituição da República – utilizando-se a expressão de FLÁVIA PIOVESAN [191] -, sendo que tais disposições, por força da norma contida no § 1º, têm aplicação imediata.

Neste sentido, pesam entendimentos de doutrina respeitável, embora minoritária, dentre os quais citam-se, à guisa de exemplo, a própria FLÁVIA PIOVESAN, a autoridade de ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE [192], FERNANDO LUIZ XIMENES ROCHA, de cuja lavra colacionamos interessantes excertos, conforme visto no item precedente.

Assim sendo, o entendimento esposado por esta moderna doutrina vinha se firmando no sentido de entender que vigoram tem dois regimes jurídicos em matéria de instrumentos internacionais no Brasil: o regime jurídico comum dos instrumentos internacionais, para os tratados em geral, cujo status hierárquico é igual ao das leis ordinárias, e o regime jurídico especial e próprio dos tratados em matéria de direitos humanos, cujo status hierárquico é equiparado ao de normas constitucionais, devido às disposições constantes dos parágrafos 1º e 2º do art. 5º da Constituição da República [193].

Pois bem. Após tais considerações, vê-se com clareza que, ao invés de robustecer tal entendimento, que encontra-se em consonância com a efetivação dos direitos e garantias fundamentais, assim como com o Princípio da Primazia da Norma Mais Favorável, vigente no direito humanitário internacional, a alteração introduzida na Carta Magna pela EC nº 45/04, com a inclusão do famigerado § 4º ao art. 5º, nada mais faz do que dificultar e fragilizar a vigência interna das normas internacionais em matéria de direitos e garantias fundamentais.

Isso porque, ao afirmar o referido parágrafo que têm status de emenda à Constituição apenas e tão somente os instrumentos internacionais aprovados em ambas as Casas do Legislativo Federal, por maioria de 3/5, em dois turnos – mesmos requisitos formais do processo legislativo das Emendas à Constituição [194] -, determina, contrariu sensu, que os tratados internacionais que não forem aprovados mediante tal procedimento, mesmo versando sobre direitos humanos, terão o nível hierárquico de mera lei ordinária.

Tal disposição constitui um inegável retrocesso em matéria de proteção e efetivação dos direitos humanos no Brasil. Constituições mais antigas possuem disposições bem menos conservadoras acerca do tema, como, e.g., a Constituição da República Francesa, de 1958, que, em seu art. 55, transcrito anteriormente, confere expressamente nível hierárquico aos tratados e acordos internacionais superior àquele das leis.

Uma vez identificadas as conseqüências concretas da referida alteração na Carta Magna, expender-se-ão alguns comentários sobre sua constitucionalidade.

CONSTITUCIONALIDADE DA EMENDA Nº 45/04.

Como visto, ao contrário de privilegiar os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, a Emenda Constitucional 45 colocou a sua vigência na esfera de conveniência e oportunidade políticas do Poder Legislativo Federal, de modo que pode o Congresso Nacional, doravante, disciplinar conforme seu juízo político a convenência de conferir a hierarquia constitucional às disposições constantes dos referidos instrumentos. Ocorre que tal disposição afigura-se flagrantemente inconstitucional, por duas razões elementares, mas eminentemente sérias, conforme demonstrar-se-á.

A possibilidade de controle da constitucionalidade das emendas à Constituição é pacífica. É mundialmente conhecida a obra Normas Constitucionais Inconstitucionais (Verfassungswidrige Verfassungsnormem), do Alemão OTTO BACHOFF.

Embora, no Brasil, não se tenha chegado ao extremo de admitir a possibilidade de se declarar a inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias [195] – haja vista que à Constituição é dado excepcionar-se a si própria -, é reconhecida, tanto pela doutrina majoritária como pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a possibilidade de controle de constitucionalidade das emendas à Constituição, por encontrar-se o poder constituinte derivado subordinado ao poder constituinte originário, assim como juridicamente limitado pelas cláusulas pétreas, imodificáveis.

Neste sentido, conferir o r. aresto do Supremo Tribunal Federal, in verbis:

O Supremo Tribunal Federal já assentou o entendimento de que é admissível a Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional, quando se alega, na inicial, que esta contraria princípios imutáveis ou as chamadas cláusulas pétreas da Constituição originária. (STF – Pleno – Adin nº 1.946/DF – Medida liminar – Rel. Min. Sydney Sanches. Informativo STF, nº 241).

