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Do reexame necessário em matéria penal no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo

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25/05/2006 às 00:00
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6. CONCLUSÃO.

Após os duros anos de ditadura militar, o longo e dificultoso processo de redemocratização culmina com a Promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 05.10.1988, em substituição à Carta de 1969 (Emenda Constitucional nº 01/69), outorgada pelo Governo militar.

O texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, conhecida como "constituição cidadã", mostra-se avançado e minucioso, analítico, corrigindo inúmeras distorções históricas na condução política do país, assim como ampliando o rol de direitos e garantias fundamentais, além de conferir inúmeras medidas judiciais de proteção de tais direitos, e alargar o âmbito de atuação das instituições democráticas.

Nesse contexto, o rol do art. 5º da Constituição, elenca direitos e garantias fundamentais que são o ápice da normatividade constitucional, insuscetíveis se modificação, constituindo uma das denominadas cláusulas pétreas, preconizadas pelo art. 60 § 4º da Carta Magna. [205]

Neste passo, reafirma-se que a EC nº 45/04 não atingiu seu escopo de enfraquecer a proteção conferida aos direitos humanos pelo texto constitucional original, seja à vista da inconstitucionalidade da Emenda, anteriormente apontada, seja pelo fenômeno do direito adquirido.

Dentre tais direitos destacam-se o direito à liberdade, à igualdade, à integridade física, à propriedade, dentre inúmeros outros.

Um processo penal com opção clara pelo sistema acusatório é preconizado pela Constituição, diante da adoção expressa e conjugada de seus princípios e regras característicos, notadamente presunção de inocência, publicidade, paridade de armas, ampla defesa, contraditório, devido processo legal, separação das funções de acusar, defender e julgar entre órgãos distintos, dentre outros.

Além disso, encontram-se consagrados na Carta Constitucional, como valores referenciais da nova ordem constitucionais, princípios como o dignidade da pessoa humana, constante do art. 1°, III, da Carta Magna e o da Prevalência dos Direitos Humanos, constante do art. 4º, inciso II, dentre inúmeros outros.

Quanto ao alargamento das atribuições de determinadas instituições da República, é notável a modificação do status constitucional do Ministério Público, o qual deixa de ser representante do Governo Federal em Juízo, passando a ser-lhe vedada a representação judicial ou a consultoria a entidades públicas (art. 129, IX), assim como o exercício de atividade político-partidária (art. 128, II, "e") e da advocacia (art. 128, II, "b").

Por outro lado, a instituição é erigida à condição de guardiã de legalidade, da probidade administrativa e do patrimônio público, a fiscal da lei, dentre outras (art. 129, II, III, V, entre outros), sendo-lhe conferidos diversos instrumentos judiciais e extrajudiciais com vistas à consecução de suas finalidades, como, v.g., a Ação Civil Pública (art. 129, III, Lei nº 7.347/85).

Dentre as atribuições precípuas do Ministério Público na Carta Constitucional de 1988, encontra-se a promoção da Ação Penal Pública e a atuação como fiscal da lei, ou custus legis, nas causas elencadas em lei (art. 129, I).

Assim, após a Constituição Federal de 1988, o Ministério Público deixa de ser um braço do Poder Executivo, passando a contar com autonomia e independência institucionais (art. 127, § 1º), sendo enquadrado fora da clássica tripartição liberal dos Poderes.

Os seus membros, com vistas ao fortalecimento institucional, passam a gozar de importantes garantias, como aquelas dos magistrados, notadamente vitaliciedade e inamovibilidade (art. 128, § 5º, alíneas "a", "b" e "c"), além de, em virtude do relevante múnus público que desempenha, contar com inúmeros privilégios processuais (intimação pessoal, prazos privilegiados, etc).

Diante disso, resta claro e expresso, tanto em texto constitucional, como em legislação complementar (Lei Complementar nº 75/93 e Lei nº 8.625/90), ser o parquet, mais do que nunca, fiscal da lei, sendo uma de suas funções precípuas a promoção da ação penal pública, assim como velar pela sua indisponibilidade.

