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Os crimes hediondos e a individualização da pena à luz de uma nova proposta de atuação

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23/05/2006 às 00:00
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5. UMA NOVA PROPOSTA DE ATUAÇÃO: A APLICAÇÃO DO INTERSTÍCIO DIFERENCIADO COMO REFLEXO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA – INFLUXOS DA NOVA ORIENTAÇÃO NA EXISTÊNCIA DO ART. 112 DA LEP

Atentando-se a essa perspectiva não vinculante, porém indiscutivelmente determinante, traçada pelo Supremo Tribunal, urge a ordenação de uma nova leitura na concepção vetusta que tem inspirado a progressão no regime de cumprimento da pena com base no artigo 112 da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84).

E essa nova ordenação deve inspirar-se na própria garantia da individualização da pena.

Isso porque, admitida a possibilidade de progressão no regime do cumprimento da pena pelos condenados por crimes hediondos ou equiparados, tem-se que a garantia da individualização da pena não se exaure no momento da cominação sancionatória ou da própria dosimetria da pena, devendo servir como parâmetro também na fase subseqüente de sua execução.

Convém explicitar: um regime sancionatório como a privação da liberdade, originariamente concebido tanto como instrumento retributivo do mal praticado quanto regenerador da personalidade transviada, inspirado, portanto, não só na gravidade do ilícito, como também nas características e na pessoa do transgressor, necessariamente há de perseguir uma lógica personalíssima não só na cominação (cominam-se penas mais pesadas para crimes de maior repulsa social) e na aplicação (aplicam-se maiores reprimendas para condenados com maior culpabilidade) das penas, como também ao longo de toda a execução da medida, pois somente assim estar-se-ia cumprindo o mandamento jusfilosófico de "dar a cada um o que é seu", contemplando-se particularmente pessoas e fatos à luz de suas características singulares.

A ressocialização do agente e a ideal retribuição somente serão alcançadas quando obedecida essa lógica individualista, balizadas pela personalidade do agente, sua culpabilidade, seus antecedentes, sua conduta social, os motivos, as circunstâncias e conseqüências do crime, a conduta da vítima no contexto do crime e, especialmente, o comportamento e demais reflexões subjetivas do condenado ao longo do cumprimento da pena.

Todavia, há também um ingrediente objetivo nessa fórmula, que deve atender à natureza do crime perpetrado, ao viés ontológico do ilícito.

Neste particular, é inegável tenha o constituinte originário conferido aos crimes hediondos e a estes equiparados tratamento jurídico diferenciado, colocando-os em plano diverso das demais infrações penais, subtraindo-lhes uma série de benefícios que aos demais crimes não são vedados [18].

Por outro lado, também não há dúvida de que a natureza do crime igualmente deva ser observada como diretriz orientadora da execução da pena, como sugere o próprio artigo 5º, inciso XLVIII, da Constituição Federal.

A mensagem diferenciadora do constituinte, portanto, não pode ser invalidada na execução da pena, pois como bem ressaltou o Ministro Carlos Ayres Britto no julgamento do HC nº 82.959-7/SP, também se deve ter por inconstitucional "a aplicação da regra geral de 1/6 aos condenados pelos delitos hediondos", inconstitucionalidade que, de acordo com seu entendimento, "não implica em retirar do mundo jurídico o diploma viciado".

De fato, não há a necessidade de retirar do mundo jurídico o disposto no artigo 112 da Lei nº 7.210/84, desde que sua interpretação venha a ser inspirada na individualização da pena e na natureza da infração penal.

É que o artigo 112 da LEP, a despeito da cominação geral e abstrata da fração de 1/6 da pena, assim o fez mediante o estabelecimento de um interstício mínimo a ser observado pelo juiz da execução, que não obriga a aplicação linear pelo magistrado.

De acordo com artigo 112 da LEP, com a redação que lhe conferiu a Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003:

Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão – sem grifo no original.