Assim, é perfeitamente possível a declaração de inconstitucionalidade de emendas à Constituição, desde que suas disposições sejam incompatíveis com disposições oriundas do poder constituinte originário, a saber, as cláusulas pétreas, por imodificáveis. [196]

Como afirmado, tratam-se de dois vícios a inquinar o novel parágrafo 3º do art. 5º de evidente inconstitucionalidade.

Em primeiro lugar, cuida-se de observar que o teor do novo § 3º é visivelmente colidente com o teor dos já transcritos §§ 1º e 2º. Isto porque, enquanto estes incluem, automaticamente, os direitos e garantias constantes de instrumentos internacionais no rol dos direitos e garantias constitucionalmente assegurados, o § 3º pretende limitar tal proteção, condicionando-a à deliberação do Congresso Nacional.

É de bom alvitre recordar-se que os §§ 1º e 2º são, indiscutivelmente, cláusulas pétreas, imodificáveis, a teor do § 4º do art. 60 da Constituição Federal.

Assim sendo, não podem ser os referidos parágrafos sequer modificados pelo § 3º, não restando outra alternativa, seguidas as regras da correta hermenêutica constitucional, senão entender-se pela inconstitucionalidade do novo parágrafo, haja vista a incompatibilidade da disposição normativa nele contida com aquelas contidas dos dispositivos engendrados pelo constituinte originário.

Mas há, ainda, outro vício de inconstitucionalidade a inquinar a referida Emenda Constitucional, no particular, de igual gravidade. É consabida a disposição constante do art. 60, § 4º, da Constituição Federal, que consagra as denominadas "cláusulas pétreas" da Constituição. In verbis:

"§ 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais." (Destaques ausentes no original)

Ora, ao buscar restringir os efeitos de índole constitucional dos tratados e convenções internacionais em matéria de direitos humanos, condicionando-os à deliberação do parlamento, enquadra-se a Emenda, evidentemente, na hipótese consubstanciada no inciso IV do § 4º do art. 60 da Constituição, retro transcrito, por ser emenda constitucional tendente a abolir direitos e garantias fundamentais.

Assim sendo, pretendeu a Emenda Constitucional nº 45 modificar o cerne rijo e imodificável da Carta Magna, usando de um verdadeiro jogo de palavras para abolir direitos e garantias fundamentais, por tentar frustrar a intenção do legislador constitucional originário de assegurar a inclusão automática de tais direitos no rol constitucional.

De se atentar para o fato de que os parágrafos 1º e 2º da Constituição de 1988 constituem, em si mesmos, garantias fundamentais, quais sejam: a garantia da imediata aplicabilidade das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais e a garantia da inclusão automática dos direitos e garantias fundamentais consagrados em instrumentos internacionais no rol constitucionalmente protegido.

Caracteriza-se como emenda tendente a abolir direitos e garantias fundamentais não somente aquela que vise operar a supressão literal de tais direitos e garantias do texto constitucional, mas também aquela que vise dificultar sua incorporação ou exercício, ainda que por meio de jogo de palavras, como no caso presente.

De rigor, não poderia sequer ter tramitado o processo legislativo correspondente, a teor da vedação constitucional [197].

Não obstante tenha prosseguido a proposta até promulgação e publicação, a despeito de tal vício, impõe-se, doravante, a rejeição, pela doutrina e pelos pretórios, da aplicação de suas disposições, dada a flagrante inconstitucionalidade apontada.

De todo modo, de se destacar que, ainda que não sejam reconhecidas pela doutrina e jurisprudência as inconstitucionalidades ora apontadas, somente se afigurará exigível a observância do procedimento trazido pelo novel dispositivo para reconhecer-se a índole constitucional de novos instrumentos internacionais.

Entende-se, neste passo, que ao menos os instrumentos internacionais de direitos humanos ratificados anteriormente à entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45/04 já adquiriram, por força dos parágrafos 1º e 2º do art. 5º da Constituição da República, o status de norma constitucional, encontrando-se incluídos no rol dos direitos constitucionalmente assegurados, sendo intangíveis e imodificáveis, incorporados ao patrimônio jurídico dos sujeitos de direito compreendidos no caput do art. 5º.