Do exposto resta resumir que, em nosso sentir, o fundamento do banimento do reexame necessário em matéria penal do ordenamento jurídico brasileiro repousa não somente no art. 129, I, da CF, como defenderam, em princípio, aqueles que entenderam pela não-recepção do mesmo pela nova ordem constitucional (entendimento este que, por isolado em si mesmo, em certa medida, causou o insucesso da tese), mas da conjugação de uma série de dispositivos constitucionais, convencionais e legais, interpretados em seu conjunto, de forma sistemática e teleológica, e de conformidade com os Princípios do moderno processo penal brasileiro, trazidos pela Carta Política de 1988.

Com efeito, a simples tese de que, sendo o recurso uma continuidade do exercício da ação penal, a qual passa a ser privativa do parquet, sucumbe facilmente ante a demonstração de que, tecnicamente, o reexame necessário não é recurso, como visto.

Assim nos parece que este fundamento, isoladamente, não é suficiente para concluir pela não-recepção do reexame na nova ordem constitucional. No entanto, isto não significa que a tese não mereça atenção.

Isto porque, a despeito de não enquadrar-se no conceito técnico de recurso, cunhado pela doutrina, o fato é que o instituto, seja qual for a natureza jurídica que se lhe atribua, possui dois dos principais efeitos do recurso em sentido próprio, a saber: o impedimento da preclusão e, conseqüentemente, da formação da coisa julgada, bem como a possibilidade de modificação da decisão a ele submetida.

Diante de tais peculiaridades, é evidente que, embora não preencha o instituto todos os requisitos apontados pela doutrina para revelar-se como recurso, no sentido técnico da palavra, com os recursos propriamente ditos guarda grande similitude (não sendo outro o motivo do nome "recurso de ofício", utilizado pela doutrina, de modo geral, e pela própria legislação).

Esta similitude demonstra existir, em relação ao instituto do reexame necessário, a mesma correlação existente entre as condições e pressupostos dos recursos no sentido próprio e as condições e pressupostos da ação, conforme já examinado.

Assim sendo, a natureza anômala do instituto salta aos olhos pela incongruência entre este e aquelas condições e pressupostos, notadamente aqueles da legitimidade e do interesse (de agir e recursais, por análogos).

Sendo a legitimidade e o interesse condições da ação e, por conseqüência, condições recursais, e estabelecendo o artigo 129, I, da Constituição Federal, ser atribuição privativa do Ministério Público a promoção da ação penal pública, resta evidenciado não constituir o reexame recurso propriamente dito.

Diante disso, a maior objeção ao reexame necessário, nesta esteira de pensamento, não é a ausência de legitimidade e interesse recursais, e sim a usurpação de funções do Ministério Público em face pelo Poder Judiciário que o instituto acarreta. Neste sentido, fere o reexame, irremediavelmente, o preconizado pelo artigo 129, inciso I, da Norma Ápice.

Mas não é somente este, como dito, o fundamento a demonstrar o banimento do instituto da ordem jurídica pátria, desde 1988. A não-recepção do instituto em mesa deve ser atribuída a uma conjugação de princípios e normas, de ordem constitucional e convencional, estas últimas também com hierarquia constitucional, como visto.

São tais princípios e dispositivos os já indigitados, os quais não parece exagerado repisar rapidamente.

Primeiramente, fere o instituto o Princípio da Prevalência dos Direitos Humanos, preconizada pelo art. 4º, inciso I, da Constituição de 1988, uma vez que, conforme demonstrado, contrasta com diversas normas internacionais garantidoras de direitos humanos fundamentais.

Dispõe a Carta que uma das balizas da República Federativa do Brasil, em suas relações internacionais, deve ser o referido princípio. Não obstante, continua-se a aplicar um dispositivo criado por legislação infraconstitucional que viola, no plano interno, estes mesmos direitos aos quais a Carta Magna exige observância.

Fere, outrossim, o princípio da Igualdade perante a lei ou Isonomia, preconizada pelo art. 5º, caput, da CF, uma vez que, arbitrariamente, cria um instituto que favorece a acusação, em detrimento da defesa.

E pior, o faz em confronto com uma presunção constitucional, qual seja, aquela decorrente do inafastável Princípio da Presunção de Inocência, como se verá adiante.

