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O Estado como superparte no processo:

uma violação ao princípio da isonomia

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3. O ESTADO COMO SUPERPARTE NO PROCESSO

            Não se pode mais, em Direito, tratarmos as matérias isoladamente, como se uma fosse menos importante que a outra. Assim sendo, em termos processuais, se pode afirmar que o Processo Civil tem se tornado multidisciplinar e, diante das novéis concepções filosóficas européias, poderia afirmar ser transdisciplinar. O processo navega e transita por todas as matérias.

            O Prof. Dr. Cândido Rangel Dinamarco [31], ao tratar das macrotendências do Direito Processual Civil, além de bem discorrer sobre o Código de Processo Civil-Modelo para os países Ibero-americanos, que, sem dúvida alguma, é o alargamento da cidadania defendida pelo Prof. Dr. Alberto Nogueira, discorre sobre esta superparte, quando leciona:

            "No modelo infraconstitucional do processo civil brasileiro, plasmado sob Getúlio Vargas no Código de 1939 e continuando pelo vigente, figurava desde o início alguns pontos de uma autoritária preocupação em favorecer o Estado como litigante. Tais eram os benefícios dos prazos mais dilatados concedido à Fazenda e ao Ministério Público (CPC-73, art. 188), a devolução oficial instituída em favor daquela (art. 475, incs. II-III) e a quase-absoluta impenhorabilidade dos bens das pessoas jurídicas de direito público (arts. 730 ss., c/c Const., art. 100). O Código de Processo Civil de 1973 acrescentou ainda a dispensa do depósito equivalente a 5% do valor da causa nas ações rescisórias propostas por aquelas entidades estatais (art. 488, par.).

            Já na vigência do primeiro Código nacional, algumas leis especiais trouxeram, sempre com o intuito de privilegiar o Estado, veto à concessão de medidas de urgência, como são as liminares em geral. Depois disse e não obstante as generosas falas dos constituintes de 1988 e do atual Presidente da República [32] contra o gigantismo estatal, várias outras disposições legislativas vêm surgindo, sempre a beneficiar aquelas superpartes – e com agravante de virem nas vestes de medidas provisórias editadas sem o requisito da urgência, que ao menos formalmente poderia dar a impressão de legitimá-las."

            Não há, com a devida venia do Prof. Dr. Nelson Nery Junior, como justificar esta proteção excessiva concedida ao Estado e seus entes.

            Feridos os princípios filosóficos, feridos os jurídicos, porque, em verdade, as malsinadas Medidas Provisórias nada mais são do que ressuscitar, em pleno Estado Democrático de Direito, os "famosos" decretos. Assim, ainda que o princípio contratualista de Rousseau seja o pilar desta figura controvertida, inexiste igualdade quando deixamos de votar no Judiciário. Inexiste independência e harmonia entre os poderes. Enfim, impera o caos jurídico, sempre sob o pálio de uma ficção jurídica de que estamos em um Estado Democrático, que flutua ao prazer dos criadores de sonhos, daqueles que prometem e, ao serem prometidos, esquecem-se de sua própria moral.

            3.1. O PROCESSO CIVIL CONSTITUCIONAL

            Como analisado, o Direito não mais subsiste sem a multidisciplinaridade. Dentro desta atuação processual, vários remédios jurídico-processuais são oriundos da Carta Política, notadamente as previsões para as ações que garantem o pleno exercício da cidadania.

            Os recursos, notadamente o Extraordinário, para o Supremo Tribunal Federal, garantem controle de legalidade e constitucionalidade.

            Para Dinamarco [33], "a tutela constitucional do processo é feita mediante os princípios e garantias que, vindos da Constituição, ditam padrões políticos para a vida daquele. Trata-se de imperativos cuja observância é penhor da fidelidade do sistema processual à ordem político-constitucional do país."

            Assim é que não se pode desprezar o art. 5o. da Carta Cidadã de 1988, nem tampouco o art. 125 do CPC. O Direito Processual passa a ser de tamanha importância, dada sua tendência atual de efetivação da prestação jurisdicional, que o próprio constituinte fez inserir na Constituição diversos princípios do processo.

            A recíproca passa a ser verdadeira. Contudo, se as partes são iguais perante a lei, não pode a própria lei causar-lhe diferenças não mais justificadas, porque construídas sob a égide de regimes ditatoriais – 1939 e 1973.

