A delação premiada no Brasil e sua influência em Portugal.

Reflexões críticas pautadas em princípios processuais penais constitucionais

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08/08/2020 às 12:45
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O presente artigo pretende estudar a delação premiada dentro do ordenamento jurídico brasileiro e sua influência nas discussões sobre o tema em Portugal, concluindo que o instituto é uma flagrante violação a diversos princípios constitucionais essenciais.

INTRODUÇÃO

O instituto da delação premiada pode ser considerado uma espécie de obtenção de provas, utilizado no Direito Processual Penal, mais precisamente no âmbito do direito premial. A delação ocorre quando é dada ao acusado de um delito a possibilidade de denunciar outros eventuais coautores do ato e, em troca, tem sua pena atenuada ou extinta, como uma maneira de premiá-lo pela colaboração prestada.

No Brasil, o instituto, aos poucos, incorporou-se em legislações esparsas que regulamenta delitos específicos como, por exemplo, a Lei de Crimes Hediondos. Foi em 2013 que a prática ganhou mais força no país, devido a promulgação da Lei 12.850/13, encarregada de, entre outras funções, disciplinar a matéria da colaboração premiada.

Aliado a isso, em 2014 iniciou-se no país uma operação da Polícia Federal, denominada Operação Lava Jato, responsável pela denúncia de um esquema de corrupção envolvendo diversos políticos e empreiteiros e, nessa investigação e nos processos que dela derivaram, a prática da delação premiada tornou-se ainda mais corriqueira.

Portanto, pretende-se estudar, neste trabalho, o instituto da delação premiada, analisando, em um primeiro momento, seu conceito, natureza jurídica e origem. Posteriormente, é preciso identificá-lo dentro no ordenamento jurídico brasileiro.

Assim, será possível estudar o instituto sob o ângulo da sua aplicação no contexto da Operação Lava Jato, com o objetivo essencial de promover reflexões críticas sobre a delação premiada e a sua (in)compatibilidade com o ordenamento jurídico constitucional brasileiro.

Por fim, chega-se à uma observação e percepção sobre a maneira com que a aplicação do instituto da delação premiada no Brasil vem exercendo forte influência no sistema jurídico português e nas discussões políticas sobre o tema no país.


1. O instituto da delação premiada: conceito, natureza jurídica e origem

A palavra “delação” vem do verbo “delatar”, que significa dedurar ou denunciar alguém. Enquanto o adjetivo “premiada” sugere que haverá um prêmio para essa delação, isto é, uma recompensa que, nesse caso, acontecerá em forma de atenuação ou extinção de uma pena.

Para o professor brasileiro Marcus Cláudio Acquaviva (2008, p. 168), a expressão delação premiada trata-se de um conjunto de informações prestadas pelo acusado que favorecem a identificação dos demais co-autores do crime. Logo, observa-se que o instituto somente é aplicável em crimes praticados por mais de um autor, isto é, em concurso de agentes.

Para Adalberto José Q. T. De Camargo Aranha (1996 -p.110):

A delação, ou chamamento de co-réu, consiste na afirmativa feita por um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido na polícia, e pela qual, além de confessar a autoria de um fato criminoso, igualmente atribui a terceiro a participação como seu comparsa.

Mougenot (2016, p. 470), por sua vez, afirma que delação premiada “é o benefício que se concede ao réu confesso, reduzindo-lhe ou até isentando-lhe de pena, quando denuncia um ou mais envolvidos na mesma prática criminosa a que responde”.

A natureza jurídica da delação premiada é estudada por parte da doutrina de Direito Processual Penal como um meio de obtenção de provas (LOPES Jr., 2016, p. 198) que, através dele, objetiva-se obter mais sucesso nas investigações e punições, principalmente concernente aos crimes organizados.