Além disso, viola em seguida o princípio do Juiz Natural, contido no inciso LIII do art. 5º da Carta Magna, que determina a insubmissão do imputado a processo e julgamento perante Juiz que não seja o competente.

Pode-se objetar que, nas hipóteses a que a lei sujeita a remessa necessária, é o Tribunal correspectivo, de conformidade com esta mesma lei, o órgão jurisdicional competente. Discorda-se da assertiva, com veemência.

Isto somente seria verdadeiro se tal legislação fosse válida. Existindo forte contraste e inconciliabilidade entre o instituto e inúmeros princípios e normas constitucionais, esta legislação perde, juris et de jure, validade, por inconstitucional, de modo que não pode gerar qualquer efeito. Logo, não é mais aquele órgão constitucionalmente competente para a análise da causa.

Portanto, deve-se compreender, hoje, o Princípio do Juiz Natural como Princípio do Juiz Natural Constitucional, ou seja: juiz ou juízo natural é aquele órgão apontado pela legislação como competente para o processo e julgamento do feito, de conformidade com as normas constitucionais atinentes à matéria.

Nesta esteira de raciocínio, juiz natural do feito em questão é o monocrático que proferiu a decisão que se pretende sujeitar ao reexame. Inexistindo recurso voluntário, impõe-se o trânsito em julgado da decisão, merecendo recusa de vigência a Súmula 423 do Supremo Tribunal Federal, por igualmente inconstitucional.

A sujeição do feito, inexistindo recurso voluntário, que cumpra todos os requisitos legais, a revisão pelo Juízo ad quem, é violação franca, frontal e patente do Princípio do Juiz Natural, por desrespeitar decisão proferida pelo Juízo a quo, reduzindo-a a nada e ensejando novo julgamento por órgão jurisdicional que, ante a ausência do manejo do recurso voluntário porventura cabível, é incompetente.

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Fere, ainda, o "recurso de ofício", o Princípio do Devido Processo Legal Constitucional. Já se discorreu sobre o assunto, mas não é descabido rememorar. Dispõe o art. 5º, inciso LIV, da Constituição da República, que ninguém pode ser privado de seus bens ou sua liberdade sem a estrita observância do devido processo legal.

Segundo a doutrina, devido processo legal significa seguir o processo aqueles trâmites, ritos, prazos e outras peculiaridades preconizadas pela legislação, evitando a surpresa e a desigualdade processual das partes. Vai-se, agora, além.

Afirma-se categoricamente que deve-se observar o Devido Processo Legal Constitucional, ou seja, aquele preconizado pela lei, desde que de conformidade com as normas constitucionais acerca da matéria. Toda norma processual que confronte com as disposições constitucionais, como qualquer outra, é inválida e, logo, insuscetível de produzir quaisquer efeitos na ordem jurídica.

Por conseguinte, ainda que textualmente previsto por norma infraconstitucional, o reexame necessário ofende abertamente o Princípio do Devido Processo Legal Constitucional, vez que tais normas são flagrantemente inconstitucionais, logo, inválidas.

Note-se, nesta esteira de pensamento percebe-se que, não manejado o recurso voluntário, impor-se-ia o trânsito em julgado da decisão. No entanto, ao invés, remete-se, arbitrariamente (haja vista a invalidade absoluta da norma processual que embasa o ato), o processo a outro órgão jurisdicional para novo julgamento, ferindo as normas constitucionais de processo, logo, o devido processo legal constitucional.

Fere, ainda, a remessa necessária em matéria penal, os Princípios Constitucionais do Contraditório e da Ampla Defesa, inscritos no rol de direitos e garantias fundamentais do artigo 5º, no inciso LV.

Como dito alhures, não se pode imaginar observância do contraditório com relação a uma parte que não pode contra-arrazoar um "recurso", pela simples razão de que este "recurso" não possui razões, tampouco traz a lei que o prevê qualquer possibilidade em tal sentido.

Nem se objete, neste ponto, não tratar-se, tecnicamente, de recurso, como exaustivamente visto. Mesmo sendo instituto anômalo, possui os principais efeitos de todo e qualquer recurso, razão mais que suficiente para que submeta-se ao regime jurídico destes, sobretudo naquilo que diz respeito aos princípios constitucionais do processo.

