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Da reforma da previdência e seus vícios de constitucionalidade

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Atualmente, uma das reformas mais discutidas na sociedade brasileira é a da previdência. E ainda não se parece ter chegado a um consenso sobre a qualidade de seus impactos.

1.INTRODUÇÃO

Atualmente, uma das reformas mais discutidas na sociedade brasileira é a da Previdência. O tema costuma suscitar intenso debate, tanto pela dimensão econômico-fiscal – tendo em vista que sua despesa compromete parcela significativa dos orçamentos públicos – como pela dimensão político-social, devido aos reflexos diretos de mudanças nas regras previdenciárias sobre um conjunto grande da população, incluindo contribuintes/segurados e beneficiários.

No Brasil, a indispensabilidade da reforma decorreu não apenas da necessidade de correção de distorções, como também do dever de garantir a sustentabilidade fiscal a médio e a longo prazo, em um contexto de rápido e intenso envelhecimento populacional. Nesse sentido, observa-se que o país já enfrenta níveis de despesa elevados, com uma trajetória crescente e insustentável, além de estar em patamar muito acima do que seria esperado em razão de sua estrutura demográfica atual, ou seja, mesmo não possuindo parcela tão elevada de idosos em sua população.

Desse modo, possuindo como fundamento a crise econômica, fiscal, mudanças demográficas, maior importância de equilíbrio financeiro e atuarial da previdência do país, e o devido respeito às disposições da EC nº 95, que aborda sobre o teto de gasto público primário, a Reforma da Previdência foi proposta e aprovada.

O presente trabalho, por meio da utilização da metodologia de trabalho científico dedutivo, ante análises de bibliografias, legislações, jurisprudências, pertinentes ao tema, visa a analisar alguns pontos considerados inconstitucionais na Reforma da Previdência, que, segundo alguns estudiosos do Direito, acabam por ferir direitos e garantias individuais, dentre eles: a extinção da aposentadoria por tempo de contribuição que, violando o direito fundamental à previdência, revoga as regras de transição impostas pelas emendas constitucionais 20/98 e 41/03 e retira proteção do trabalhador rural e das mulheres, além de reduzir o cálculo dos benefícios, dentre outros.


2. Da reforma da previdência (PEC 06/2019)

O Poder Executivo, no dia 20/02/2019, encaminhou ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 6/2019, que “Modifica o sistema de previdência social, estabelece regras de transição e disposições transitórias, e dá outras providências”.

O texto foi submetido, inicialmente, à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara para o exame de admissibilidade. Após, passou por uma Comissão Especial, que analisou o mérito da matéria e, na sequência, foi submetida a dois turnos de votações no Plenário da Câmara dos Deputados, antes de seu envio para a apreciação do Senado Federal.

Na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, foi designado um relator para o exame da constitucionalidade formal do texto. Nesta fase não couberam emendas, exceto de redação ou supressivas, propostas pelo relator para afastar inconstitucionalidades, mas houve pedido de vistas do parecer, o que retardou a votação em pelo menos dois dias.

Na fase seguinte, a Comissão Especial foi constituída por ato do Presidente da Câmara dos Deputados, sendo formada por 20 membros titulares e 20 suplentes, tendo o prazo de 40 sessões para debater e votar o mérito da proposta, sendo que, durante as dez primeiras sessões, foi possível a apresentação de emendas à PEC, desde que subscritas por, no mínimo, 171 deputados. A comissão teve um presidente e um relator, cabendo a este a árdua tarefa de articular um texto, cuja apresentação pode se dar apenas após cumprido o prazo de dez sessões destinadas à apresentação de emendas.

Após a votação na Comissão Especial, a matéria foi analisada pelo Plenário da Câmara dos Deputados que, para ser aprovada, teve de obter 308 votos favoráveis em dois turnos de votação. Nessa etapa, também couberam emendas aglutinativas e a votação de destaques, o que demandou um tempo para sua apreciação.

Em linhas gerais, a proposta do Governo Bolsonaro unificou as regras dos regimes geral e próprio, impondo novas exigências para a concessão de benefícios, inclusive para os trabalhadores rurais, idosos e deficientes carentes, proibindo a acumulação de benefícios e abrindo caminho para a adoção do regime de capitalização na Previdência pública, como uma etapa para a privatização da Previdência Social.

Trata-se de uma proposta muito dura sobre os atuais e futuros segurados, que atinge os três pilares da Previdência Social, todos em prejuízo do segurado: a idade, que aumenta; o tempo de contribuição, que aumenta; o e valor do benefício, que diminui.

A PEC fez a opção pela desconstitucionalização das regras previdenciárias ao remeter sua definição para várias leis complementares, que são mais fáceis de serem modificadas no futuro. O conteúdo dessas leis complementares é, em grande parte, incerto, e apenas se submeterão a alguns parâmetros básicos. Todavia, a matéria a ser tratada por elas não poderá ser veiculada por medidas provisórias, exigindo maioria absoluta para sua aprovação.