Contudo, o ministro Dias Toffoli, nos autos do habeas corpus 127.483, considerou a natureza jurídica da delação premiada como “negócio jurídico processual”, isto é, um negócio jurídico com produção também de efeitos processuais, normatizado pelo novo Código de Processo Civil. Ademais, o voto do relator foi acompanhado pela unanimidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

O autor Edson Ribeiro (2019) concorda com a posição do ministro e também traz a natureza jurídica da delação premiada enquanto um negócio jurídico processual, e não como um meio de obtenção de provas:

Assim, a delação premiada se caracteriza por ser um acordo amplo no qual acusação e defesa compõem, por meio de cláusulas, direitos e deveres com produção de efeitos em diversos ramos do direito como questões afetas ao direito de liberdade e de patrimônio, aliada ao compromisso da acusação de oficiar outras agências estatais no sentido da não punição pelos fatos revelados, revelando claramente tratar-se de instituto que pressupõe manifestação livre de vontade com a criação de obrigações e a assunção recíproca de deveres entre acusado e acusação, produzindo efeitos em áreas diversas, incluída a penal. Esta é a essência da delação premiada e sua correta justificação dentro das ciências jurídicas encontra fundamento nesta premissa, de forma que se situa, indiscutivelmente, no campo dos negócios jurídicos, tal qual um contrato atípico ou previsto em legislação extravagante. Não se trata, portanto, de instituto do direito penal, mas de direito civil, produzindo efeitos e sujeitando-se a toda normativa dos negócios jurídicos, desde os seus elementos até as consequências de seus eventuais vícios.

Portanto, a delação premiada se concretiza por meio de um acordo estabelecido entre o réu e o Ministério Público ou a Polícia, no qual o delator, de forma voluntária, abre mão do direito constitucionais ao silêncio e à ampla defesa, pois deve confessar a sua participação no crime, bem como delatar os outros integrantes da ação criminosa e, ao final do processo, lhe é concedido alguns benefícios (SANTOS, DAHER JUNIOR, BOECHAT, PARÓDIA; PEREIRA, 2016, p. 3).

Cumpre ressaltar, ainda, a distinção entre os conceitos de delação e de colaboração premiada. A delação é uma forma de colaboração em que eventuais coautores do crime são apontados pelo delator. Parcela da doutrina costuma classificar a delação premiada enquanto uma das espécies de colaboração premiada, que seria o gênero, podendo existir, portanto, outras formas de colaboração premiada, que não envolvam necessariamente a delação, vejamos:

A doutrina aponta cinco espécies de colaboração premida, quais sejam: a) delação premiada; b) colaboração reveladora da estrutura e do funcionamento da organização; c) colaboração preventiva; d) colaboração para localização e recuperação de ativos; e) colaboração para libertação. (TEIXEIRA, 2017, p. 80)

Quanto à origem do instituto, é possível observar os primeiros sinais da prática de uma justiça premiada já na Idade Média, mais precisamente no período da inquisição, em que se valorava a prova da confissão, obtendo-a, geralmente, pelo emprego da tortura. Logo, observa-se que a delação premiada carrega fortes resquícios desse período, representando a estrutura inquisitória do direito processual penal (SILVA, 2013).

No ordenamento jurídico brasileiro, foi recepcionada pela primeira vez nas Ordenações Filipinas, no livro V, em seus Títulos VI e CXVI. Mais recentemente, já na década de 70, a delação premiada passou a ser utilizada com bastante frequência nos EUA (denominada plea bargaining) no combate ao crime organizado, sendo também adotada com grande êxito na Itália (denominada pattegiamento) em prol do desmantelamento da máfia (BAPTISTA, 2010).

A partir disso, diversos outros sistemas jurídicos penais, como o alemão, o norte americano e o brasileiro, incorporaram tal instituto de maneira mais incisiva, mesmo que com nuances e particularidades distintas. Atualmente, o instituto da delação premiada encontra-se disposta em diversos dispositivos legais infraconstitucionais do ordenamento jurídico brasileiro.

2. A delação premiada no ordenamento jurídico do Brasil

No ordenamento jurídico pátrio, a delação premiada é referida, pela primeira vez na normatização ainda vigente, no §4º do art. 159. do Código Penal, que diz respeito ao sequestro de pessoas com o fim do obter para si qualquer vantagem: “§4º Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços”. O parágrafo citado foi introduzido no Código Penal pela Lei de Crimes Hediondos, Lei 8.072/90, embora tenha tido sua redação modificada posteriormente pela Lei 9.269/96.

