1. CONTEXTUALIZAÇÃO
A Lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964, em seu artigo 28, parágrafo único, define incorporação como sendo: "atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial de edificações ou de conjunto de edificações compostas de unidades autônomas".
A incorporação é, portanto, contrato bilateral, sinalagmático, consensual e de execução sucessiva [01]. Seu objeto é o negócio jurídico consistente em alienações das frações ideais do terreno, vinculadas à futura construção de unidades autônomas.
Desde o seu nascimento até a sua extinção, que ocorre com a conclusão da edificação e sua entrega aos adquirentes em condição de habitabilidade, todos os preceitos legais devem ser rigorosamente obedecidos.
Isso significa dizer que apenas com a total e inequívoca subsunção da realidade fática ao permissivo normativo é que os interessados na incorporação poderão também desfrutar dos benefícios legais.
Inequivocamente, pelo menos no contexto pecuniário, um desses benefícios é a dispensa de instrumento público para que se adentre na fase de instituição do condomínio e atribuição das unidades.
Dois os pontos a serem aqui tratados, à mercê do posicionamento hoje ainda não pacificado da doutrina, jurisprudência e da prática registral.
De rigor também, uma breve abordagem crítica da Lei n.º 4.591/64 não mais sob a ótica no Código Civil de 1916, mas sob a égide do novo Estatuto Civil.
2. DAS PSEUDO-INCORPORAÇÕES E DA EXIGÊNCIA DA ESCRITURA PÚBLICA
O instituto da incorporação, e por via de conseqüência, toda a sistemática da Lei n.º 4.591/64, deve se limitar apenas às atividades de organização e comercialização de estrito caráter empresarial [02].
Na lição de Ademar Fioranelli, não se há falar na figura do incorporador empresário quando um grupo de pessoas forma um condomínio sem ofertas públicas e sem venda de unidades a terceiros.
Nessa modalidade de constituição de um condomínio, vários indivíduos proprietários do solo resolvem edificar um prédio de apartamentos.
Aqui, por óbvio, não se pode falar em atividade empresarial, muito menos em oferta de futuras unidades autônomas. A nosso ver, trata-se de modalidade de constituição de condomínio sui generis, ou seja, o(s) próprio(s) dono(s) do edifício é quem constituiu o condomínio, dando sua destinação ao alienar as unidades em que o secionou [03].
Já em outra situação, uma "pseudo-incorporadora", pessoa física ou jurídica, também sem qualquer oferta ao público, realiza uma edificação sobre terreno próprio ou de terceiro, e, concluída a obra, após o devido registro da transmissão das frações ideais do solo, pretende, por meio da Lei n.º 4.591/64, constituir-se a incorporação, registrar a instituição e especificação do condomínio, atribuindo a estranhos as unidades autônomas que nunca foram ofertadas sob a ótica da lei especial.
Ambos os exemplos são facilmente constatados nas cidades do interior do país, onde a oferta ao público se torna desnecessária e onerosa, pois o número de interessados é sempre reduzido, o que, em tese, inviabilizaria o lançamento "oficial" do empreendimento.
Prefere-se, assim, utilizar-se de meios transversos para se alcançar os objetivos da norma, esquecendo-se de que na Lei do Condomínio e Incorporação não se admite o divórcio do terreno e da construção.
Utilizados tais meios, poder-se-á, em tese, configurar contravenção contra a economia popular, segundo o art. 66, inciso II da lei em comento, e diversas decisões do E. Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, tais como os Acórdãos 254.936 e 2.592 – Ubatuba-SP.
Esse não é, porém, o objetivo da análise em comento, mas sim, a adequada interpretação normativa a exigir, nos exemplos aqui citados, a presença do instrumento público, possibilitando que a modificação, no primeiro exemplo, e a transferência do direito real de propriedade no segundo, perfaça-se em compasso ao disposto no artigo 108 do Novel Código Civil (NCC) e, via de conseqüência, a obrigatória intervenção do oficial do registro de imóveis na qualificação do título que intente ingresso no fólio real.
Diz-se modificação e transferência do direito real de propriedade, porque, nos exemplos citados (condomínio sui generis e alienação de unidades após a construção sem registro prévio da incorporação) não se há admitir que o instrumento particular seja a forma do título (art. 176, III, 4 c/c o art. 221, ambos da Lei n.º 6.015/73) cabível a registro.