É o caso de importantes instrumentos internacionais como, e.g., o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU e a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica -, ambos ratificados pela República Federativa do Brasil em 1992, já citados, cujas disposições, portanto, continuam a vigorar com o mesmo status hierárquico referido no capítulo precedente, de modo que tudo o que foi dito com base em tais instrumentos permanece válido.

Versando tais instrumentos sobre direitos e garantias fundamentais, e tendo sido incluídos no rol constitucional pela cláusula aberta de recepção da Constituição (§§ 1º e 2º do art. 5º), encontram-se protegidos pela disposição do art. 60, § 4º, sendo insuscetíveis de qualquer alteração, mesmo por emenda constitucional [198].

5.3 – Análise de instrumentos internacionais em espécie.

Conforme debatido no item precedente, a EC nº 45/04 não possui idoneidade para alterar o que até aqui foi defendido acerca da vigência e hierarquia das normas constantes de instrumentos internacionais em matéria de direitos humanos, seja por sua inconstitucionalidade, em virtude de ferimento a cláusula pétrea, seja pela integração dos direitos fundamentais constantes de instrumentos internacionais ratificados anteriormente à referida EC ao patrimônio jurídico do cidadão.

A partir deste ponto, fixadas as premissas sobre a vigência e hierarquia das normas internacionais no âmbito interno, partir-se-á à análise dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos em espécie, com vistas a verificar o impacto de tais normatizações no ordenamento interno, fazendo simultaneamente o cotejo no que respeita à compatibilidade do instituto do reexame necessário em matéria penal com tais disposições.

A análise dos instrumentos internacionais em espécie dividir-se-á conforme os dois sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos em que se encontra inserida a República Federativa do Brasil, a saber, o Sistema Global, constituído pelos instrumentos internacionais elaborados e aprovados sob os auspícios da Organização das Nações Unidas – ONU, e o Sistema Regional Interamericano, constituído pelos instrumentos internacionais elaborados e aprovados sob a égide da Organização dos Estados Americanos – OEA.

Por fim, cabe ressaltar que iniciamos a análise de cada um dos sistemas pelas principais declarações internacionais em matéria de direitos humanos correspectivas, haja vista que, embora, pela sua natureza de meras declarações, não possuam força vinculante, servem de instrumentos de interpretação dos demais instrumentos do sistema.

Ademais, ver-se-á que os Pactos que lhes sucedem implementam todas as suas disposições, desta feita com força vinculante e normativa para os Estados-Partes, dentre os quais a República Federativa do Brasil.

5.3.1 – Sistema Global – Organização das Nações Unidas - ONU.

O Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos é composto pelos instrumentos e instituições existentes no âmbito da Organização das Nações Unidas – ONU.

ADHERBAL MEIRA MATTOS, referindo-se aos Pactos da ONU em matéria de Direitos da Pessoa Humana, ensina:

A Declaração Universal de 1948, veio a ser complementada pelos Pactos de Direitos Humanos, de 1967. Um dispõe sobre os direitos civis e políticos. O outro, sobre direitos econômicos, sociais e culturais. Ambos precisavam de 35 ratificações ou adesões para entrarem em vigor, o que só foi alcançado em março de 1976. [199]

Dos pactos que complementam a Declaração de 1948, é o Pacto dos Direitos Civis e Políticos que relaciona-se com o tema em análise, razão pela qual, no âmbito do Sistema Global, serão analisados tão-somente a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

5.3.1.1 – Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos [200], adotada pela Assembléia-Geral da Organização das Nações Unidas é um dos mais conhecidos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos.

Dentre suas disposições, far-se-á uma análise, embora perfunctória, das principais disposições pertinentes com o tema em mesa.

Artigo I – Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.

Consagra a Declaração Universal dos Direitos Humanos, logo em seu artigo 1º o princípio da isonomia entre todas as pessoas, independentemente de discriminações de qualquer natureza.

Artigo III – Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Logo em seu artigo terceiro, consagra a Declaração Universal, dentre outros, o direito à liberdade pessoal, o principal ameaçado em processo de natureza penal na atualidade.

Artigo VII – Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos tem direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

O artigo VII do instrumento em análise reitera a importância da regra a isonomia, condenando quaisquer pretensões discriminatórias.

Note-se, nem mesmo a imputação da prática de um crime deve permitir a distinção na isonomia. Este princípio é informador de todo o sistema protetivo dos direitos humanos da Organização das Nações Unidas.