            3.1.2. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE EM MATÉRIA PROCESSUAL

            A máxima contida no art. 5o. da Carta Cidadã de 1988 já bastaria para afirmar que todos são iguais perante a lei. Assim sendo, compete à norma tratar igualmente as partes.

            Quando se está diante do CPC, o art. 125 determina, ou seja, trata-se de norma cogente, que o juiz conceda às partes igualdade de tratamento. Contudo, o Estado, este meu mandatário e, portanto, se admitirmos uma conceituação contratualista, dotado de poderes e, por sua vez, deveres, aparece na relação processual como um ente mais forte e poderoso do que seus pobres e tristes mandantes.

            Através do pacto medievalista iluminado, cedo ao Estado meus poderes. Contudo, o mais sagrado, que se traduz na liberdade, a justificar a própria desigualdade material, já que a igualdade não existe, sob hipótese alguma, se apresenta de forma flagrante no processo civil.

            A modernidade processual, que exige rapidez e eficácia, não pode sucumbir a teorias ultrapassadas e ditatoriais.

            3.1.3. A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

            A posição do Supremo Tribunal Federal é pacífica, ao entender que a norma contida no art. 188 do CPC não viola o princípio da isonomia, garantido pelo art. 5o. da CR/88.

            No julgamento do Recurso Extraordinário n. 181138-2 – SP, publicado no DJU-I, em 12 de maio de 1995, ao ementar o acórdão, o Exmo. Sr. Dr. Ministro Celso de Mello, assim decide:

            "- O benefício do prazo recursal em dobro outorgado às pessoas estatais, por traduzir prerrogativa processual ditada pela necessidade objetiva de preservar o próprio interesse público, não ofende o postulado constitucional da igualdade entre as partes. Doutrina e Jurisprudência."

            Outros textos do acórdão serão apreciados. Contudo, diante da propriedade do tema levantado pelo Prof. Dr. Cândido Rangel Dinamarco [34], a transcrição de suas lições se faz necessária:

            "O mais triste é a docilidade com que o Poder Judiciário vem coonestando esses atentados que se perpetram contra os fundamentos do Estado-de-direito e do devido processo legal, constitucionalmente garantidos (e de que valem essas "garantias", quando the law is what the Supreme Court says it is e o Supremo Tribunal Federal dá por constitucionalmente legítimas essas medidas privilegiadoras do Estado em juízo).

            Esse comportamento tem raízes culturais e, de algum modo e em certa medida, está presente em muitos pronunciamentos de juízes de diversos graus, quando por diversos modos privilegiam o Estado no processo civil."

            Analisando o acórdão trazido como estudo de caso, talvez se possa chegar a uma conclusão do por que desta docilidade. Contudo, ainda que the law is what the Supreme Court says it is, é importante que o meio acadêmico se manifeste. Que a doutrina não mais justifique posições anacrônicas, quando o que se pretende, a cada dia, é a verdadeira expressão do indivíduo.

            Importante que se abra novo hiato neste ponto do trabalho, a justificar determinadas posições. Por formação acadêmica, sempre discordei, imensamente, das formas protetivas concedidas a esta ou aquela parte na relação processual. Recentemente, quando das últimas modificações inseridas no CPC, após incessante trabalho dos Professores Sálvio Figueiredo e Ada Pellegrini Grinover, se tentou inserir em nosso sistema o contempt of court, que, por força de forte lobby no Congresso, acabou por retirar o advogado do elenco daqueles que seria penalizados em caso de resistência no cumprimento das ordens judiciais.

            Nosso processo caminha, ao menos na academia, a passos largos. Contudo, ainda seremos alvo das corporações que temem a ética e a moral. E, se por um lado, como advogado que sou, sustentei, então, a inconstitucionalidade da nova redação do art. 14 [35], justamente por proteger, demasiadamente, os próprios advogados. E mais uma vez nada de isonomia.

            Pois bem! Retornando ao acórdão, o que se observa é a justificativa de proteção ao Estado por sua atividade, ainda que a descentralização seja a mola propulsora do movimento administrativista e vivenciamos as privatizações nas maiores áreas de concentração da atividade estatal.

            Importante, ainda, é destacar que a edição de tantas medidas provisórias e a falta de critérios legislativos, somente proporcionam demandas e mais demandas contra o Estado. Se o Estado – e aqui visto sob o enfoque dos três poderes – fosse realmente igualitário, o número de demandas contra ele seria em escala bem menor.

