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O poder regulamentar

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5 O REGULAMENTO ANTE O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Em nosso ordenamento jurídico, o princípio da legalidade – além de assentar-se na própria estrutura do Estado de Direito e do sistema constitucional como um todo – encontra-se expresso na Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso II, dispondo que "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Do dispositivo constitucional infere-se, como bem lembrado por Celso Antônio Bandeira de Mello, a necessidade de lei como fonte de obrigações aos administrados. Percebe-se claramente que os demais atos administrativos normativos, tais como os decretos, regulamentos, portarias ou resoluções, não podem impor obrigações nem restringir direitos dos administrados – salvo se a Administração estiver previamente embasada em lei que assim lhe permita proceder. Isso porque a Lei Maior não tolera que o Poder Executivo interfira na liberdade e na propriedade dos administrados através dos regulamentos por si editados.

A Carta Magna também prevê que a Administração Pública deve obedecer ao princípio da legalidade no caput do artigo 37, estabelecendo que "A Administração Pública direta e indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade [...]".

Por sua vez, o artigo 84, inciso IV, dispõe acerca da competência do chefe do Poder Executivo para "sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução". Nisto conclui-se que, no ordenamento jurídico pátrio, os regulamentos só podem ser editados quando necessários para a fiel execução das leis – ou seja, nosso sistema admite apenas o chamado "regulamento de execução" – e pressupõe a existência de uma determinada lei da qual serão os fieis executores.

Os dispositivos constitucionais acima transcritos, consoante assevera Celso Antônio Bandeira de Mello, "[...] possuem relevo transcendente, pois assumem função-chave no sistema jurídico" e prossegue afirmando que "deles depende a mantença, sob o ponto de vista jurídico, de instituições concebidas para garantir o indivíduo contra eventuais desmandos do Estado". [35]

Em suma: é livre de qualquer dúvida ou entredúvida que, entre nós, por força dos arts. 5º, II, 84, IV, e 37 da Constituição, só por lei se regula liberdade e propriedade; só por lei se impõem obrigações de fazer ou não fazer. Vale dizer: restrição alguma à liberdade ou à propriedade pode ser imposta se não estiver previamente delineada, configurada e estabelecida em alguma lei, e só para cumprir dispositivos legais é que o Executivo pode expedir decretos e regulamentos. [36]

Ademais, depreende-se dos comandos previstos nos artigos 5º, II, 37 e 84, IV, da Lei Maior, que um dos objetivos do princípio da legalidade é garantir a igualdade entre os indivíduos e assegurar a segurança jurídica nas relações entre si travadas.

Destarte, a legalidade revela-se como um "princípio vetorial explícito, intimamente ligado à atividade da Administração Pública de regulamentar as leis", [37] tendo em vista que "incumbe à Administração assegurar a aplicação da regra de direito, no sentido de que lhe cumpre adotar ativamente as diretrizes previstas em lei". [38]

Dentro desse contexto, percebe-se que o princípio da legalidade revela-se como um verdadeiro limite ao exercício da atividade regulamentar. Isso porque, conforme dito anteriormente, o Poder Executivo não pode impor obrigações ou estabelecer restrições aos administrados através de regulamentos ou de quaisquer outros atos normativos. Destarte, a atividade regulamentar é estritamente subordinada aos comandos legalmente estabelecidos, e o regulamento é ato normativo inferior e dependente de lei prévia que autorize sua edição.

Cumpre ressaltar, consoante a lição de Geraldo Ataliba que "mesmo as normas jurídicas mais solenes – como é o caso dos regulamentos [...] – somente são obrigatórias na medida em que rigorosamente fiéis aos textos legais [...]". [39]


6 LIMITES

Conforme já afirmado anteriormente, o poder regulamentar consiste no exercício de atividade normativa subordinada, desta forma, trata-se de poder limitado. "Seus limites naturais situam-se no âmbito da competência executiva e administrativa, onde se insere". [40]

O estudo dos limites impostos ao exercício da atividade regulamentar é de suma importância, tendo em vista que "[...] a inobservância desses limites vicia o regulamento, tornando-o ilegal". [41]

6.1 LIMITAÇÕES FORMAIS

6.1.1 Autoridade Competente

A primeira limitação formal refere-se à autoridade competente para editar regulamento. Em nosso país, o poder regulamentar é outorgado expressamente ao chefe do Poder Executivo, de forma indelegável, consoante se depreende da análise do parágrafo único do artigo 84, da Lei Maior. "Se o ato decorre de qualquer outra autoridade, já não mais corresponde à idéia constitucional de regulamento". [42] Destarte, o regulamento só será válido quando editado pela autoridade competente.