Ampla defesa resta violada, na mesma medida, haja vista que, embora a cognição judicial realizada até o momento tenha indicado pela insubsistência, quer do inquérito, quer do processo, quer da medida privativa de liberdade, conforme o caso, sem qualquer motivo fático razoável é a decisão submetida ao duplo grau de jurisdição, ficando a sorte do imputado ao sabor do órgão ad quem (onde, frise-se, inexiste contato direto com matéria probatória, o que demonstra mais ainda a irrazoabilidade do instituto). [206]

Em verdade, ampla defesa e contraditório são violados na mesma medida em que se viola o devido processo legal, pois este não prescinde daquelas.

Afronta o instituto, ainda, o Princípio da Presunção de Inocência, consagrado no inciso LVII do art. 5º da Carta Fundamental, que assegura a todo imputado o direito de ter presumida sua inocência até o trânsito em julgado de decisão condenatória.

É incompatível logicamente admitir a vigência do indigitado princípio constitucional em concomitância com o impropriamente denominado recurso de ofício. Se se presume a inocência, não se pode admitir a sujeição automática a reexame da decisão favorável ao réu, da qual não foi interposto recurso voluntário.

Se se admite esta possibilidade, na mesma medida nega-se vigência à referida presunção, cuja índole é, insiste-se, é constitucional.

Nada pode embasar um instituto como o que se examina senão uma presunção de culpabilidade, face o casuístico rol de hipóteses a que a lei (inconstitucional) pretende submeter ao duplo controle jurisdicional.

Se praticamente todas as hipóteses de pretenso cabimento da medida são favoráveis ao réu (absolvição sumária, deferimento de habeas corpus, arquivamento de inquérito ou processo, etc.), a lei está, ao submeter tal decisão a reexame pelo órgão jurisdicional ad quem, presumindo a culpabilidade do imputado.

Os "valores relevantes" ou o "gravame presumido" utilizados pela doutrina e pela jurisprudência para justificar a permanência do instituto no ordenamento jurídico nacional, mesmo após o advento da nova Carta Constitucional, nada mais são do que a admissão, com outro nome, de uma presunção de culpabilidade.

De fato, a lei ao submeter diversas decisões judiciais favoráveis ao imputado a duplo grau de jurisdição, presume culpabilidade, presume que o imputado é culpado, reduzindo a nada a decisão proferida, impedindo a preclusão, transferindo a análise ao juízo ad quem.

Revela-se claramente um instituto de cunho repressivo, ditado por questões de política criminal, exclusivamente, em detrimento de princípios constitucionais.

Evidentemente que a presunção constitucional de inocência não é absoluta, juris et de jure, mas relativa, juris tantum, tanto que pode ser infirmada pelas provas produzidas durante a instrução.

Ocorre que, nas hipóteses previstas como sujeitas a reexame, além da presunção de inocência que já milita, naturalmente, em favor do imputado, por força de comando constitucional, após as provas colhidas, seja no processo, seja no inquérito, convence-se o órgão jurisdicional pela insubsistência da imputação (ou pela desnecessidade da medida, no caso do habeas corpus, v.g.), militando em favor do imputado também a presunção relativa de validade e veracidade que deriva das decisões judiciais.

A primeira presunção (inocência) é de índole constitucional, a segunda (validade e veracidade dos atos jurisdicionais), infraconstitucional. A presunção de culpabilidade que constitui o cerne do instituto em exame é implícita na legislação infraconstitucional anterior à Constituição de 1988, ou seja, possui índole infraconstitucional.

Tendo-se em mente a hierarquização normativa vigente em nosso sistema jurídico, no conflito entre presunções (se é que tal conflito é possível), qual deve prevalecer: a presunção de caráter infraconstitucional ou aquela de caráter constitucional? A última, evidentemente.

Esta, talvez, seja a mais flagrante e frontal violação que comete o instituto contra os direitos fundamentais consagrados pela Constituição.

Fere o instituto, ainda, por afrontar tantos outros princípios e normas constitucionais, o Sistema Acusatório de Processo Penal, adotado pela Carta de 1988, numa interpretação sistemática da mesma.

