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O Estado como superparte no processo:

uma violação ao princípio da isonomia

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2. O PRINCÍPIO DA ISONOMIA

            Para enfrentarmos uma tese, é necessário enfrentarmos a antítese. E é certo que estamos diante de um enfrentamento delicado, porque a idéia de igualdade é latente no ser humano.

            As pesquisas neste campo, notadamente quando se analisa a igualdade sob o ponto de vista filosófico, nos levam à moral e, assim sendo, às idéias de Kant. E as idéias kantianas são muito bem tratadas na obra de Marcelo Campos Galuppo [22], que, por sua vez, conduzem sempre à grande preocupação, que é a idéia constante de liberdade.

            Diante da antítese ao que se propõe o presente trabalho, não somente a igualdade jurídica, mas a filosófica, deve ser analisada.

            Em verdade, o que impera, ainda mais nos dias de hoje, é a total desigualdade. E esta desigualdade parte de pressupostos básicos e elementares, podendo, inclusive, cair em lugar comum quando tratamos do assunto.

            Dentro das desigualdades e desta posição nada democrática de Estado, é mister um hiato.

            Não temos igualdade, já que os poderes não são tratados igualmente. Aliás, sequer há igualdade para os contratantes do pacto, uma vez que, reafirmo, em nossa democracia o Poder Judiciário não se submete ao grande jugo do sufrágio.

            A estrutura estatal é desigual por si.

            E tanto para Kant, quanto para Nietzsche, é importante analisarmos a moral. Notadamente diante da concepção de Nietzsche, em Genealogia da Moral – Uma Polêmica [23], podemos observar que a moral surge de conceitos aristocráticos. Para Kant, segundo Marcelo Campos Galuppo [24], "a obrigatoriedade do direito, apesar de seus fundamentos morais, repousa, antes de mais nada, no próprio poder de coerção do direito. Sem isso ter-se-ia retirado do direito a sua própria possibilidade de existência. Em outros termos, apesar de possuir um fundamento moral, o direito não se reduz, funcionalmente, à própria moral."

            Nietzsche [25] é mais intenso ao tratar da moral e a produzir severas críticas aos genealogistas da moral.

            "A indicação do caminho certo me foi dada pela seguinte questão: que significam exatamente, do ponto de vista etimológico, as designações para "bom" cunhadas pelas diversas línguas? Descobri então que elas remetem à mesma transformação conceitual – que, em toda parte, "nobre", "aristocrático", no sentido social, é o conceito básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu "bom", no sentido de "espiritualmente nobre", "aristocrático", de "espiritualmente bem-nascido", "espiritualmente privilegiado": um desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro que faz "plebeu", "comum", "baixo" transmutar-se finalmente em "ruim".

            ...

            "Esta é a longa história da origem da responsabilidade. A tarefa de criar um animal capaz de fazer promessas, já percebemos, traz consigo, como condição e preparação, a tarefa mais imediata de tornar o homem até certo ponto necessário, uniforme, igual entre iguais, constante, e portanto confiável."

            Sem dúvida, concluo que a grande verdade é uma inexistência de igualdade. Em sua Genealogia da Moral Nietzsche nos provoca a entender, desde a pré-história, os movimentos que levaram a uma construção do que poderia a vir a ser moral. E a moral, dentro de suas idéias, nada mais é que destruir o forte e fortificar o fraco. Ou melhor, foi isto o que a sociedade fez: transformou o forte em fraco e, desta forma, este passa a ser moral.

            Dentro desta idéia, tão atual quanto os discursos de promessa como os que ora vivenciamos em nosso país [26], concluímos que o grande paradigma é a desigualdade. E, neste ponto, pouco importa se filosófica ou jurídica, porque certamente afirmarei que a desigualdade processual é latente.

            Antes de analisar as questões relativas ao Estado, como parte em uma relação processual, é importante, desde já, deixar patente que os prazos concedidos à Defensoria Pública sequer serão objeto de análise ou crítica, porque quando se está diante de cidadania e acesso à justiça, visualizo na Defensoria Pública a mais alta importância, já que trata aos desiguais com respeito, dignidade e leva-lhes, ao menos, a dignidade que lhes resta.

            O texto mencionado em nota de rodapé traduz a alternância dos pensamentos da esquerda quando assume o poder.

            E, neste ponto, para firmar a idéia de desiguais, é mais que oportuno atentar para as promessas de uma alternância de idéias e ideais. Idéias surgem, assim como as promessas, para os fracos e os moralmente aceitos (dentro da concepção de Nietzsche). O grande criador das promessas, moral, ou imoral, dependendo, aqui, do ponto de vista a ser encarado, ao ascender ao poder, esquece-se que fraco era e, portanto, moral. Contudo, ao se tornar forte, deixa a moral de lado e o que deseja é uma desigualdade jamais vista.

            Concluímos, assim, a antítese, para podermos conceituar o que venha a ser igualdade.

            Professora de grandes predicados e uma pesquisadora acirrada das questões que envolvem temas como a ação afirmativa, Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva [27] define igualdade como sendo:

            "A igualdade material (para alguns autores chamada de igualdade substantiva ou substancial) é aquela que assegura o tratamento uniforme de todos os homens, resultando em igualdade real e efetiva de todos, perante todos os bens da vida."

            E a definição é mais que apropriada para o tema que se desenvolve – igualdade perante todos os bens da vida.

            Em termos de Direitos e Garantias Fundamentais do ser humano, ainda que já se tenha discutido o termo Estado Democrático de Direito, não vislumbro – e vale sempre a redundância –, maior expressão da cidadania que o acesso ao Judiciário, já que nenhuma lesão ou ameaça de direito ficará a ele isenta de apreciação – art. 5o., XXXV.