Artigo X – toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública, por parte de um Tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ela.

Consagra a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, neste artigo X, novamente a isonomia, já referida por duas vezes, assim como a exigência de publicidade processual, com independência e imparcialidade do órgão jurisdicional competente, características de feição nitidamente acusatória, como visto no capítulo próprio.

Artigo XI – 1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a sua culpa tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

Por fim, dentre os dispositivos pertinentes ao exame do tema no instrumento em exame, destaca-se o artigo XI, parágrafo primeiro, que consagra o princípio da presunção de inocência do imputado, assim como a regra do devido processo legal e seus corolários da ampla defesa e contraditório.

5.3.1.2 – Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos [201] possui plena vigência e exigibilidade no ordenamento interno, conforme analisado no tópico pertinente.

Referido instrumento internacional inicia, logo em seu artigo segundo, com uma norma assecuratória de sua própria efetividade face os Estados-partes, ao dispor:

Artigo 2º - 1. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a garantir a todos os indivíduos que se encontram em seu território e que estejam sujeitos à sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.

Assim, vê-se de imediato o dever dos Estados-partes em assegurar aos indivíduos em seus territórios, sem discriminações, os direitos consagrados pelo instrumento, razão pela qual a República Federativa do Brasil e demais estados que ratificaram o Pacto não podem eximir-se, licitamente, de dar-lhe fiel cumprimento.

Artigo 14 – 1. Todas as pessoas são iguais perante os Tribunais e as Cortes de Justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias por um Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil. (...). (sem destaques no original).

Diversos os preceitos normativos a serem destacados do artigo 14 e seu parágrafo primeiro, supra transcritos.

Consagra referida norma convencional, em primeiro lugar, a isonomia em juízo, vedando a existência de regras ou praxes processuais que se traduzam em discriminatórias ou violadoras da regra da igualdade processual.

Consagra ainda a exigência do Juízo natural, o qual esclarece dever ser competente, independente e imparcial, sendo por conseguinte vedadas normas ou práticas que impliquem em redução da independência ou possam caracterizar parcialidade do Poder Judiciário e seus órgãos.

O parágrafo segundo do artigo 14 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos dispõe o quanto segue:

2. Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.

(sem destaques no original).

Vê-se logo no início do parágrafo supra que consagra o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, expressamente, o Princípio da Presunção de Inocência, ilidível somente através do devido processo legal, face a provas firmes e regularmente produzidas, observado o contraditório.

Restam vedadas, portanto, face o Direito Internacional, quaisquer regras ou presunções legais violadoras do referido Princípio, sendo absolutamente inadmissíveis quaisquer presunções de culpabilidade.

Segue o Pacto Internacional, ainda em seu artigo 14:

3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

a) a ser informada, sem demora, em uma língua que compreenda e de forma minuciosa, da natureza e dos motivos da acusação contra ela formulada;

b) a dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa e a comunicar-se com defensor de sua escolha;

c) a ser julgada sem dilações indevidas; (sem destaques no original).

Vê-se neste parágrafo, em primeiro lugar, a reiteração da regra da isonomia, seguida de diversas regras típicas do sistema acusatório e, na alínea "c" do dispositivo, o direito fundamental a um julgamento sem dilações indevidas.

Deste modo, restam proibidas, ainda, por força do Jus Gentium, regras e normas processuais que acarretem protelação indevida na entrega da prestação jurisdicional, haja vista os efeitos funestos do próprio processo sobre a pessoa do imputado.

Do exposto, conclui-se que o instituto do reexame necessário é absolutamente incompatível com as normas cogentes do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações Unidas, haja vista violar, a um só tempo, o seu art. 2º, 1 e o seu art. 14, 1, 2 e 3., a saber: garantia de efetividade dos direitos assegurados pelo Pacto; isonomia processual; independência e imparcialidade jurisdicional; o Princípio da Presunção de Inocência do imputado e brevidade processual.

Parece oportuno enfatizar quanto à natureza de norma constitucional de tais disposições, e imediata exigibilidade, conforme o contido no artigo 5º, §§ 1º e 2º, da Constituição de 1988, nos termos referidos no subtítulo 5.2 retro, a demonstrar a insubsistência do instituto, conforme preconizado pela legislação infraconstitucional pátria.

