A delação premiada no Brasil e sua influência em Portugal.

Reflexões críticas pautadas em princípios processuais penais constitucionais

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08/08/2020 às 12:45
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4. A delação premiada no sistema jurídico português e a influência brasileira nas discussões sobre o tema

O ordenamento jurídico português não possui uma regulamentação tão minuciosa sobre o instituto da delação premiada quanto o ordenamento brasileiro.

Há, em verdade, alguns meios de provas análogos, relacionados ao direito premial, como atribuições de recompensas para arguidos que colaborem com a investigação de crimes específicos e identificação de eventuais coautores, figura denominada de arguido-colaborador, porém, são reduzidas e limitadas a alguns delitos específicos do ordenamento.

A exemplo, tem-se o art. 368º-A, nº 9, do Código Penal português, que trata dos crimes de branqueamento, e dita que “a pena pode ser especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura dos responsáveis pela prática dos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.”

Há, ainda, a Lei de Combate ao Terrorismo, lei nº 52/2003, que no artigo 2º, nº 5, prevê: “a pena pode ser especialmente atenuada ou não ter lugar a punição se o agente abandonar voluntariamente a sua actividade, afastar ou fizer diminuir consideravelmente o perigo por ela provocado ou auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis.”

Porém, como visto, não se trata de um instituto especificamente e formalmente tratado e, por consequência, esses exemplos são verdadeiras exceções dentro da prática processual penal portuguesa, atribuídas a determinados tipos penais.

Em junho de 2018, contudo, uma petição de cidadãos com mais de quatro mil assinaturas solicitou ao Parlamento a convocação de um referendo para decidir se a Assembleia da República deve legislar novos diplomas sobre a questão da delação premiada (MARUJO, 2018).

Nesse contexto, verifica-se que veio à tona ao cenário político e jurídico português diversas discussões acerca da incorporação da colaboração premiada como um todo no ordenamento pátrio, cercadas de um discurso baseado no combate aos crimes de corrupção, a exemplo do que se tem observado nas práticas brasileiras.

Na análise dos juristas portugueses (CANOTILHO; BRANDÃO, 2017, p. 2), a instabilidade política e jurídica que a Operação Lava Jato proporcionou ao Brasil também tiveram seu impacto em Portugal:

Nos últimos anos, temos assistido em Portugal a um movimento de sentido inverso: no nosso país, ouvem-se agora os cantos de sereia da chamada Colaboração Premiada, soprados a partir do Brasil, no contexto, senão de uma revolução, pelo menos certamente de uma disrupção política, social e económica. O terramoto judiciário e político que actualmente assola o Brasil, com epicentro na Operação Lava Jato, provocou ondas de choque de tal modo intensas que algumas chegaram a Portugal. O Estado brasileiro tem pedido a colaboração das autoridades portuguesas para a produção e obtenção de provas pretendidas pela investigação e já requereu a extradição de um cidadão luso-brasileiro indiciado nessa operação. Académicos, magistrados e advogados brasileiros têm sido convidados por universidades e instituições judiciárias portuguesas para apresentar e discutir o modelo brasileiro da colaboração premiada. Um debate que tem envolvido não só juristas, mas também muitos outros sectores da sociedade portuguesa, com uma cada vez maior notória amplificação pela comunicação social.

A partir disso, conforme relatado no texto supracitado, diversos eventos e palestras, envolvendo principalmente juristas brasileiros, foram realizados nas universidades portuguesas, de maneira a fomentar a discussão acerca da temática no país luso.

Segundo a Ministra da Justiça portuguesa, Francisca Van Dunen, a delação premiada como está prevista no direito brasileiro não têm correspondência na tradição, nem nos princípios estruturantes do processo penal nacional, como o princípio do processo equitativo, e pode até mesmo violar a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que deve ser respeitada por Portugal (MARUJO, 2018).

Por sua vez, o presidente do Sindicado dos Magistrados do Ministério Público, António Ventinhas, defende que os mecanismos de delação premiada previstos no Brasil não devem ser adotados em Portugal, mas que o atual sistema de direito premial do país precisa ser aperfeiçoado1.