            Assim, a fim de justificar a constitucionalidade de normas criadas em períodos ditatoriais de nossa história, nossos Tribunais permanecem inertes às transformações societárias e privilegiam o Estado:

            "O legislador ordinário, considerando a complexidade e o "vulto dos negócios do Estado (PONTES DE MIRANDA, "Comentários ao Código de Processo Civil", tomo III/145, 2a. ed., 1974, Forense) e tendo presentes as dificuldades de ordem material e estrutural que oneram o desempenho da atividade processual da Fazenda Pública, instituiu um mecanismo de compensação, consagrado no preceito inscrito no art. 188 do Código de Processo Civil, destinado a viabilizar, tanto quanto possível, no plano das relações processuais, a situação de igualdade jurídica entre a entidade de direito público e os seus contendores.

            ...

            O benefício legal do prazo em dobro para recorrer traduz, na excepcionalidade de que se reveste, uma prerrogativa processual ditada, racionalmente, pela necessidade objetiva de preservar o próprio interesse público. Assim tem sido reconhecido tanto pela doutrina (ADA PELLEGRINI GRINOVER, "Os princípios constitucionais e o Código de Processo Civil, p. 30/38, 1973, Bushatsky; SÉRGIO FERRAZ, "Igualdade processual e os benefícios da Fazenda Pública", in RPGESP, vol. 13/15, p. 421; NELSON NERY JUNIOR, "Princípios Fundamentais da Teoria Geral dos Recursos", p. 79, 1990) quanto pela própria jurisprudência dos Tribunais, inclusive desta Suprema Corte (RTJ 95/321, rel. Min. DJACI FALCÃO; RF 201/118, rel. Min. LUIZ GALLOTTI), cujos pronunciamentos sempre se orientaram no sentido de plena validade jurídico-constitucional da norma que defere à Fazenda Pública a prerrogativa de dilatação do prazo recursal."

            Mas, se é verdade que the law is what the Supreme Court says it is, também é verdade que devemos, a cada dia, reforçarmos nossa convicção de que a lei existe para manter o Estado contratualista e que o indivíduo é parte deste plus que é o Estado.

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            Sem o povo, sem o princípio básico, sem a existência daquele de onde o poder nasce e em seu nome será exercido, o Estado não passa de uma figura metafórica, nada democrática e, por conseguinte, sem DIREITO.

            3.1.4. OS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS E A INEXISTÊNCIA DA NORMA PROTETIVA CONCEDIDA AO ESTADO

            Vivenciamos uma nova era. Jamais a preocupação com o acesso à justiça foi tão debatida quanto nos dias de hoje. O processo civil atravessa o que o Prof. Dr. Cândido Rangel Dinamarco afirma ser um processo de deformalização. E, dentro deste processo de deformalização, sem que o alternativismo seja a mola propulsora, o que se pretende é atribuir justiça aos julgados.

            A justiça, esta figura empírica, sucumbe a determinados posicionamentos que violam as normas constitucionais. Contudo, não sucumbem os pensadores do direito, que jamais deixaram de produzir seus temas, com o fim de, ao menos, provocarem mudanças para gerações que se seguirão. Sementes são plantadas e seus frutos serão colhidos.

            Dentro destes princípios que norteiam o processo moderno, a aceleração da entrega da prestação jurisdicional se apresenta como uma das mais importantes.

            Com o advento da Lei 10.259/2001, o legislador desperta para o anacronismo que é esta proteção excessiva ao Estado. Na forte tendência anglo-saxônica que inspira o processo civil brasileiro, surgem os Juizados Especiais [36].E, especificamente no que se refere aos Juizados Especiais Federais, a norma contida no art. 9o.:

            "Art. 9o. Não haverá prazo diferenciado para a prática de qualquer ato processual pelas pessoas jurídicas de direito público, inclusive a interposição de recursos, devendo a citação para a audiência de conciliação ser efetuada com antecedência mínima de trinta dias."

            Os Juizados Especiais surgem, neste movimento de forte inspiração anglo-saxônica, garantido e primando pelo acesso à justiça. E, diante de uma norma com este cunho, somente se pode afirmar que o art. 188 do CPC viola o princípio da isonomia.


