" INCERTEZA. Tal é o princípio que rege de hoje em diante a marcha do mundo. O campo de instabilidade alargou-se às dimensões do planeta e, em quase todos os domínios, reina agora a indeterminação. Ao universo previsível da Guerra Fria (equilíbrio pela potência militar comparável dos dois supergrandes) sucede um contexto geopolítico fortemente perturbado, imprevisível, enigmático.
LE MONDE DIPLOMATIQUE, jan.1992 "
A idéia de sociedade como resultado de um movimento natural do homem remonta ao século IV a.C., a partir da afirmação aristotélica de que "o homem é naturalmente um animal político" ("zoom polithikón"). Para esse filósofo, somente as pessoas de natureza vil ou superior optariam pela vida em isolamento dos seus iguais. O agrupamento social humano seria formado pela opção da razão humana, pelo que estaria colocado em pólo oposto o agrupamento animal, formado unicamente pelo instinto.
Nessa mesma linha de raciocínio, Cícero (Roma, século I a.C.), identificava como causa primeira da agregação do homem não a sua debilidade, mas um certo instinto de sociabilidade inato ao gênero humano, o que o levaria "mesmo na abundância de todos os bens, a procurar apoio comum". Santo Tomás de Aquino afirmava que a vida solitária é exceção, classificável em três categorias: excellentia naturea (indivíduo excepcionalmente virtuoso), corruptio natura (indivíduo com problemas mentais) e mala fortuna (quando o isolamento decorre de acidente – como e.g., um naufrágio).
Na base dos argumentos de quaisquer dos três pensadores, encontramos a tentativa de justificar o fenômeno da agregação humana como uma razão natural, relacionada com a própria índole do homem e à sua natureza mesma. Não seriam, assim, nem a proteção, nem a alimentação, nem o espírito belicoso do homem os inspiradores da formação social, mas um simples impulso associativo natural. Sendo assim, o homem é induzido fundamentalmente por uma necessidade natural de associar-se, e a pesquisa em torno do homem, mesmo nas épocas mais remotas que se pode alcançar, sempre o revelará vivendo de forma associativa, e essa convivência é que possibilita aos homens beneficiarem-se mutuamente de suas energias, conhecimentos e experiências.
Em sentido diametralmente diverso do acima, outros pensadores admitem que a sociedade é meramente o resultado de um acordo de vontades, uma combinação voluntária entre os homens, dando origem assim à chamada teoria contratualista. Em "A república", Platão evidencia os primeiros traços históricos da sociedade contratualista, a partir da afirmação deste da existência de uma organização social construída racionalmente, afastando, pelo menos aparentemente, a idéia da inspiração natural, quase instintiva, na formação dos grupamentos sociais.
A primeira proposição clara do "contratualismo" em "O leviatã", de Thomas Hobbes, observa que o homem tem inclinação natural para a vida não associativa, classificada por ele como "estado de natureza", e cuja conceituação alcança qualquer situação de desordem ou caos que são observáveis quando não há, sobre os homens, uma força capaz de contê-lo e aos seus excessos, sendo também expressão desse estado de natureza os estágios mais primitivos da história do homem. Para Hobbes, o homem, em estado de natureza, é egoísta, luxurioso, violento, possessivo e belicoso. Para refrear a exteriorização desses instintos que lhe seriam naturais, o homem se valeria de sua razão, que o levaria à celebração do contrato social, uma mútua transferência de direitos baseada no esforço pela paz e na abdicação de parcelas de seus direitos para viabilizar a vida em sociedade. O temor ao castigo se encarregaria de garantir o funcionamento do grupo social. E o titular do poder de castigar seria o Estado, detentor do poder de gerir, em benefício coletivo, os interesses e direitos abdicados pelo homem em benefício do grupo. O conceito de Estado, seria, então, "uma pessoa [personificação] de cujos atos se constitui autora uma grande multidão, mediante pactos recíprocos de seus membros, com fim de que essa pessoa possa empregar a força e os meios de todos, como julgar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comuns". Excessivamente absolutista, essa concepção de Hobbes daria espaço para o surgimento de reações a ela.
A partir de John Locke estabelece-se uma concepção de fundo marcadamente religioso, pelo que a reunião do homem seria feita sob a opção de Deus e com Montesquieu, uma concepção para quem o homem se associaria por ser sabedor de sua fraqueza e pelo temor dessa consciência, além de ser influenciado pelo desejo da paz, atração natural pelo sexo oposto, o sentimento de necessidade de alimentos e proteção, dentre outros.