            Sem dúvida, trata-se de um clamor a isonomia, notadamente quando se está diante do Estado e, este, dentro da conceituação contratualista, um mandatário meu.

            2.1. A NECESSIDADE DOS DESIGUAIS

            Para que se afirme a igualdade, é importante que haja os desiguais, com o fim de fortalecer a idéia de sua existência. Antagonismo repugnante, por sinal. Contudo, serão os desiguais quem demonstrarão a acirrada luta pela igualdade, tão utópica quanto as asas de Ícaro.

            A Profa. Fernanda Duarte [28], prosseguindo em seu trabalho acerca da igualdade, revela as diferenças:

            "Entretanto, apesar de forte carga humanitária e idealista que essa igualdade traz consigo, até hoje, a experiência histórica das sociedades humanas não logrou sua realização."

            ...

            "Já a igualdade formal, por sua vez, impõe leitura diversa, determinando tratamento uniforme perante a lei e vedando tratamento desigual aos iguais."

            Assim, se fortalece a idéia de que é importante a existência dos desiguais a justificar uma aplicação legal uniforme.

            Este Estado, que nasce nos Medievos com diversas formas de jurisdição, sofre as mudanças impostas pelos iluministas que, em verdade, podem ser considerados medievais iluminados, dada suas ligações fortes com a Maçonaria, uma herdeira direta e imediata das corporações de ofício.

            E o Estado, ainda que Democrático de Direito, deste se vale para ser desigual.

            2.3. O ESTADO É DESIGUAL

            Realizando pesquisa com o fim de demonstrar uma proteção extremada ao Estado, diversas normas se apresentam no cenário jurídico nacional que justificam a grande problemática enfrentada diante do princípio da isonomia.

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            No que se refere ao CPC, a primeira norma que se apresenta desigual é a contida no art. 188 [29], já que retarda, em muito, a prestação da tutela jurisdicional.

            Contra este argumento e afirmando inexistir violação ao princípio da isonomia, Nelson Nery Junior [30] assim discorre:

            "Poderia parecer à primeira vista que as prerrogativas processuais concedidas, por exemplo, à Fazenda Pública e ao Ministério Público (prazo em dobro para recorrer e em quádruplo para contestar – art. 188 do CPC), infringiriam o princípio constitucional da igualdade.

            Entretanto, o que o princípio constitucional quer significar é a proteção da igualdade substancial, e não isonomia meramente formal."

            ...

            "Tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, é a substância do princípio da isonomia."

            Nelson Nery Junior não admite sugestões simplistas, como o aumento de servidores, a fim de reduzir os prazos e, ainda, defende a tese de que o Ministério Público atua para toda a coletividade.

            Ainda que complexas as causas que possam envolver o Estado e, mesmo, o Ministério Público, além de violação ao princípio constitucional, há violação ao art. 125 do CPC.

            O tema será analisado, contudo, com maior profundidade, no próximo capítulo.

            Não somente, contudo, a figura do prazo dilatado, exageradamente concedido ao Estado, o CPC concede ainda outra benesse, que é a do recurso ex officio, nos termos do art. 475.

            Felizmente, contudo, com a reforma de 2001, através da Lei 10.352/2001, há exceções à regra, conforme se verifica nos parágrafos 2o. e 3o.

            Outras vantagens do Estado no processo:

            Art.

            Prazo/Dispensa/Concessão

            Disposição

            222, c

            Citação Pessoal

            Citação

            488, par. Único

            Isenção de depósito

            Rescisória

            511, par. 1o.

            Isenção de custas

            Recursos

            730, II

            Forma de execução

            Precatório/Execução

            816

            Isenção

            Justificação Prévia

            Justifica-se o termo superparte no processo civil. As benesses são por demais e, sem dúvida alguma, não podemos conceber um Estado Democrático de Direito. Um Estado superdotado, uma democracia vilipendiada e um direito estatal protetor.

            Há diversos outros benefícios concedidos ao Estado, em termos legislativos, justificando o Estado como sendo o desigual.

            Deixando de lado as críticas firmadas em torno do que se pode entender por Estado Democrático de Direito, vislumbremo-lo como a verdadeira manifestação do povo, em contraposição aos regimes ditatoriais.

            Em 10 de setembro de 1997, a Lei 9.494 amplia dispositivos da época da Redentora, ou seja, as Leis 4.348/64 e 5.021/66, disciplinando a aplicação da tutela antecipada contra a Fazenda Pública. Outros dispositivos por meio das malsinadas Medidas Provisórias foram inseridos na norma e, sem qualquer dúvida, o mandatário passa a ser isento das normas legais.

            Ainda que baseado em uma norma, voltando a pensar nos filósofos do passado, devemos perguntar se estas normas são democráticas, ou, como Tocqueville temia, se esta democracia não se tornaria uma tirania?

            A Lei 9.494/97 é tirana, criando mais e mais benefícios ao Estado, como se o mesmo estivesse alheio aos movimentos societários que exigem verdadeira proteção.

            De chocar, ainda, a alteração imposta pela aludida Lei no que se refere à Ação Civil Pública – verdadeira conquista da cidadania -, quando limita a decisão judicial aos limites da competência do órgão prolator.

            Tantas outras normas foram editadas, após a promulgação da Carta Cidadã de 1988, tão contrárias à cidadania e a seu efetivo exercício.

            Mister a análise, pois, do Estado como superparte na relação processual.

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Sobre o autor
José Carlos de Araújo Almeida Filho

advogado no Rio de Janeiro, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA FILHO, José Carlos Araújo. O Estado como superparte no processo:: uma violação ao princípio da isonomia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1055, 22 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8437. Acesso em: 25 abr. 2024.

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