No primeiro caso, estamos diante da extinção do condomínio geral, ordinário ou tradicional (voluntário), materializada por meio da escritura pública de divisão.
Assim, uma vez instruída a averbação da obra com os documentos de praxe e desejando cada elemento do grupo (condomínio tradicional) tornar-se proprietário exclusivo da unidade autônoma, entendiam alguns ser possível a simples petição junto ao oficial registrador de requerimento da totalidade dos interessados acompanhado do instrumento de atribuição das respectivas unidades autônomas, pelo qual também seria instituído o condomínio, especificadas e discriminadas as partes comuns das individuais.
Nesse caso, fundamentados no art. 7.º da Lei n.º 4.591/64 combinado com o art. 167, I, n. 23 da Lei de Registros Públicos, Lei n.º 6.015/73, permitia-se aos interessados, atribuir direito real sem que fosse observada a obrigatoriedade de instrumentalização por meio de escritura pública.
Na esteira do assunto, sabe-se, que com a conclusão do prédio, entra-se na fase da Instituição do Condomínio, tenha ou não havido a Incorporação [04].
Porém, por conta de que a legislação nunca tenha estabelecido a obrigatoriedade da intervenção do notário, não se há admitir que a divisão não tenha caráter atributivo do direito real. Mesmo aqueles que se alicerçavam no artigo 631 do antigo Código que preconizava que "a divisão entre condôminos é simplesmente declaratória e não atributiva da propriedade", perderam razão, na medida em que referido dispositivo não mais encontra correspondência com o NCC.
Parece-nos clara a subsunção do fato jurídico da divisão, pondo fim ao condomínio tradicional, à exigência do artigo 108 do Código de 2002.
É que a novel tratativa da divisão do direito real sobre bem imóvel deve hoje ser analisada sob a ótica da modificação do direito real, contida no art. 108 do Código Civil, verbis:
"Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País." (grifos nossos)
Destarte, por expressa disposição da lei civil, devemos aplicar à extinção do condomínio geral as regras da partilha contidas no art. 2.015 do NCC, ou seja, a escritura pública é da essência do negócio jurídico da divisão.
Quanto ao segundo exemplo, e da mesma forma, ao dirigir requerimento ao oficial no sentido de se formalizar o registro da instituição do condomínio e atribuição de unidades autônomas em nome de terceiros, sem que tenha havido o regular registro prévio da incorporação e oferecimento ao público das futuras unidades, parece-nos, s.m.j., que esse ato de atribuição formalizado sob a égide da Lei n.º 4.591/64, está, em verdade, suprimindo importante requisito de forma previsto em lei.
De fato, muito embora não tenha havido o regular registro da incorporação, nada impede que o oficial do registro de imóveis formalize a etapa da instituição e especificação do condomínio, porém, atribuindo-se todas as unidades autônomas à pessoa física ou jurídica que construiu a edificação.
Assim, o ato da transmissão da propriedade a terceiros, estranhos ao processo da construção, a qual não se realizou sob o crivo da lei especial, somente poderá ocorrer se obedecidos todos os requisitos do artigo 108 do NCC, qual seja, observância da escritura pública para transferência do direito de propriedade, obedecido o parâmetro legal dos trinta salários mínimos, além é claro do cumprimento dos demais requisitos de capacidade, apresentação das certidões e de pagamento dos impostos incidentes sobre a transmissão.
3. DA MODIFICAÇÃO DO DIREITO REAL NO NOVO CÓDIGO CIVIL: MITIGAÇÃO DO ANTIGO ENTENDIMENTO
Superados os malgrados casos debatidos no item anterior, alisemos a instrumentalização das instituições dos condomínios edilícios sob a nova ótica do Código Civil de 2002 e que guardem estrita observância às disposições da lei especial.
A antiga lição da jurisprudência, nesse ponto, sempre foi absoluta, e no sentido de que a instituição do condomínio edilício, por ausência de expressa previsão legal, dever-se-ia ser considerada como ato jurídico declaratório, divisão atípica, passível, portanto, de instrumento particular [05].