3 PRINCIPAIS DISCUSSÕES A RESPEITO DA (IN) CONSTITUCIONALIDADE DA REFORMA DA PREVIDÊNCIA

Muitos dizem que a PEC 06/2019, ou PEC da Reforma da Previdência, é inconstitucional por ferir direitos e garantias individuais. Será que o art. 60, § 4º, inciso IV deve ser interpretado literalmente? Ou quis o constituinte originário estender o alcance dos direitos e garantias individuais também para o rol dos direitos sociais?

Os direitos e garantias fundamentais classificam-se, principalmente, em direitos de primeira geração, segunda geração e terceira geração. Para o objetivo deste artigo, abordaremos apenas os dois primeiros. (LENZA, 2010)

Os direitos de primeira geração são aqueles voltados para defender o indivíduo da ação autoritária e abusiva do Estado. Já as garantias, são os remédios constitucionais voltados a efetivar essa defesa na prática. Nelas estão elencados os direitos e garantias individuais. Já nos direitos de segunda geração, os indivíduos possuem o direito a prestações. Neste caso, o Estado deve agir de modo a garantir o bem-estar social e a atenuar desigualdades. Nessa classe entram os chamados direitos sociais, cujos principais exemplos pode-se encontrar no art. 6º, estando a previdência social neste rol. (LENZA, 2010)

Na redação do art. 60, § 4º, IV, a Lei Maior dispõe que não será objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir “os direitos e garantias individuais”.

Parte da doutrina entende que os direitos sociais não entram no rol das cláusulas pétreas, já que o constituinte originário fez a distinção da espécie direitos e garantias individuais dentro do gênero dos direitos e garantias fundamentais. (LENZA, 2010)

Outros doutrinadores advogam a tese de que a dignidade da pessoa humana, sendo um dos fundamentos da República (art. 1º, I), também aborda o valor social do trabalho, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais. (LENZA, 2010)

Eles argumentam que, como o constituinte originário tratou os princípios fundamentais como pedra angular do arcabouço jurídico e situou os direitos sociais como base dessa construção, os direitos sociais não podem deixar de ser considerados como cláusulas pétreas. (LENZA, 2010)

Para os que seguem o segundo entendimento, a Reforma é inconstitucional, pois afronta postulados e princípios fundamentais estabelecidos pelo constituinte originário, que elegeu os direitos sociais entre os valores principais de todo o ordenamento jurídico pátrio.

Segundo Ferman (2019), entre os principais pontos sobre os quais a inconstitucionalidade da Reforma da Previdência recai, está: a violação ao direito fundamental à previdência, disposto no artigo 6º, CF. A reforma tornou mais rígidos os quesitos sociais e geográficos dos brasileiros, para que seja possível a obtenção de benefícios previdenciários.

Outro ponto que merece destaque, segundo Ferman (2019), seria a quebra da isonomia entre homens e mulheres, pois a reforma dispõe a respeito da mesma idade mínima para aposentadorias rurais e para professores entre homens e mulheres. Ou seja, confere tratamento igual aos desiguais e retira o tratamento protetivo conferido às mulheres pela Constituição Federal de 1988.

A proibição de acumulação de benefícios e valor proporcional da pensão também são pontos que vão de encontro aos ditames da Carta da República de 1988. Tal previsão proíbe acumular integralmente os dois benefícios e, também, o valor passar a ser de 50%, mais 10% por dependente, o que afronta a segurança jurídica, a dignidade da pessoa humana e a vedação ao retrocesso, pois estabelece uma importante diminuição para os benefícios adquiridos depois de um grande prazo de custeio previdenciário de maneira não justificada. (FERMAN, 2019)

A regra de transição, como apresentada pela reforma, vai de encontro à segurança jurídica, sendo veementemente inconstitucional, haja vista que passa a dotar uma espécie de pedágio de cinquenta por cento para quem está há 2 anos de se aposentar, quando deveria propor, nesse caso, um pedágio proporcional ao tempo restante para a aposentadoria do segurado, o que seria o mais correto. Nesse caso, resta evidente que há uma quebra da proteção da confiança, elemento essencial da segurança jurídica, garantia individual expressa no artigo 60, §4º, IV, CF. Segundo Bastos (2010), não considerar o tempo de contribuição e sim a idade, viola o direito do valor social do trabalho.