A supracitada Lei de Crimes Hediondos prevê, ainda, a redução da pena para participantes que denunciar o bando ou quadrilha em casos de crimes hediondos, prática de tortura, terrorismo e tráficos ilícitos:

Art. 8º Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288. do Código Penal, quando se tratar de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo.

Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços.

Portanto, verifica-se que, com o tempo, a delação premiada passou a espalhar-se pelas legislações do país, como, por exemplo, na Lei de crimes contra o sistema tributário (artigo 16, parágrafo único, da Lei 8.137/90), na Lei crimes praticados por organização criminosa (artigo 6º da Lei 9.034/95), na Lei de crimes de lavagem de dinheiro (artigo 1º, parágrafo 5º, da Lei 9.613/98), entre outras.

Contudo, foi a Lei nº 12.850/13, promulgada no ano de 2013, que representou o marco legal e histórico na regulamentação do instituto da delação premiada na legislação pátria.

A supracitada lei tem como objetivo definir organização criminosa e dispor sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal. Por isso, a lei trata tanto do gênero da colaboração premiada, quanto de uma das suas espécies, a delação premiada.

Com base no art. 4º da Lei nº 12.850/13, é possível identificar pelo menos cinco espécies de colaboração premiada, elencadas em seus incisos, sendo que a delação está prevista no primeiro inciso. O art. 4º da lei conta ainda com mais dezesseis parágrafos que trazem os requisitos, condições e regras processuais de aplicação da colaboração premiada como um todo. O art. 5º, por sua vez, elenca os direitos do colaborador. Dentre eles, destaca-se:

Art. 4o O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:

I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;

II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;

[...]

§ 1º Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração.

§ 2º Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28. do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).

[...]

§ 4º Nas mesmas hipóteses do caput, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador:

I - não for o líder da organização criminosa;

II - for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo.

§ 5º Se a colaboração for posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos.

[...]

§ 10. As partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor.

[...]

§ 13. Sempre que possível, o registro dos atos de colaboração será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações.

§ 14. Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade.

§ 15. Em todos os atos de negociação, confirmação e execução da colaboração, o colaborador deverá estar assistido por defensor.

§ 16. Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador.

Art. 5o São direitos do colaborador:

I - usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica;

II - ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados;

III - ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes;

IV - participar das audiências sem contato visual com os outros acusados;

V - não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito;

VI - cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus ou condenados.

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Portanto, é possível considerar que o ordenamento jurídico penal brasileiro carrega um intenso peso a esse tipo probatório ao preocupar-se em discipliná-lo minuciosamente.

Cumpre mencionar que, em 2018, foi ajuizada pelo Procurador Geral da República a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.508 perante o Supremo Tribunal Federal (STF), questionando a constitucionalidade da Lei 12.850/13, precisamente sobre os parágrafos 2º e 6º do artigo 4º da lei. Assim, questionou-se a legitimidade do delegado de polícia para conduzir e entabular acordos de colaboração premiada, alegando ofensa aos artigos 5º, inciso LIV (devido processo legal), 37, caput (moralidade administrativa), 129, inciso I (titularidade do Ministério Público para a ação penal e princípio acusatório) e § 2º, primeira parte (exclusividade do exercício das atribuições do Ministério Público), e 144, parágrafos 1º e 4º (múnus constitucional da função policial), da Constituição Federal.

Contudo, a ADI, por maioria de votos, foi julgada improcedente. Os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes e Roberto Barroso acompanharam o entendimento do relator, ministro Marco Aurélio. Segundo ele, a formulação de proposta de colaboração premiada pela autoridade policial como meio de obtenção de prova não interfere na atribuição constitucional do Ministério Público de ser titular da ação penal e de decidir sobre o oferecimento da denúncia. Os ministros destacaram que, mesmo que o delegado de polícia proponha ao colaborador a redução da pena ou o perdão judicial, a concretização desses benefícios ocorre apenas judicialmente, pois se trata de pronunciamentos privativos do Poder Judiciário.