5.3.2 – Sistema Regional Interamericano – Organização dos Estados Americanos - OEA.

O Sistema Regional Interamericano de proteção dos direitos humanos é composto pelos instrumentos internacionais e instituições existentes no âmbito a Organização dos Estados Americanos – OEA.

Dentro de tal sistema, dois instrumentos internacionais interessam particularmente na análise a que se propõe o presente trabalho: A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, do ano de 1948, e a Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, de 1966.

5.3.2.1 – Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem.

A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, assim como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, data do ano de 1948, e insere-se no Sistema Regional-Interamericano de proteção dos Estados Humanos, tendo sido aprovada no âmbito da Organização dos Estados Americanos. [202]

Dentre as suas disposições merecem destaque, para fins de análise do instituto em mesa, especialmente as seguintes:

Artigo I. Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança de sua pessoa.

O artigo I da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem consagra o direito à liberdade, imediatamente ameaçado pela persecução penal.

"Artigo II. Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm os direitos e deveres consagrados nesta Declaração, sem distinção de raça, língua, crença ou qualquer outra.

O artigo II da Declaração Americana contempla a regra da Isonomia legal, conferindo a todas as pessoas, indistintamente, os direitos e deveres nela inscritos.

Artigo XVIII. Toda pessoa pode recorrer aos tribunais para fazer respeitar os seus direitos. Deve poder contar, outrossim, com processo simples e breve, mediante o qual a justiça a proteja contra atos de autoridade que violem, em seu prejuízo, qualquer dos direitos fundamentais consagrados constitucionalmente.

O artigo XVIII da Declaração consagra, dentre outros princípios, aquele da brevidade processual, o qual encontra guarida, com força vinculante, no artigo 8º, 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos, conforme ver-se-á no item subseqüente.

Artigo XXV. Ninguém pode ser privado da sua liberdade, a não ser nos casos previstos pelas leis e segundo as praxes estabelecidas pelas leis já existentes.

Consagra este artigo XXV o princípio do due process of law, referindo-se especificamente à observância estrita do mesmo como garantia do direito fundamental à liberdade.

O princípio da Presunção de Inocência, informador do Jus Gentium, encontra referência expressa no artigo XXVI da Declaração, cujo teor transcreve-se:

Artigo XXVI. Parte-se do princípio de que todo acusado é inocente, até provar-se-lhe a culpabilidade.

Toda pessoa acusada de um delito tem o direito de ser ouvida em uma forma imparcial e pública, de ser julgada por tribunais já estabelecidos de acordo com leis preexistentes, e de que não se lhe inflijam penas cruéis, infamantes ou inusitadas.

O mesmo dispositivo convencional consagra, além de outros, o princípio da imparcialidade da jurisdição, de forma análoga ao disposto no artigo X da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Enfatizamos que, embora, por sua natureza de declaração, este instrumento não seja juridicamente vinculante para os Estados-partes, por sua adoção pela Organização dos Estados Americanos funciona como diploma informador dos princípios interpretativos e informativos do Jus Gentium, além dos princípios referenciados encontrarem-se repetidos em tratados e convenções internacionais, de modo a vincularem os signatários de referidos instrumentos.

5.3.2.2 – Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de São José da Costa Rica.

A Convenção Americana de Direitos Humanos [203], também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, local de realização da Conferência que culminou em sua aprovação, é tida como um dos mais importantes, senão o mais importante dos instrumentos de proteção dos Direitos Humanos no âmbito do Sistema Regional Interamericano.

Aprovada sob os auspícios da Organização dos Estados Americanos – OEA, dispõe, em sua parte primeira, que trata dos "Deveres dos Estados e Direitos Protegidos", e em seu Capítulo I, que trata da "Enumeração dos Deveres":

Artigo 1º - Obrigação de respeitar os direitos

1. Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano. (destaques ausentes no original).

A primeira obrigação emergente da disposição em comento é justamente o dever dos Estados-partes na Convenção Americana de Direitos Humanos de respeitar os direitos e liberdades nela consagrados, garantindo, ademais, sua efetividade, vedada a adoção de critérios discriminatórios para restringir sua incidência.

Esta norma, de importante caráter assecuratório da efetividade do referido instrumento internacional, é análoga àquela contida no artigo 2º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, no âmbito do Sistema Global, já analisado em item precedente.