A adoção do Sistema Acusatório pela nova ordem constitucional é decorrência da adoção por esta, dentre tantos outros, de princípios e normas típicos do referido sistema, como aqueles da publicidade, da isonomia, da ampla defesa, do contraditório, da separação de funções.

Violando o instituto tais preceitos, viola, por conseguinte, o Princípio Acusatório, implícito no texto constitucional.

Vale repisar que tais direitos e garantias são assegurados pelos §§ 1º e 2º do artigo 5º da Constituição da República, consubstanciando-se em cláusulas pétreas pelo art. 60, § 4º, da Carta Magna, havendo mesmo quem defenda a existência de hierarquia entre normas constitucionais, tese para a qual tais normas, por imodificáveis, ocupariam uma posição ainda mais elevada em relação às demais, sendo o ápice dos valores consagrados pelo texto constitucional.

No âmbito das normas internacionais, com a manutenção legislativa e a aplicação judicial do instituto, viola a República Federativa do Brasil, diuturnamente, obrigação internacional a que se comprometeu, constante do art. 2º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, da Organização das Nações Unidas, devidamente integrado no ordenamento jurídico pátrio.

Tal dispositivo internacional preconiza a obrigação de todo Estado-parte seu em garantir, sem discriminações, o gozo dos direitos nele estabelecidos, por todos os indivíduos em seu território, ou sujeitos à sua jurisdição.

Diversos dos dispositivos constantes do referido instrumento internacional são violados pelo reexame necessário em matéria penal, como ver-se-á na seqüência, restando desrespeitada, por via reflexa, também esta norma internacional.

Preconiza o Parágrafo 1º do art. 14 do referido instrumento internacional a regra da isonomia processual, garantindo igualdade de todas as pessoas perante todas as Cortes e Tribunais.

Devido às normas constantes nos §§ 1º e 2º do art. 5º da Constituição, resta clara a imediata exigibilidade do implemento de tal norma, pelo cidadão, consubstanciando-se a mesma em direito público subjetivo, assim como a hierarquia constitucional de que goza referido princípio, inalterada face a invalidade da EC nº 45/04, no particular, por flagrantemente inconstitucional.

A par conditio, ou regra de paridade de armas, sinônimos utilizados pela doutrina para referir-se ao Princípio da Isonomia Processual, é decorrência do sistema acusatório e veda a discriminação entre as partes do processo.

Não se pode, validamente, criar regras processuais que acarretem desigualdades injustificadas entre as partes, privilegiando uma em detrimento de outra.

Como discutido no momento oportuno, a quebra da isonomia somente se justifica para corrigir distorções não desejadas pelo sistema jurídico, ou seja, quando atua como instrumento da igualdade material.

É inadmissível, face referido princípio, regra que privilegie a acusação em detrimento da defesa, principalmente no processo penal, face o Princípio do Favor Rei [207], também violado pelo reexame necessário.

O mesmo dispositivo internacional assegura o direito do imputado a um julgamento por um Tribunal competente e imparcial.

Como visto, o instituto provoca uma verdadeira anulação do julgamento pelo órgão jurisdicional competente (conforme a legislação válida, em face da Constituição), cometendo o julgamento a outro órgão (incompetente, uma vez que inválida a legislação que lhe atribui tal competência, por inconstitucional).

Ademais, a imparcialidade do Poder Judiciário resta maculada pela natureza do instituto, uma vez que é órgão do próprio Poder (juízo a quo) que deve remeter a causa para reanálise por outro órgão jurisdicional superior (juízo ad quem), traduzindo-se tal violação em desrespeito, ainda, ao princípio consubstanciado no brocardo latino ne procedet judex ex officio [208], em flagrante quebra do Princípio da Inércia da Jurisdição [209].

O parágrafo 2º do art. 14 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos consagra o Princípio da Presunção de Inocência, assegurando, expressamente, o direito do imputado ser presumido inocente, até que reste comprovada sua culpa, mediante o devido processo legal.

Valem aqui as mesmas considerações já exaradas acerca do referido princípio, quando da análise do inciso LVII do art. 5º da Constituição da República.