De acordo com a decisão, embora não seja obrigatória a presença do Ministério Público em todas as fases da elaboração dos acordos entre a autoridade policial e o colaborador, o MP deve obrigatoriamente opinar. No entanto, cabe exclusivamente ao juiz a decisão homologar ou não o acordo, depois de avaliar a proposta e efetuar o controle das cláusulas eventualmente desproporcionais, abusivas ou ilegais.

Os ministros Edson Fachin, Rosa Weber e Luiz Fux divergiram parcialmente. Eles entendem que, embora a autoridade policial possa formular acordo de colaboração, a manifestação do Ministério Público sobre os termos da avença deve ser definitiva e vinculante.

Também divergindo parcialmente, o ministro Dias Toffoli entendeu que o delegado de polícia pode submeter ao juiz o acordo firmado com colaborador desde que a proposta traga, de forma genérica, somente as sanções premiais previstas no artigo 4º, caput e parágrafo 5º, da Lei 12.850/2013, com manifestação do MP sem caráter vinculante. Ficaria a critério do juiz a concessão dos benefícios previstos na lei, levando em consideração a efetividade da colaboração.


3. As inconstitucionalidades na adoção e aplicação da delação premiada no contexto jurídico e político brasileiro

O instituto da delação premiada sempre foi alvo de diversos debates entre os juristas brasileiros. Sejam discussões sobre previsões legislativas, princípios, ética, sejam sobre sua eficácia no combate à criminalidade.

Foi em meados do ano de 2014, porém, que as posições divergentes acerca do instituto se intensificaram. Isso porque iniciou no país uma força tarefa da Polícia Federal, denominada “Operação Lava Jato”, cujo objetivo principal é investigar e punir uma organização criminosa de corrupção que envolve políticos, empreiteiros e doleiros de cargos e posições elevadas no país. Na operação, estima-se que ocorreram mais de 150 delações premiadas, conforme explicado no artigo de Maria Alice Franco Logrado (2018):

Recebeu esta denominação por investigar inicialmente organizações criminosas que utilizavam uma rede de postos de combustíveis e lava jato de automóveis para movimentar recursos ilícitos, dando a aparência de lícitos. Cumpre esclarecer que no nascedouro a Operação visava investigar doleiros ligados a pessoa de Alberto Youssef, que movimentavam bilhões de reais no mercado financeiro paralelo, através de empresas de fachada, contratos de importação fictícios, e contas em paraísos fiscais.

Nas investigações, porém, apuraram-se negócios entre o doleiro e o ex-diretor da Petrobrás, Paulo Roberto Costa, fornecedores e empreiteiros ligados à petrolífera, onde os desvios de dinheiro da estatal tornaram-se o foco principal da investigação. A partir de agosto de 2014 as investigações ganharam força, depois que Costa e Youssef decidiram fazer o acordo de colaboração com as investigações, em troca de obterem a redução das penas.

A partir de então o número de delações não pararam de crescer, fazendo com que as investigações tomassem proporções maiores, alcançando políticos do mais alto escalão, como ex – Presidentes da Câmara e Senado, ex-Presidentes da República assim como o atual, Michel Temer, diversas empreiteiras, como a Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS, Engevix, e outras. Observa-se que a quebra do silêncio de Youssef e Costa acarretou em diversas outras delações, chegando a conhecimento público o modo de funcionamento do esquema ilícito, e levando as investigações até as autoridades envolvidas.

A instabilidade jurídica e política que assolou o país desde então, como consequência da operação, e que à época teve de enfrentar, ainda, um processo de impeachment da Presidente da República, trouxe diversos questionamentos sobre a legitimidade e eficácia do instituto da delação premiada e, principalmente, sobre a maneira indiscriminada com que a justiça brasileira vêm utilizando-a e aplicando-a.