Elevação da alíquota para até vinte e dois por cento para os servidores demonstra uma nítida diminuição nominal do salário, haja vista que tal contribuição se destina ao mesmo orçamento que o remunera, o que é proibido pela Constituição Federal (artigo 7º, VI). (FERMAN, 2019)

Outra questão que vale a pena ser mencionada diz respeito à decadência, cuja regra recebeu nova redação no artigo 103, por meio da qual afirmou-se que esta será aplicável também aos atos de indeferimento, cessação ou cancelamento do benefício previdenciário. Isso é inconstitucional, uma vez que resultará em impedimento do exercício de direito fundamental ao benefício previdenciário. Nessa situação, acontece a violação ao direito de proteção previdenciária, que é um direito humano e fundamental, resultante da própria proteção à dignidade da pessoa humana. Não se pode atribuir regime de preclusão temporal aos direitos humanos fundamentais, sendo estes imprescritíveis. (LENZA, 2010)

Assim, há flagrante retrocesso entre as normas estabelecidas, principalmente nos temas dos novos cálculos de benefícios, da exigência de tempo de contribuição e idade mais avançada para a aposentadoria dos professores, da extinção da periculosidade como elemento caracterizador da aposentadoria especial, da vedação de conversão favorável de tempo especial para comum, em relação a tempo de serviço prestado a partir da data de promulgação da emenda, da redução drástica do valor do benefício de pensão por morte, entre outros. (FERMAN, 2019)

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CONCLUSÃO

O sistema previdenciário afeta a vida de praticamente todos os brasileiros. Justamente pelo alto impacto em seguridade social, ele está sempre sob a constante vista da sociedade.  

Vivencia-se momento em que se busca maior integração de todos os atores envolvidos nas relações de capital e trabalho, e se nota que, a passos muito lentos, no decorrer das últimas três décadas, ocorreu a conscientização de todos com relação à proeminência da segurança do trabalho, da preservação da saúde ocupacional e da obediência às normas regulamentadoras que representam um mínimo, em se tratando de garantias para a construção de um meio ambiente do trabalho seguro e salubre.

A reforma da previdência tem por finalidade reduzir drasticamente os gastos com pensões e aposentadorias dos atuais servidores, privatizar a previdência pública e retirar a natureza pública da previdência complementar fechada dos servidores públicos, abrindo a possibilidade de sua entrega para os bancos e seguradoras.

A ampla modificação legislativa que aconteceu na espécie foi, segundo os defensores da reforma, no sentido de adaptar a legislação às novas realidades materiais dos trabalhadores e, também, respeitar o direito alcançado e o princípio básico de segurança jurídica, que é o tempus regit actum.

A dicção do artigo 60, § 4º, da Constituição Federal, não possui o condão de restringir hermeticamente a natureza intangível dos direitos fundamentais individuais, uma vez que esta lhes é intrínseca, em todas as suas dimensões, como elemento de concretização da dignidade humana.

Assim, a partir de uma interpretação crítica, sistemática e teleológica do texto constitucional, conclui-se que a previdência social, por ser meio de concretização dos direitos fundamentais, assim como os outros direitos sociais que integram a Seguridade Social, deve ser considerada como cláusula pétrea implícita, porquanto representa um maior nível de democratização do acesso aos bens indispensáveis para uma vida digna de ser vivida.

Por fim, salienta-se que não se deve congelar o texto constitucional diante de novas realidades sociais e econômicas, mas sim, defender que as alterações constitucionais e infraconstitucionais, no que tange à previdência social, sejam pautadas pelo respeito à concretização dos direitos fundamentais já conquistados, sob pena de absoluta ilegitimidade constitucional.


REFERÊNCIAS

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 22. ed., 2010.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 33 ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

COSTANZI, Rogério Nagamine; LOZARDO, Ernesto; SANTOS, Cláudio Hamilton dos; O Crescimento Insustentável dos Gastos com Previdência e Pessoal. Brasília: Ipea, fev. 2018.

FERMAN, E. Previdência social no brasil: um ponto fora da curva. Departamento de Economia, PUC-RIO. Rio de Janeiro. 96 p. 2019

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado.14ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2010.

SOUZA, Jorceli Pereira de. Os Oitenta anos da Previdência Social. Brasília: MPAS, 2017.

TAFNER, P. Seguridade e Previdência: Conceitos Fundamentais. In: Tafner, P.; Giambiagi, P. (Orgs.). Previdência no Brasil: debates, dilemas e escolhas. Rio de Janeiro: Ipea, 2007.

TAVARES, Marcelo Leonardo. Direito previdenciário. 7. ed. rev. e atual. Niterói: Lumen Juris, 2005.

TIBERTO, B. P.; DWECK, R. H. Previdência Social Brasileira: análise financeira da década de 2000 e discussão sobre propostas de reformas. Niterói, CEDE/UFF, Texto para Discussão No 31, 2011.

TOKARNIA, Mariana. Déficit da Previdência Equivale 2,8% Do PIB. Brasília. 22 de janeiro de 2018.

WEINTRAUB, Arthur Bragança de Vasconcellos. Previdência privada: atual conjuntura e sua função complementar ao regime geral da previdência social. 2.ed. São Paulo: J. de Oliveira, 2019.

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Sobre os autores
Cleidir Jander Lima Moraes

Estudante do 7º período do curso de Direito da Faculdade Luciano Feijão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALCANTARA, Gleiciane ; MORAES, Cleidir Jander Lima Moraes. Da reforma da previdência e seus vícios de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6245, 6 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84428. Acesso em: 24 abr. 2024.

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