Cumpre recordar a precisa lição de Vanessa Vieira de Mello, ao afirmar que se outras autoridades exercessem função regulamentar, estaríamos diante de uma inconstitucionalidade material, tendo em a indelegabilidade desta função. [43]

6.1.2 Veículo de Edição

O segundo limite formal liga-se ao veículo de edição do regulamento. O poder regulamentar conferido ao Executivo manifesta-se mediante decreto, ou seja, o instrumento jurídico que irá exteriorizar as normas regulamentares é o decreto, "suprema manifestação jurídica normativa do chefe do Poder Executivo". [44] O decreto constitui a forma através do qual o conteúdo do regulamento é exteriorizado. Conforme adverte Diógenes Gasparini, a portaria, se utilizada como veículo de edição, seria um instrumento ilegal. [45]

6.1.3 Publicação do Decreto

A terceira limitação formal refere-se à publicação do decreto regulamentador. Em relação aos regulamentos que devam produzir efeitos apenas no interior da Administração, basta o conhecimento de seus destinatários através de qualquer meio. Se, porém, tratar-se de regulamento cujos efeitos atinjam terceiros (normatividade em relação aos particulares, nas palavras de Hely Lopes Meirelles), necessária se faz a publicação integral do regulamento e do decreto que o aprova. Destarte, os regulamentos "devem ser publicados pelo mesmo modo por que o são as leis, visto que a publicação é que fixa o início da obrigatoriedade dos atos do Poder Público a serem atendidos pelos administrados". [46]

6.2 LIMITAÇÕES MATERIAIS

Neste tópico, busca-se averiguar duas questões: quais são as leis que podem ser regulamentadas pelo Executivo, e se existe matéria reservada ao exercício da competência regulamentar, ou, nas palavras de Clèmerson Merlin Clève, se existe matéria tipicamente regulamentar. [47]

6.2.1 Ausência de Matéria Tipicamente Regulamentar

Diferentemente do que ocorre em outros países [48], onde a Constituição prevê expressamente as matérias reservadas a lei e ao regulamento, no Brasil, não existe matéria reservada para o exercício do poder regulamentar, tendo em vista que a Constituição Federal de 1988 não previu matéria tipicamente regulamentar.

Em nosso ordenamento jurídico, em relação ao campo de ação dos atos legislativos vigora o princípio da universalidade da lei, ou seja, em princípio, todos os campos normativos são passíveis de disciplina legal, conforme ensina Clèmerson Merlin Clève. [49] Entretanto, faculta-se ao Poder Legislativo, na elaboração da lei, prescrevê-la detalhadamente, com todas as suas minúcias, indicando, inclusive, a sua forma de aplicação e execução, esgotando, desta forma, toda a matéria legislada. Nessa hipótese, a lei só poderá ser cumprida de acordo com o que foi previsto pelo legislador. Por outro lado, o legislador pode preferir deixar uma certa margem de liberdade para que o Poder Executivo proceda à regulamentação da lei. Nesses casos, os vazios deixados pela lei, implicam necessariamente na manifestação do Executivo através de sua competência regulamentar.

Ressalte-se, ainda, que "nem toda lei depende de regulamento para ser executada, mas toda e qualquer lei pode ser regulamentada se o executivo julgar conveniente fazê-lo". [50]

6.2.2 Leis que Podem Ser Regulamentadas

Transposta a questão acerca da existência de matéria tipicamente regulamentar, passa-se, a seguir, à análise do tipo de lei que pode ser regulamentada pelo Poder Executivo. Trata-se de saber se o regulamento somente pode dispor sobre matéria objeto de legislação administrativa, matéria referente às relações entre Administração e terceiros ou se pode dispor acerca das relações entre particulares, adentrando no campo do direito privado.