Assim, nenhum Estado-parte que tenha ratificado o Pacto de São José da Costa Rica poderá, sob nenhum pretexto, restringir ou violar os direitos nele consagrados.

Na mesma linha salutar de busca de efetividade às disposições convencionais, insere-se o artigo 2º do instrumento internacional em exame, cujo teor segue transcrito:

Artigo 2º - Dever de adotar disposições de direito interno

Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1º ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.

Do teor do artigo 2º da Convenção emerge outro dever de garantia de sua efetividade para os Estados que o ratificarem, a saber, aquele de adotar inclusive as providências de ordem legislativa que se façam necessárias para dar plena vazão e garantir integral observância aos seus preceitos.

Dos dois dispositivos convencionais retro-transcritos depreende-se nitidamente não poder o Estado-parte eximir-se de cumprir as disposições convencionais, abstendo-se de condutas violatórias destes mesmos direitos, assim como adotando as medidas necessárias à sua adequada implementação, inclusive aquelas de natureza legislativa que porventura se façam necessárias.

De outra parte, diga-se por oportuno, o dever de adotar medidas legislativas compreende não apenas as medidas no sentido de implementar os direitos reconhecidos pelo instrumento na ordem jurídica interna do país, como também o dever de proceder à revogação da legislação com eles eventualmente incompatíveis.

Na seqüência do instrumento internacional, trata o artigo 8º das garantias judiciais, fazendo-o nos seguintes termos:

Artigo 8º - Garantias judiciais

1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente provada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

[...] (sem destaques no original).

O Pacto de São José da Costa Rica assegura, no seu artigo 8º, em primeiro lugar, o devido processo legal, assim como o direito subjetivo do jurisdicionado à brevidade processual, não devendo o processo alongar-se indefinidamente.

Vedadas, portanto, pela norma convencional supracitada, quaisquer dilações imotivadas no processo judicial instaurado com vistas a apurar a responsabilidade penal.

Em seguida assegura outras normas típicas do sistema acusatório, notadamente a independência e imparcialidade do órgão jurisdicional competente para a causa, vedando disposições que quebrem ou comprometam tal independência e imparcialidade.

O parágrafo segundo do artigo transcrito consagra, por sua vez, o Princípio da Presunção da Inocência, assim como a regra da isonomia em Juízo, par conditio, também conhecida como paridade de armas.

Pelo referido parágrafo encontram-se definitivamente vedadas, a exemplo do que foi dito quando se tratou do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU, quaisquer presunções em prejuízo do imputado.

O mesmo se verifica em relação a normas que estabeleçam algum tipo de disparidade entre as partes, seja constituindo privilégio ou o contrário.

A regra a isonomia legal encontra-se expressamente assegurada no artigo 24 do Pacto, que dispõe:

Artigo 24 – Igualdade perante a lei

Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação alguma, à igual proteção da lei. (destaques ausentes no original).

Logo, nem mesmo o legislador poderá adotar diplomas que impliquem em tratamento discriminatório ou diferenciado, restando incompatíveis com o Direito Internacional Público todos e quaisquer diplomas legais que impliquem em quebra ou comprometimento do Princípio da Isonomia.

Do todo exposto depreende-se, com clareza, ferir o instituto do reexame necessário frontalmente as disposições do Pacto de São José da Costa Rica, notadamente aquelas inscritas no artigo 1º, 1; artigo 2º; artigo 8º, 1 e 2 e artigo 24, a saber: respeito e garantia de efetividade de suas disposições; adoção das medidas legislativas necessárias; devido processo legal, brevidade processual e independência e imparcialidade dos órgãos jurisdicionais; presunção de inocência e respeito à plena isonomia processual; assim como isonomia legal.

Em razão do status de norma constitucional conferido aos instrumentos internacionais em matéria de direitos humanos pela Carta Magna [204], assim como sua vigência imediata, resta evidenciada a absoluta inconstitucionalidade do instituto do reexame necessário com os direitos e garantias fundamentais oriundos da Convenção Americana de Direitos Humanos.

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Sobre o autor
Luis Fernando Sgarbossa

Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor do Mestrado em Direito da UFMS. Professor da Graduação em Direito da UFMS/CPTL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SGARBOSSA, Luis Fernando. Do reexame necessário em matéria penal no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1058, 25 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8410. Acesso em: 25 abr. 2024.

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