4. CONCLUSÃO

            Que o Estado é superparte no processo não restam dúvidas!

            Que há ferimento ao princípio da isonomia, também não restam dúvidas, ainda que nossa Corte Maior afirme de forma contrária, protegendo os interesses estatais.

            Seja no campo filosófico, seja no campo jurídico, inexiste no processo civil, com exceção da novel norma inserida na Lei 10.259/2001, igualdade entre as partes no processo, quando uma destas partes é o Estado.

            E não se pode conceber um Estado Democrático de Direito onde ele mesmo se apresenta, através de seus poderes – que, em tese, são independentes e harmônicos entre si -, com poderes maiores frente aos verdadeiros detentores do poder, ou seja, os cidadãos.

            Sem cidadão inexiste a figura estatal. Sem cidadão, inexiste, na figura contratualista, a cessão de poderes. Contudo, os poderes são cedidos e transferidos e o mandatário passa a ser detentor de um poder maior do que aqueles que os foram confiados.

            Mera ficção jurídica, que faz com que os ideais de cidadania sejam perdidos em promessas. E as promessas são sempre um vácuo. Quando não são este vácuo enorme na busca enfurecida pelo poder, as promessas não passam de uma asa de cera, que ao chegar próxima ao sol, certamente, derreterá.

            O atual Presidente da República Federativa do Brasil – e aqui socorro-me do texto de Jacques Chevallier, sobre a Alta Administração Pública – Luiz Inácio Lula da Silva, se apresentou em campanha eleitoral com o lema a esperança vencerá o medo.

            Contudo, a esperança decantada em palanques democráticos, não só não venceu o medo, como lhe aumentou. Se antes poderíamos, dentro da conceituação de Nietzsche, admitir que o nosso Presidente era moral, porque forte era enquanto representante sindical e "defensor" dos excluídos, é certo que hoje, não mais excluído e detentor do poder máximo dentro do que se convencionou denominar Estado Democrático de Direito, esqueceu-se de seus pares.

            E esta é a visão doce do poder, que nas palavras de Montesquieu, todo aquele que detém o poder, tende a abusar dele.

            Para Lincoln, bastava conceder a alguém o doce sabor do poder para testar-lhe seu caráter.

            O Estado... Pois bem! Se concedo ao Estado os poderes que a mim são inerente, não pode ele agir com mais poderes do que os concedidos. Em Direito Civil teríamos, certamente, uma revogação do mandato por vício material, já que há abuso do mandatário.

            Contra o Estado, dentro do princípio contratualista, ainda que a figura do impeachment, também de natureza anglo-saxônica, se possa utilizar, será através de pensamentos, e sempre através dos pensamentos mais elevados, que construiremos teses a reforçar a necessidade do bem comum ser atingido.

            A grande justificativa para uma proteção ao Estado é a de que ele prima pela coletividade. Mas quem é a coletividade senão um, e daí, mais indivíduos outorgando poderes a este Estado?

            Sem um elemento constitutivo da nação, inexiste povo. Sem povo, não há que se falar em Estado.

            Contudo, um povo subjugado por anos de regime ditatorial, quando normas foram concebidas, ainda sofre, apesar de vivenciar, em sua história tão presente, movimentos por diretas, por uma Constituição realmente desenhada para o povo brasileiro.

            Não me resta a menor sombra de dúvida que o art. 188 do CPC é uma violência ao princípio da isonomia. Fere preceito constitucional. Fere disposição infraconstitucional. Fere nossos sentimentos de protegidos por nossos mandatários.

            Contudo, que a esperança dos mestres, a lecionar, incansavelmente através de suas cátedras, provoque a verdadeira vitória contra o medo. Porque se dependermos, ao menos por enquanto, de nossos mandatários, o medo continuará vigendo, como vigia na Idade Média.

            Enquanto o Estado detiver tamanho poder, jamais passaremos da singela idéia de que estamos em um medievalismo iluminado.

            Contudo, há, ainda que de forma muito tênue, algo de iluminado. E esta iluminação não fará cansar a vista e as vozes dos mestres da academia.

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Sobre o autor
José Carlos de Araújo Almeida Filho

advogado no Rio de Janeiro, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA FILHO, José Carlos Araújo. O Estado como superparte no processo:: uma violação ao princípio da isonomia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1055, 22 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8437. Acesso em: 25 abr. 2024.

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