Ao lado disso, e também para a doutrina clássica, citada por Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho [06], despiciendo o instrumento público:
"Colhe-se, por sua vez, na doutrina a lição de Mário Pazutti Mezzari, asseverando que:
"A lei não exigiu forma especial, sendo válida a afirmativa de que tanto se pode instrumentalizar a instituição em escritura pública como em escrito particular"
Veja-se, ainda, a lição de Pedro Elias Avvad: "Não existindo, na lei, uma forma especial prescrita, não vemos como indispensável o instrumento público, salvo se o ato de instituição do condomínio ocorrer em razão de transferência de direitos sobre a propriedade como, por exemplo, uma doação de unidades a diversas pessoas. A instituição do condomínio, tal qual sua extinção, tem caráter, simplesmente declaratório, não incidindo, portanto, a regra do artigo 108 do Código Civil, que prevê a escritura pública para os negócios jurídicos que visem a constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais, sequer se modificando a natureza jurídica do direito, salvo quando alienadas as unidades". (grifos nossos)
Da mesma forma, J. Nascimento Franco e Nisske Gondo [07], citados no Acórdão da Apelação Cível n.º 340-6/3, Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, decisão de 05/05/2005: "No instrumento de instituição, discriminação e convenção de condomínio, podem os condôminos proceder à atribuição das unidades autônomas que ficarão pertencendo a cada um deles, extinguindo-se, por essa forma, a indivisão sobre as áreas de uso privativo. Trata-se de uma divisão atípica, menos solene, que dispensa a escritura pública. Conforme escrevemos em outra oportunidade, a "divisão".. não corresponde a um procedimento divisório típico. Nesse caso, a comunhão não chega a existir, pois o terreno é adquirido em frações certas, embora ideais, que desde o início são destinadas às unidades autônomas, que realmente ficam predeterminadas. Em síntese, o vocábulo "divisão" deve ser entendido como simples forma de identificação de unidades autônomas que as partes jamais possuíram em comum"(grifos nossos)
Desta forma, parece haver consenso no sentido de que uma vez instituído o condomínio ordinário, tipo de propriedade com feição distinta do modelo tradicional de domínio exclusivo, mas que lhe afeiçoa as mesmas características e poderes oriundos do direito real de propriedade, deverá haver um tratamento e um regramento especial determinado pela lei, tanto para sua instituição como para sua extinção, ou seja, aplicável o artigo 108 do NCC. Esse foi o caso apresentado no item anterior.
Parece, contudo, que o legislador quis realmente estabelecer uma tratativa distinta para a especial comunhão havida entre os compradores ou promitentes compradores de frações ideais de terreno, vinculadas à futura construção de edificação, nos termos da Lei do Condomínio e Incorporação.
Mas para que tal benefício legal seja aplicável, imperioso o cumprimento de todos os dispositivos legais, como alhures comentado.
Portanto, o artigo 1.332 do Novo Código Civil, que parece ter derrogado o artigo 7º da Lei 4591/64, continuou não estabelecendo, de forma expressa, se para a instituição do condomínio edilício seria necessária a utilização de instrumento público.
Parece-nos, que a aplicação da inovação trazida pelo artigo 108 do NCC, qual seja "modificação do direito real", deve ser aplicada à sistemática da Lei n.º 4.591/64 apenas e tão somente em casos particulares, ou seja, seu efeito deve ser mitigado.
Não compartilhamos, desta feita, com a tese de que deva imperar o entendimento que consagra que "inexistindo regra clara e específica em contrário, é de aplicar-se a regra geral do artigo 108 do Novo Código Civil, exigindo-se escritura pública para que a propriedade saia do regime comum (propriedade exclusiva ou condomínio voluntário) para o regime do condomínio edilício [08].
Isso porque, e como visto, não se trata de condomínio ordinário ou geral (Capítulo VI, do Título III, do Livro III do Novel Código Civil), mas sim de outra espécie (Capítulo VII), com regras e especificidades particulares.
Contudo, casos há em que, embora haja vinculação do terreno às unidades, não se mantém ao longo de todo o processo da incorporação a pré-determinação, a pré-vinculação a que a lei e a doutrina se referem. Em outras palavras, há modificações com relação ao plano inicial da incorporação.
Nesses casos, embora modalidade especial de comunhão, não se pode afastar a existência, desde o início da incorporação com o seu regular registro, do direito real de propriedade relativo às unidades em construção ou a construir.
Assim, se os interessados na construção jamais possuíram em comunhão suas unidades autônomas, que restaram vinculadas a uma fração ideal do terreno e a um plano inicial, ao revés, sempre foram titulares do direito real de propriedade dessas mesmas unidades, independentemente da fase de construção, que, dia a dia, era majorado.