O grande marco da teoria contratualista foi a obra de Jean Jacques Rousseau, "O contrato social". Para ele, o fundamento da sociedade é a vontade, não a natureza humana, e essa vontade teria como móvel a necessidade de uma força maior para que o homem superasse os obstáculos à sua sobrevivência, força essa que só seria obtenível a partir da soma das forças individuais de cada um dos membros de um grupo social, resultando em um ente mais forte que cada um deles individualmente. A equação ideal que levaria a esse estágio está localizada na abdicação, por cada associado, de todos os seus direitos em favor da comunidade, e que seriam exercitáveis a partir dela e em nome dela por uma entidade moral e coletiva, o Estado, executor das decisões e soberano nas decisões pelo todo coletivo. As diretrizes do "contratualismo" de Rousseau inspiraram a própria concepção moderna de democracia, a partir da prevalência da vontade popular, de identificação do povo como titular do poder, do reconhecimento da liberdade natural e da busca da igualdade.
Assim, o Estado [Estadoà força-política-poder", segundo Weber], com o pressuposto de dominação da sociedade através de algum tipo de consenso [ideologiaà "camuflagem" - concepção marxista] em vez da imposição desumana das relações de poder estabelecidas para amortecer a oposição de classes, não tanto mais aceitáveis nos dias atuais, visa a "eliminação" de quase todas as causas de disputa e desentendimento entre as mesmas, onde as pessoas são tratadas não como fins, mas como meios, instrumentos ou sujeitos sem autonomia.
É a vez da "política". O "mito político", ainda hoje, é o padrão dos símbolos políticos que têm curso em uma sociedade, consistindo nas perspectivas políticas mais firmemente aceitas, e, quer sejam de fato verdadeiras, quer falsas, são consideradas verdadeiras pela massa, com tal confiança que, praticamente, não aparentam ter o caráter de suposições. Os segmentos dominados (os desfavorecidos) aceitam valores, onde esses valores (da classe dominante) são interiorizados pelo restante da sociedade, o que caracteriza uma situação de "hegemonia" (na acepção de Gramsci) de uma elite econômica, principalmente, em detrimento de uma maioria trabalhadora.
Obviamente, a estratégia adotada para se lidar com as questões urgentes da maioria carente é colocar diante dela a miragem de uma possível aproximação do modelo ideal, o "capitalismo", a sociedade do "alto consumo de massa", representado, principalmente, pelo paradigma norte-americano.
A tarefa de superar o subdesenvolvimento no "terceiro mundo" é definida como simples modernização e convergência com os valores do mundo desenvolvido até que a era do alto consumo de massa possa tornar-se universal. Ao mesmo tempo, a alternativa socialista é descrita, com "objetividade científica", como uma espécie de doença que pode acometer uma sociedade em transição se ela não conseguir organizar efetivamente aqueles elementos em seu interior que estão preparados para enfrentar a tarefa da modernização, hoje ainda mais reforçada esta idéia, em função da derrocada do socialismo soviético e do leste europeu. Apesar disso, no mundo real do capitalismo global, a relação entre riqueza e pobreza tem sofrido a maior gama de críticas em contraposição ao suposto desenvolvimento geral das nações em desenvolvimento.
Surge, novamente, mais uma vez, a presença do "Estado", que aparece para reforçar a sua função "assistencialista" como forma de ratificar o modelo capitalista como modelo econômico altamente viável, apesar de ter diminuído a sua atuação na década de 90, fato ocorrido em praticamente todo o mundo capitalista, salvo algumas exceções, v.g., como Suécia, Bélgica e outros poucos países europeus.
Este suporte que o "Estado" tem dado ao modelo capitalista (neo-liberal), aos segmentos empresariais interessados e de modo geral, repercute na questão do "bem estar social", e, sempre com a alegação de que ocorrem despesas exuberantes nas áreas de políticas sociais, áreas estas, cada vez menos atendidas em termos de investimentos, e.g., saúde, educação, sendo, inclusive, penalizadas sempre com cortes de verbas cada vez maiores, encobre, na verdade, a sua própria "ineficiência" como aparelho gestor dos recursos disponíveis que, em nosso caso específico, é demonstrado claramente pela sua "incompetência", haja visto as más aplicações das verbas e gastos desnecessários em áreas e setores que não são prioritários, aliás, um procedimento de conduta histórico, além, é claro, da sua "ausência" em termos de controle e auditoria no sentido de verificação da lisura e probidade dos referidos gastos (v.g., caso do prédio do TRT em São Paulo).