Infere-se daí, portanto, que a progressão no regime prisional, sob a ótica objetiva, está vinculada ao cumprimento de "ao menos" 1/6 (um sexto) da pena, vale dizer, o condenado deverá ter cumprido, no momento da postulação, pelo menos 1/6 (um sexto) da pena no regime mais grave. Logo, a expressão "ao menos" indica a idéia de um interstício mínimo a ser observado e não condiciona, de forma alguma, sua aplicação linear pelo juiz da execução.

Interpretação diversa conspira contra a própria individualização da pena e malfere os princípios da proporcionalidade, igualdade e razoabilidade, na medida em que impõe ao aplicador do direito a sujeição de situações ontologicamente desiguais ao mesmo referencial objetivo, em desarmonia à mensagem da Constituição.

Não há, pois, de acordo com o dispositivo legal suscitado, uma limitação temporal inflexível, mas tão-somente um referencial mínimo de 1/6 (um sexto) a ser observado para a progressão de regime, interstício este que, em homenagem à Constituição Federal, deverá ser diferenciado em relação aos crimes hediondos e equiparados.

Essa constatação traz em si a necessidade da definição de um outro critério determinante do referencial mínimo para estes crimes, vez que a aplicação do fracionamento mínimo de 1/6 (um sexto) ficaria restrita às infrações penais comuns.

Nesse sentido, reconhecida a constitucionalidade da Lei nº 8.072/90 quanto às demais alterações promovidas no sistema penal (pois a declaração de inconstitucionalidade do STF somente se refere à possibilidade de progressão de regime), parece lógica a manutenção da proporção matemática instituída para a concessão do livramento condicional aos crimes hediondos, ou seja, a observância da mesma proporção objetiva instituída pelo legislador para o livramento, também em relação à progressão de regime.

Com efeito, a Lei nº 8.072/90 [19], ao acrescentar o inciso V [20] ao artigo 83 do Código Penal, majorou em dobro o prazo para a concessão do livramento condicional para os crimes hediondos e equiparados (de 1/3 para 2/3), sinalizando dessa forma um critério matemático para a determinação do interstício mínimo também na progressão de regime, ou seja, o dobro do anteriormente exigido.

Como o Supremo Tribunal Federal preservou a constitucionalidade das demais disposições da Lei dos Crimes Hediondos e não há, na Lei de Execução Penal, qualquer disposição específica aos crimes hediondos, parece adequada a utilização da mesma proporção matemática para que o interstício da progressão de regime igualmente seja aplicado em dobro, ou seja, em vez de 1/6, 1/3 da pena, no mínimo.

Qualquer outra interpretação que apregoe a utilização dos mesmos critérios para os crimes hediondos e os demais conflita com o ordenamento constitucional, pois redunda em "tratamento jurídico igual para situações ontologicamente desiguais", nos termos do voto do Ministro Carlos Ayres Britto [21].

Todavia, forçoso é concluir-se que a aplicação do interstício mínimo de 1/3 (um terço), com base nesse entendimento, consubstanciaria o emprego de analogia in malam partem, vedada pela ciência penal.

Portanto, até que norma legal específica venha a ser editada para balizar o mínimo legal, tem-se que os condenados por crimes hediondos ou equiparados, ao resgatarem mais de 1/6 (um sexto) da reprimenda em regime fechado passam a ter o direito de pleitear a progressão para regime menos rigoroso do cumprimento da pena, cujo deferimento, no caso concreto, deverá pautar-se na análise dos demais vetores de ordem subjetiva inerentes à pessoa do reeducando, podendo o juiz da execução, bem por isso, valer-se de qualquer outro limitador, inferior a 2/3 (dois terços), quando se opera para estes crimes o requisito objetivo necessário ao livramento condicional.