Apenas as leis cuja aplicação incumba ao Poder Executivo, e que dependam de ulteriores especificações, podem ser regulamentadas. É o que se depreende da análise do artigo 84, inciso IV, da Constituição Federal, que não previu quais leis seriam passíveis de regulamentação, dispondo, apenas, que cabe ao Presidente da República expedir regulamentos para a fiel execução das leis. Interpretando-se este dispositivo, a conclusão a que se chega é a de que apenas as leis cuja execução incumba ao chefe do Executivo devem ser regulamentadas.

Esta é justamente a posição da doutrina majoritária [51], que afirma que somente as leis que devam ser aplicadas e executadas pelo Poder Executivo prescindem de regulamentação. Em outras palavras, só as leis administrativas lato sensu podem ser objeto de regulamentação. Logo, as relações entre particulares encontram-se fora do alcance da competência regulamentar. Nesse sentido, Geraldo Ataliba assevera que

Só cabe regulamento em matéria que vai ser objeto de ação administrativa ou deste depende. O sistema só requer ou admite regulamento, como instrumento de adaptação ou ordenação do aparelho administrativo, tendo em vista, exatamente, a criação de condições para a fiel execução das leis. [52]

Contudo, independente da matéria a ser regulamentada, deve-se atentar para o fato da adoção da federação como forma de Estado em nosso país. Desta forma, a atribuição regulamentar só pode ser exercida pelo Presidente da República para dispor acerca de leis editadas pelo Congresso Nacional, ou seja, aquelas de competência da União, sendo-lhe defeso, por óbvio, regulamentar leis estaduais e municipais. Estas deverão ser regulamentadas pelos Governadores de Estado e pelos Prefeitos, respectivamente. Ou seja, a atribuição regulamentar só poderá ser exercida pelo órgão administrativo a quem compete à aplicação da lei.

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Relembre-se que só há espaço para regulamentação quando a lei a ser executada demande atuação por parte da Administração Pública. Daí a acertada afirmativa de Clèmerson Merlin Clève de que descabe a expedição de decreto para regulamentar normas constitucionais. A simples existência de normas constitucionais não auto-aplicáveis não autoriza o exercício da competência regulamentar pelo chefe do Executivo, isso porque não lhe compete a aplicação direta dos dispositivos constitucionais. Caberá ao Poder Legislativo a complementação de referidas normas, em virtude de expressa outorga constitucional. Entretanto, as leis que devam ser aplicadas pelo Poder Executivo e que desenvolvam os comandos constitucionais, poderão ser integradas normativamente mediante regulamento. [53]

Conclui-se, destarte, com a lição de Clèmerson Merlin Clève, ao ensinar que a edição de regulamentos só é possível "[...] para disciplinar a aplicação das leis que regem relações jurídicas qualificadas pela presença do Estado-poder". [54]


7 CONCLUSÃO

Embora com os limites a ele inerentes, o poder regulamentar constitui um mecanismo necessário através do qual o Executivo contribui para a formação do ordenamento jurídico. [55]

Por fim, ressalte-se, novamente, que o mecanismo mais relevante através do qual a Administração Pública exerce a atividade normativa secundária [56], consiste no poder regulamentar, conferido constitucionalmente ao Presidente da República.


REFERÊNCIAS

ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. Malheiros: São Paulo, 1998.

CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2002.

CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade Legislativa do Poder Executivo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

CUÉLLAR, Leila. As Agências Reguladoras e seu Poder Normativo. São Paulo: Dialética, 2001.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Conflito entre poderes: O Poder Congressual de sustar atos normativos do Poder Executivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

GRAU, Eros Roberto, O Direito Posto e o Direito Pressuposto. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito das Agências Reguladoras Independentes. São Paulo: Dialética, 2002.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios Gerais de Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. v I.

MELLO, Vanessa Vieira de. Regime Jurídico da Competência Regulamentar. São Paulo: Dialética, 2001.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

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Sobre a autora
Lívia Marcela Benício Ribeiro

advogada especialista em direito processual civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Lívia Marcela Benício. O poder regulamentar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1064, 31 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8431. Acesso em: 26 abr. 2024.

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