Vale repisar, tão somente, que para aqueles que desejem objetar o Princípio da Presunção de Inocência, dizendo que a Constituição não o consagra expressamente - eis que fala, textualmente, que o imputado não pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado de decisão condenatória, e não que tem o direito de ser presumido inocente - que esta disposição de direito internacional, incorporada no ordenamento interno com status constitucional [210], espanca qualquer dúvida acerca do tema, eis que consagra, expressamente, a presunção de inocência.

Resta demonstrado que, diante da norma de extensão do art. 5º, § 2º, e o inciso LVII do mesmo dispositivo, ambos da Constituição, combinado com o art. 14, 2, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, consagra o ordenamento constitucional brasileiro, expressamente, o Princípio da Presunção de Inocência.

O parágrafo 3º do art. 14 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos reitera o direito à isonomia processual, consagrando, em seguida, o direito à brevidade processual (alínea "c"), assegurando aos jurisdicionados a proteção contra dilações indevidas no processo.

Embora ausente, formalmente, do texto da Constituição de 1988, o direito dos jurisdicionados à brevidade ou celeridade processual [211], até o advento da EC nº 45/04, este direito já encontrava-se inserido no rol dos direitos e garantias fundamentais, por força do § 2º do art. 5º da Norma Ápice, de modo que a Constituição da República assegura, por combinação deste dispositivo constitucional com o § 3º, "c", do art. 14 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o direito público subjetivo à brevidade ou celeridade processual.

O instituto em análise atenta, frontalmente, contra referido princípio, eis que provoca uma dilação indevida em um processo que, seguidas as normas constitucionalmente válidas acerca da matéria, mereceria arquivamento, face a ausência da interposição de recurso voluntário pelas partes.

E o pior, provoca tal dilação, em violação franca ao direito do imputado à brevidade processual, baseado em critérios discriminatórios, de política criminal, casuísticos e inconstitucionais, conforme visto.

Por fim, mas não menos importantes, restam as violações ocasionadas pelo reexame necessário às disposições constantes da Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica.

Inicia violando logo o art. 1º do referido instrumento internacional, que consigna a obrigação dos Estados-partes de respeitarem e assegurarem o gozo dos direitos nele consagrados, às pessoas sujeitas à sua jurisdição, de maneira semelhante ao que faz o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em seu art. 2º, já analisado.

Por desrespeitar diversas outras disposições convencionais, conforme passar-se-á a demonstrar, transgride o reexame necessário, reflexamente, também esta regra convencional.

Mas não é esta a única obrigação de direito internacional inadimplida pela República Federativa do Brasil, face o referido instrumento internacional. Com efeito, o art. 2º do mesmo consagra a obrigação dos Estados-parte de tomarem as medidas legislativas necessárias à compatibilização de seus ordenamentos internos com as disposições da Convenção.

Nesses termos, e diante dos princípios que ver-se-á em seguida, viola a República Federativa do Brasil referida obrigação, com sua conduta omissiva, vez que deixa de revogar os dispositivos legais incompatíveis com os princípios e normas contidos na Convenção, como aqueles que instituem o anômalo recurso de ofício.

O dispositivo seguinte da convenção a ser violado pelas normas que estabelecem o duplo grau de jurisdição obrigatório é o artigo 8º, que trata das garantias judiciais.

O parágrafo 1º do referido artigo assegura o devido processo legal, o direito público subjetivo à brevidade ou celeridade processual, a competência, independência e imparcialidade do órgão jurisdicional. O parágrafo 2º consagra, de forma expressa e literal, o Princípio da Presunção de Inocência, assim como a regra da Isonomia Processual.

Como visto, as normas constantes dos parágrafos do art. 8º da Convenção acabam reiterando direitos e garantias já constantes do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, já vistos, restando tais disposições violadas, pelas mesmas razões já expendidas quando da análise daquele instrumento, razão pela qual se faz despiciendo e enfadonho repetir aqui as mesmas considerações de linhas atrás, bastando o registro e cabendo ressaltar que a violação é, portanto, de obrigações internacionais constantes de, pelo menos, dois instrumentos internacionais de validade indiscutível.