Assim, as principais críticas com fulcro no atual cenário brasileiro versam principalmente sobre as delações premiadas praticadas dentro dos processos no âmbito da Operação Lava Jato, uma vez que estariam sendo realizadas em desconformidade com os princípios constitucionais consagrados e, ainda, com a Lei 12.850/13, responsável por regulamentar o instituto.

Primeiramente, verificou-se uma atuação questionável do Ministério Público ao não salvaguardar o sigilo das delações realizadas, conforme prevê a referida Lei, o que resultou em um verdadeiro “show” ao público, uma vez que facilmente encontra-se o teor dessas delações ao realizar uma busca nos portais de notícias. Sobre a problemática, a análise do especialista Edson Ribeiro (2019):

Neste contexto, abandonam-se os livros e abrem-se os jornais e revistas. Mídia e opinião pública substituem a cultura jurídica e passam a criar a jurisprudência. Neste perigoso curso da história do direito penal, surge a Criminologia Midiática, o Processo Penal do Espetáculo e diversas outras variantes do mesmo fenômeno, porém com um desdobramento bastante sensível: a redução ou a anulação do direito de defesa, fundamental nas Democracias e nas Repúblicas, numa espécie de cruzada pela moralidade. A delação premiada se desenvolve, no Brasil, neste contexto e os problemas práticos começam a se revelar com o seu uso indiscriminado e descontrolado, num processo de vulgarização tal qual ocorrido recentemente com a interceptação telefônica.

Ademais, há princípios constitucionais do ordenamento jurídico brasileiro, mais precisamente no âmbito processual penal, que estariam sendo contrariados na maneira com que o instituto vem sendo aplicado. Assim ressalta os juristas portugueses J. J. Gomes Canotilho e Nuno Brandão (2017, p. 14):

Dado que, numa lógica utilitarista, o Estado admite negociar aqui a própria Justiça, nomeadamente, a justiça penal que deveria reservar à conduta criminosa do colaborador, com o fi m de perseguir criminalmente outras pessoas, afigura-se altamente problemática a compatibilização deste meio de obtenção de prova com o cânone do Estado de direito e dos princípios constitucionais – penais e processuais penais, mas não só – que dele se projectam ou gravitam na sua órbita

O princípio essencial que estaria sendo contraposto pelo instituto consiste na estrutura acusatória do processo, devido, principalmente, à origem inquisitória desse instituto, onde o meio de prova confessório era extremamente valorado e visto como verdade absoluta, na maioria das vezes obtido pelo meio da tortura.

Acarreta na inobservância, ainda, do princípio da separação dos poderes, consagrado no art. 2º da Constituição da República Federativa do Brasil, visto que o instituto acaba por delegar amplos poderes aos juízes, que escolhem a medida de pena aplicável de maneira discricionária, implicando em uma atuação que deveria ser do âmbito legislativo.

Intimamente ligado a isso, tem-se o princípio da legalidade e tipicidade, consagrados no art. 5º, incisos II e XXXIX da CRFB. Isso porque qualquer premiação, pautada na exclusão e atenuação de penas, deve estar expressamente e estritamente prevista na lei, dependendo tão somente da vontade legislativa. Por isso, é inadmissível que haja negociações com base em promessas e concessões desprovidas de base legal, como ocorreu no contexto da investigativo da Operação Lava Jato (CANOTILHO; BRANDÃO; 2017, p 15).

É imprescindível citar, ainda, o princípio da igualdade, consagrado no caput do art. 5º da CRFB, visto que o instituto estaria permitindo um tratamento desigual dos suspeitos investigados pela mesma prática criminosa.

Por fim, é possível voltar-se também para as questões éticas do Estado de Direito que envolvem a temática, conforme bem observa o estimado criminalista brasileiro, Professor Zaffaroni (1996, p. 45):

A impunidade de agentes encobertos e dos chamados ‘arrependidos’ constitui uma séria lesão à eticidade do Estado, ou seja, ao princípio que forma parte essencial do Estado de Direito: o Estado não pode se valer de meios imorais para evitar a impunidade [...] o Estado está se valendo da cooperação de um delinquente, comprada ao preço da sua impunidade para ‘fazer justiça’, o que o Direito Penal liberal repugna desde os tempos de Beccaria”.