Logo, a propaganda ideológica neo-liberal é contraposta ao perigo do marxismo, ou da "esquerda" ou qualquer espécie de resistência; o arsenal benéfico da ciência modernizadora que começou nos anos 30, com a "revolução gerencial" (taylorismo), seguida pelas revoluções "keynesiana", "tecnológica", "científica", "segunda revolução industrial" e, segundo alguns ideólogos e políticos, até pela "terceira revolução industrial" (revolução da informática), tentam reforçar o "processo evolutivo" da política neo-liberal (é importante ressaltar que todo saber está baseado efetivamente num dado interesse, parafraseando Habermas).
A única coisa cuidadosamente excluída da série legítima das revoluções é a transformação revolucionária das relações sociais dominantes de produção e distribuição. Porém, o discurso supostamente "objetivo e científico" da "sociedade pós-industrial" demonstra, também neste aspecto, a sua função de ruidosa racionalização ideológica dos relacionamentos exploradores estabelecidos, além de promover, como exemplo, "transferências de tecnologia", geralmente obsoletas, reproduzindo práticas produtivas das mais odiosas, juntamente com suas conseqüências altamente desastrosas (em termos ambientais, sociais e de saúde), sob o pretexto de "auxílio ao desenvolvimento" dos países dependentes. Portanto, a ideologia torna-se a consciência prática inevitável das sociedades de classe, articulada de modo que os membros das forças sociais opostas possam tornar-se conscientes de seus conflitos materialmente fundados e resolvê-los pela "luta"; a questão realmente importante é a seguinte: os indivíduos, equipados com a ideologia da classe a que pertencem, estarão ao lado da causa da emancipação, que se desdobra na história, ou se alinharão contra ela?
A ideologia pode (e de fato o faz) servir a ambos os lados com seus meios e métodos de mobilização dos indivíduos que, por menos que o compreendam com clareza, necessariamente participam da luta que se desenrola. Para provar sua continuada viabilidade, a ordem sócio-econômica estabelecida constantemente se adapta às condições mutáveis da dominação.
Através de toda a história conhecida, a ideologia tem desempenhado papel importante nesse processo de readaptações estruturais. A reprodução bem sucedida das condições de domínio não poderia ocorrer sem a intervenção ativa de poderosos fatores ideológicos em prol da manutenção da ordem existente ou do estabelecimento de uma nova ordem. Naturalmente, a ideologia dominante tem forte objetivo e diretriz como o interesse em preservar o seu status quo, em que até as desigualdades mais patentes já estão estruturalmente entrincheiradas e salvaguardadas. Por isso, pode se permitir proclamar as virtudes dos arranjos "consensuais", de "unidade orgânica" e "participação", reivindicando para si, desse modo, também a racionalidade evidente da "moderação" (da classe dominante).
Mas, na realidade, a ordem social que ela defende é necessariamente dilacerada por contradições e antagonismos internos, por mais bem sucedida que possa ser, através dos tempos, a reprodução do arcabouço estrutural hierárquico de domínio e subordinação e a "aparência" de "comunalidade orgânica" e "interesses mútuos e comuns", perpetua, desta forma, sempre, o efetivo "controle" da ordem social (sociedade). O "mito da unidade orgânica" vem dominando o discurso ideológico desde que o relacionamento social teve de se conformar com os imperativos materiais de garantia da continuidade da estrutura. Do ponto de vista da ideologia dominante, o conflito hegemônico, sempre em andamento, nunca será descrito como um conflito entre potenciais desiguais, e isto ocorre para a preservação e continuidade não apenas com respeito à suposta "organicidade" da ordem estabelecida, mas também quanto às suas determinações objetivas e às instituições de controle sócio-econômico e político-cultural.
Portanto, ao mesmo tempo em que as contradições do mundo, em termos sociais, de movimentos sociais, de identidade cultural, religiosa e/ou étnica tornam-se cada vez mais fortes, manifestando-se em escala cada vez mais global, são sempre repetidamente declaradas já "superadas" ou "em fase de superação", no momento mesmo em que sua versão anterior perde a sua "legitimidade" e credibilidade, numa sucessão interminável de construções ideológicas que metamorfoseiam, sob um novo rótulo qualquer de "pós-......." ("qualquer coisa"), sempre dessocializado, sempre com a mesma racionalização "apaziguadora" que embaça a visão dos que dela sofrem por dependência de suas decisões.
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