Vale dizer, apesar de não ser possível, à míngua de regramento legal próprio, a utilização de limitador mínimo para os crimes hediondos, pode o juiz da execução, atento às características subjetivas do condenado e à natureza hedionda do crime, tomar qualquer outra fração superior a 1/6 e inferior a 2/3, pois, se é admissível que mesmo um condenado por crime comum venha a resgatar até 1/3 da pena em regime fechado - bastando para tanto não lograr mérito suficiente à progressão -, de igual sorte é de se cogitar possa um condenado por crime hediondo, a depender de seu comportamento, assim cumpri-la até o limite de 2/3 (dois terços), referencial temporal do livramento condicional.

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Nessa linha de raciocínio, afiguram-se corretas algumas decisões que, inspiradas na garantia da individualização da pena, têm aplicado interstícios diferenciados para a progressão de regime aos condenados por crimes hediondos ou equiparados, superior a 1/6 e inferior a 2/3.

Além disso, a decisão do Supremo Tribunal Federal fez resurgir com maior vigor a necessidade de prévia realização do exame criminológico, providência que, a despeito da nova redação do artigo 112 da LEP, alterada através da Lei nº 10.792/03, subsidiará o levantamento de elementos concretos com relação ao mérito do reeducando como requisito indispensável à concessão da benesse.

Portanto, ainda que a nova redação do artigo 112 da Lei nº 7.210/84 admita a progressão de regime com base em mero atestado de conduta carcerária emitido pelo diretor do estabelecimento penal, subsiste a possibilidade do juiz da execução, mediante decisão fundamentada, antes de resolver a questão, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, determinar a realização do exame criminológico, sempre que julgar necessário à aferição dos elementos subjetivos próprios do incidente [22].

Nesse sentido, além de recentes julgados do próprio Supremo Tribunal Federal, proferidos nos autos do HC nº 88.052-5/DF, Rel. Ministro Celso de Mello, julgado em 04.04.06 (DJU 28.04.06) [23] e do RHC nº 86.951-3/RJ, Rel. Ministra Ellen Gracie, julgado em 07.03.06 (DJU 24.03.06) [24], registram-se diversos outros precedentes do egrégio Superior Tribunal de Justiça [25].

Em síntese, ao concretizar a individualização da pena em sede de execução penal não está o juiz adstrito, como pretendem alguns, ao simples atestado de conduta carcerária, recomendando-se, para tanto, a realização prévia do exame criminológico, sempre que entender necessário [26].


6. PROJETOS DE LEI EM TRAMITAÇÃO NO CONGRESSO NACIONAL

Após o julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal, alguns projetos de lei foram apresentados no Congresso Nacional, fundamentalmente no intuito de disciplinar um interstício mínimo da progressão de regime para os crimes hediondos e equiparados.

Neste particular, destacam-se os Projetos de Lei nº 6714 e 6842, de autoria dos Deputados Colbert Martins e Betinho Rosado, respectivamente, que estabelecem o interstício mínimo de 1/3, além do Projeto de Lei nº 48/2006, apresentado pelo Senador Demóstenes Torres, já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, que fixa em 1/2 tal requisito objetivo mínimo para condenados primários e 2/3 para os reincidentes.

Além disso, tramita também na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 6793, de proposição governamental, que aumenta para 1/3 o interstício mínimo para os condenados primários e 1/2 para os reincidentes.

Alterado o interstício mínimo exigido pela LEP para a progressão de regime em relação aos crimes hediondos e equiparados, será dispensável a fundamentação da adoção do critério mínimo superior ao correspondente às condenações por crimes comuns, persistindo, no entanto, a necessidade de assim proceder o juiz da execução toda vez que repute necessária a adoção de proporção superior ao mínimo legal dos crimes hediondos.

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Sobre o autor
Fernando da Silva Comin

promotor de Justiça de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COMIN, Fernando Silva. Os crimes hediondos e a individualização da pena à luz de uma nova proposta de atuação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1056, 23 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8454. Acesso em: 29 mar. 2024.

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