Para Aury Lopes Jr. (2016, p. 247), é preciso muita cautela do magistrado ao valorar esse tipo probatório, conforme explica o doutrinador:

É imprescindível muito cuidado por parte do juiz ao valorar essa prova, pois não se pode esquecer que a delação nada mais é do que uma traição premiada, em que o interesse do delator em se ver beneficiado costuma fazer com que ele atribua fatos falsos ou declare sobre acontecimentos que não presenciou, com o inequívoco interesse de ver valorizada sua conduta e, com isso, negociar um benefício maior.

Ademais, Cézar Roberto Bitencourt (2017), professor criminalista e doutrinador no âmbito do Direito Penal brasileiro, critica de maneira incisiva a prática da delação premiada no sistema jurídico do país, conforme é possível observar em seu artigo:

Com essa figura esdrúxula, o legislador brasileiro possibilita premiar o “traidor”, oferecendo-­lhe vantagem legal, “manipulando” os parâmetros punitivos, alheio aos fundamentos do direito-­dever de punir que o Estado assumiu com a coletividade.

Não se pode admitir, eticamente, sem qualquer questionamento, a premiação de um delinquente que, para obter determinada vantagem, “dedure” seu parceiro, com o qual deve ter tido, pelo menos, um pacto criminoso, uma relação de confiança para empreenderem alguma atividade no mínimo arriscada, que é a prática de algum tipo de delinquência. Estamos, na verdade, tentando falar da imoralidade da postura assumida pelo Estado nesse tipo de premiação. [...]

Delação premiada virou baixaria, ato de vingança, utima ratio de denunciados ou investigados. Enfim, os ditos delatores dizem qualquer coisa que interesse aos investigadores para se beneficiarem das “benesses dos acusadores”, os quais passaram a dispor, sem limites, da ação penal, que é indisponível..

Portanto, segundo o autor, trata-se de uma prática extremamente antiética, que premia traidores e, sob a justificativa de se combater crimes organizados, instaurou-se no ordenamento jurídico e acabou por admitir a própria incompetência dos governadores, bem como por criar, ainda um nova forma de corrupção que se dá através dos acordos realizados nas delações.

Outrossim, sobre o contexto da Operação Lava Jato e a aplicação da delação premiada nos acordos realizados, Cezar Roberto (2017) tece diversos apontamentos sobre as inconstitucionalidades e, portanto, nulidades observadas:

Nesse sentido, pelas informações vazadas na mídia, essas nulidades e inconstitucionalidades são pródigas na “colaboração premiada” celebrada na “operação lava jato”, com o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa. Trata-se, a rigor, de um “acordo de colaboração premiada” eivado de nulidades, mas nulidades absurdamente grotescas, ou seja, decorrentes de negação de garantias fundamentais impostas pelo Ministério Público (negociador da delação) a referido réu e ao seu defensor. Foram violadas, dentre outras, as garantais fundamentais da ampla defesa, do devido processo legal, do direito ao silêncio, de não produzir prova contra si mesmo, direito de não se autoincriminar etc. [...] Vejamos algumas pérolas de nulidades e inconstitucionalidades flagrantes que, segundo nos consta, existem nesse “acordo de delação premiada”:

1) o delator tem que desistir de todos os habeas corpus impetrados;

2) deve desistir, igualmente, do exercício de defesas processuais, inclusive de questionar competência e outras nulidades;

3) deve assumir compromisso de falar a verdade em todas as investigações (contrariando o direito ao silêncio, a não se auto-incriminar e a não produzir prova contra si mesmo);

4) não impugnar o acordo de colaboração, por qualquer meio jurídico;

5) renunciar, ainda, ao exercício do direito de recorrer de sentenças condenatórias relativas aos fatos objetos da investigação.

Por fim, o renomado jurista reforça a gritante inconstitucionalidade do parágrafo 14º do art. 4º da Lei 12.850/13, que dispõe: “Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade”.