Por fim, resta afrontado pelo reexame necessário o art. 24 do Pacto de São José da Costa Rica, que consagra o plurimencionado Princípio da Isonomia perante a lei, haja vista instituir discriminação desvinculada de qualquer regra de proporcionalidade ou razoabilidade, fundada, antes, em regra discriminatória e presunção inconstitucional.

Concluindo a fundamentação da não-recepção do instituto pela nova ordem constitucional e pela normatização internacional [212], resta apenas afirmar que a não-recepção do instituto do reexame necessário pela ordem constitucional instaurada em 05.10.1988 funda-se, como visto, na inconciliabilidade que aquele demonstra em relação a todo um complexo de normas de direito constitucional e internacional de índole constitucional, consubstanciados em todos os dispositivos retro-indigitados, de modo que impõe-se sua não-aplicação pelos pretórios pátrios, bem como demonstra-se oportuna sua expressa revogação pelo Poder Legislativo, como exigência da segurança jurídica, sempre desejável.

O direito penal e o processo penal modernos, ao menos em termos teóricos, encontram-se muito distantes daqueles modelos repressivos, arbitrários e autoritários que apresentavam em sua origem.

O direito interno das nações civilizadas e o direito internacional preconizam o sistema acusatório como garantia fundamental do cidadão, como freio ao arbítrio estatal.

Neste contexto, o processo, como visto, encerra diversos valores em si mesmo, transcendendo a mera natureza de instrumento do direito material, servindo de veículo de direitos constitucionais consagrados como cláusula pétrea pelo nosso ordenamento jurídico.

Já o jusfilósofo italiano CESARE DE BECCARIA, em sua célebre obra Dei Delitti e delle Pene (Dos Delitos e Das Penas), afirmava a importância de um processo breve, observada a ampla defesa e o contraditório:

Conosciute le prove e calcolata la certezza del delitto, è necessario concedere al reo il tempo e mezzi opportuni per giustificarsi; ma tempo cosí breve che non pregiudichi alla prontezza della pena, che abbiamo veduto essere uno de´´ principali freni de´´ delitti. [213][214]

Afasta-se o Direito Processual brasileiro do modelo acusatório, de influência iluminista, na medida em que existam institutos draconianos como o presente, atentando para os mais comezinhos princípios do direito penal e processual penal modernos, dilatando, indefinidamente, a persecução criminal.

De fato, assim como CESARE BECCARIA já afirmava, à sua época, que pena legítima é a pena necessária, pode-se, transportando o conceito ao processo, afirmar que medida ou instituto processual adequado e legítimo, é aquele estritamente necessário:

Conchiudo con una riflessione, che la grandezza delle pene dev´´essere relativa allo stato della nazione medesima. Piú forti e sensibili devono essere le impressioni sugli animi induriti di un popolo appena uscito dallo stato selvaggio. Vi vuole il fulmine per abbattere un feroce leone che si rivolta al colpo del fucile. Ma a misura che gli animi si ammolliscono nello stato di società cresce la sensibilità e, crescendo essa, deve scemarsi la forza della pena, se costante vuol mantenersi la relazione tra l´´oggetto e la sensazione. Da quanto si è veduto finora può cavarsi un teorema generale molto utile, ma poco conforme all´´uso, legislatore il piú ordinario delle nazioni, cioè: perché ogni pena non sia una violenza di uno o di molti contro un privato cittadino, dev´´essere essenzialmente pubblica, pronta, necessaria, la minima delle possibili nelle date circostanze, proporzionata a´´ delitti, dettata dalle leggi. [215][216]

E, como visto, o instituto em análise é desnecessário e irrazoável, afrontando princípios constitucionais de primeira grandeza, merecendo a recusa a sua aplicação pelos pretórios e sua revogação expressa, em homenagem a um Devido Processo Legal Constitucional, garantia fundamental por excelência.

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Sobre o autor
Luis Fernando Sgarbossa

Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor do Mestrado em Direito da UFMS. Professor da Graduação em Direito da UFMS/CPTL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SGARBOSSA, Luis Fernando. Do reexame necessário em matéria penal no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1058, 25 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8410. Acesso em: 20 abr. 2024.

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