Muitos juristas portugueses já alertaram sobre a complexidade e necessidade de uma extensa reflexão sobre a ampliação desse instituto no ordenamento português, conforme é possível observar nas palavras de Sergio Azevedo (2018), deputado do partido português PSD e docente universitário:

A ideia de um "negócio com a justiça", considerando o tipo de crimes a que se sujeita, não só induz a ideia de que apenas está à disposição dos mais perigosos e dos mais fortes como também a de uma quebra de valores constitutivos de uma sociedade democrática, como são caso a solidariedade entre os seus membros, a sua igualdade na lei e perante a lei, já para não referir uma certa promoção do egoísmo, da traição e de um conjunto de comportamentos opostos ao preâmbulo constitucional português da "construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno". [...] A legitimidade da adoção de mecanismos premiais pela lei penal portuguesa deve ser alvo de uma demorada reflexão em que se deve tentar compreender qual a urgência e a necessidade de utilização destes mecanismos no combate à criminalidade organizada, e, por outro lado, que lesão poderão os institutos premiais causar ao Estado de direito democrático. Assusta-me que a generalidade da classe política se deixe tomar pela democracia de emoção sem promover uma reflexão séria entre si e com os principais agentes da realização da justiça. É verdade que o direito premiai pode trazer eficácia no combate a um certo tipo de crimes, mas também é verdade que representa, sem a necessária reflexão, uma perigosa fissura nos pilares do Estado de direito democrático.

Há, com razão, um receio de que as práticas brasileiras se instaurem no país lusitano. Porém, com foi possível observar, o Governo, a Assembleia da República e até mesmo o Poder Judiciário já demonstraram que pretendem tratar do tema com cautela, para que os mesmos erros e inconstitucionalidades não sejam cometidos.

Conforme defende os constitucionalistas portugueses, Canotilho e Nuno Brandão, a admissibilidade da delação premiada, devido a sua gravidade e complexidade de investigação, deve ser apenas uma solução excepcional, em questões criminais excepcionais, bem como deve estar “estritamente subordinada a uma exigência de reserva de lei e aos princípios da proibição do excesso e da intangibilidade do núcleo essencial dos direitos fundamentais” (2017, p. 14).


CONCLUSÕES

É notório que as investigações das condutas típicas ilícitas que envolvem grandes organizações criminosas, principalmente no âmbito político e empresarial, é de grande complexidade e exige que haja meios alternativos para que se chegue a solução e eventual punição dessas práticas.

Porém, a adoção da delação premiada como meio de prova é complexa, exigindo um elevado cuidado do sistema jurídico ao aplicar essa prática processual. Isso porque o meio probatório pode implicar na inobservância de princípios básicos e inerentes à estrutura acusatória da prática processual penal, bem como princípios resguardados no âmbito constitucional. Não se pode deturpar toda a lógica de um sistema jurídico penal em nome do combate à criminalidade organizada.

A prática da justiça premiada vem se tornando um verdadeiro direito de traição em troca de vantagens e premiações e deixando de observar os limites impostos pelo Direito Processual Penal garantista estabelecido na Constituição Federal brasileira, bem como nos pactos internacionais de direitos humanos, pautados em uma estrutura processual penal acusatória, nos princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV, CRFB), no direito ao silêncio e à não autoincriminação, ou de não produzir provas contra si mesmo (art. 5º, inciso LXIII, CRFB e art. 8º, 1, g, da Convenção Americana De Direitos Humanos). Portanto, é inadmissível pelo próprio ordenamento jurídico brasileiro que se permita regressar ao sistema inquisitório de extremo punitivismo.

O contexto brasileiro de extrema instabilidade política e jurídica desencadeou em práticas extrapoladas da delação premiada e em um verdadeiro show midiático. Com isso, os grandes escândalos nas mídias brasileiras criaram na sociedade a sensação de que algo estava sendo feito no combate à corrupção e que, consequentemente, os crimes seriam finalmente investigados, punidos e, assim, os problemas sociais seriam amenizados.

Por conseguinte, as terras lusitanas passaram a ansiar por semelhantes soluções em seu próprio contexto político e jurídico. Contudo, os juristas e autoridades portuguesas demonstram resistência em recepcionar o instituto da delação premiada, levando em consideração os princípios processuais penais garantistas sobre os quais está pautado o sistema penal português.

Assim, conclui-se, neste estudo, que a delação premiada não tem amparo nos princípios e valores preconizados tanto na Lei Maior brasileira, quanto nos princípios fundantes do ordenamento jurídico português, estando submersa em vícios constitucionais e morais.

Nas palavras do pesquisador Bruno Lessa Pedreira São Pedro (2012), “Ao albergar em nosso sistema a delação premiada, estamos, pois, protegendo um instituto que afronta os princípios constitucionais, que vai de encontro ao espírito da Carta Política, restando-o como tal, inconstitucional”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Nota

1 Retirado de entrevista com Antônio Ventinhas no TSF, publicada em 28 de janeiro de 2018. Disponível em: <https://www.tsf.pt/sociedade/justica/interior/delacao-premiada-nao-mas-aprofundar-o-sistema-premial-portugues-sim-9079773.html>

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Este artigo é fruto de uma pesquisa realizada em maio de 2019 para a cadeira de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, durante o período em que participei do Programa de Mobilidade Internacional da Universidade Federal Fluminense e fui contemplada com a oportunidade de estudar no curso de Direito da Universidade de Lisboa durante um semestre.

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