Assim, a regra prevista implica em uma expressa renúncia ao direito ao silêncio, uma vez que obriga o réu a abrir mão de um direito seu consagrado na Constituição e em todos os pactos internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário. Para oa autor, o réu não deve ser obrigado a fazer prova contra si em circunstância alguma, mesmo na condição de “colaborador da justiça”, até porque lhe interessa e lhe é muito mais benéfico que haja uma sentença absolutória do que a mera aplicação dos benefícios decorrentes da colaboração.

Além da Constituição Federal pátria, que prevê o direito ao silêncio do denunciado (art. 5º, inciso LXIII), há ainda a previsão da Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), ou Pacto De San José Da Costa Rica, o qual o Brasil é signatário, que estabelece:

Artigo 8º - Garantias judiciais.

[...]

2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

[...]

g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada;

Ademais, quanto às possíveis inconstitucionalidades textuais da Lei 12.850/13, o Professor José Boanerges Meira (2017, p. 59) faz considerações relevantes:

A Lei nº 12. 850. de 2013 traz, no seu bojo, garantias constitucionais, o que a faz ter a aparência de está em consonância com o ordenamento jurídico vigente, como por exemplo, assegurando o direito constitucional da defesa técnica com atuação obrigatória em todos os atos do processo penal e da eficiência de tal atuação (Súmula nº 523 do STF), podendo ser comprovado pela leitura dos parágrafos 6°, 9° e 15 do artigo 4°5, e do inciso IV do artigo 6° da lei em comento6. Ambos asseguram a presença do defensor, no processo de delação premiada, exclusivamente, para o delator.

Em contramão ao acima revelado, a lei viola vários preceitos constitucionais, sendo possível afirmar que o processo de delação premiada viola os princípios do contraditório e da ampla defesa, ao negar a participação do delatado, no referido processo, em que o delator o acusa de forma isolada. Se, por absurdo fosse de o delatado não participar do processo, a lei prevê que a defesa necessita de precedida autorização judicial para ter acesso aos autos, violando de forma frontal os princípios previstos no artigo 5° inciso LV da Carta Magna, que assegura o contraditório e a ampla defesa aos litigantes, em processo judicial.

O autor supracitado aponta também o grave equívoco do §14 do artigo 4º da Lei 12.850/13. Isso porque, nos acordos de delação, o delator deve renunciar ao seu direito ao silêncio, bem como ao direito de não produzir provas contra si mesmo, uma vez que um dos pressupostos da delação premiada consiste em confessar a própria coautoria no delito. Todavia, ambos direitos são considerados garantias fundamentais no ordenamento jurídico pátrio e, por conseguinte, não seriam passíveis de renúncia.

Outra crítica doutrinária, tecida por Leandro Sarcedo (2011, p. 192), baseia-se na constatação de que a adoção de diplomas legislativos que preveem a delação premiada demonstra que o legislador brasileiro vem abandonando a opção pela investigação do próprio fato e pela produção probatória, para focar no próprio investigado como principal fonte de prova, estabelecendo ao acusado a obrigação de reconstrução histórica do evento criminoso e, segundo o autor, com um atropelo evidente das garantias constitucionais.

Nesse contexto, observa-se que a doutrina processual penal garantista, contrária ao instituto da delação premiada, denominada por Zaffaroni (1996) de “extorsão premiada”, tem feito críticas severas a esse meio de obtenção de prova, essencialmente sob a premissa de que o Estado estaria admitindo seu próprio fracasso investigativo ao fomentar a conduta antiética da traição e, ainda, fundamentando-se nas inconstitucionalidades que decorrem da adoção do instituto no ordenamento pátrio.

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Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Este artigo é fruto de uma pesquisa realizada em maio de 2019 para a cadeira de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, durante o período em que participei do Programa de Mobilidade Internacional da Universidade Federal Fluminense e fui contemplada com a oportunidade de estudar no curso de Direito da Universidade de Lisboa durante um semestre.

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