A propriedade é um direito real por excelência, uma vez que é o mais extenso daqueles enumerados no artigo 1228 do Novo Código Civil.
A legislação vigente não definiu, a exemplo do que fizera no artigo 524 do Código de 1916, este instituto jurídico, limitando-se a enumerar os poderes inerentes ao domínio, quais sejam, o de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa.
A propriedade, como regra, é um direito subjetivo exercido com exclusividade pelo seu titular, que poderá valer-se dos poderes indicados no artigo 1228 do Código Civil em vigor. [09]
Não entendemos, assim, que apenas com o ato de averbação da edificação ou do registro da atribuição das unidades autônomas é que o direito de propriedade estará cristalizado, porque em qualquer fase da obra pode seu titular, respeitados os preceitos da legislação especial, valer-se dos poderes inerentes ao domínio de seu direito.
Vejamos, a propósito, o que dispõe as Normas da E. Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo (CGJ/SP), ao disciplinar a matéria:
"211. A instituição e especificação de condomínio serão registradas mediante a apresentação do respectivo instrumento (público ou particular), que caracterize e identifique as unidades autônomas, acompanhado do projeto aprovado e do "habite-se".
211.1. Para averbação da construção e registro de instituição cujo plano inicial não tenha sido modificado, será suficiente requerimento que enumere as unidades, com remissão à documentação arquivada com o registro da incorporação, acompanhado de certificado de conclusão da edificação e desnecessária anuência unânime dos condôminos"
Dessa forma, para que seja instrumentalizado o registro da instituição do condomínio edilício por instrumento particular e sem a anuência de todos os condôminos, necessária a observância rigorosa do cumprimento dos contratos quanto ao plano de edificação e especificação apresentados por ocasião da incorporação [10].
Contudo, se no momento do registro da instituição, houver divergências que representem verdadeira inovação com relação ao registro da incorporação, e que implicaram uma modificação do direito de propriedade dos condôminos, necessária a aplicação do artigo 108 do Código Civil.
Não se estará diante de nova constituição de direito real, mas simplesmente modificando-se um outro que já existe.
Exemplo disso são as alterações das vinculações das vagas de garagem [11], que repercutem certamente no valor de mercado das unidades condominiais, ou outros detectados que alterem as dimensões ou disposições das áreas de propriedade exclusiva ou comum.
Nesses casos, necessário para ingresso no fólio instrumento que contenha a anuência unânime dos condôminos e a observância da instrumentalização por escritura pública.
Por certo, a mensuração pecuniária do direito real de propriedade modificado não será tarefa fácil a ser captada, mas que deverá ser atendida para que haja a perfeita adequação e harmonização com a nova disposição legal.
Nesse diapasão, e tendo em vista que as disposições acerca do tema foram introduzidas nas Normas da CGJ/SP, sob a égide do artigo 134, II, do Código Civil de 1916, o qual somente exigia a escritura pública nos contratos constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóvel acima de cinqüenta mil cruzeiros, seguindo entendimento de que tal norma não se aplicava, em nenhuma hipótese, à Lei n.º 4.591/64, entendemos, s.m.j., que a redação dos dispositivos citados (itens 211 e 211.1) deve ser acrescida e/ou alterada, a fim de se prever as hipóteses de modificação do direito real de propriedade quando do registro da instituição do condomínio edilício.
Notas
01
Pereira, Caio Mário da Silva: Incorporação Imobiliária, in Revista de Direito Imobiliário, n.º 4, p.9-1802
Fioranelli, Ademar: Direito Registral e Imobiliário, Safe Editora, Porto Alegre, 2001, p. 56103
Gonçalves, Carlos Roberto:Direito Civil Brasileiro, vol V, Saraiva, São Paulo, 2006, p. 37304
Fioranelli, Ademar: Direito Registral e Imobiliário, Safe Editora, Porto Alegre, 2001, p. 59005
Acórdão da Apelação Cível n.º 14.661-0/3, Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, decisão de 08/07/199206
Instituição de Condomínio. Necessidade de Instrumento Público. Biblioteca Virtual Dr. Gilberto Valente Silva, www.irib.org.br em 15/04/2004, n.º 1.09307
Franco, J. Nascimento e Nisske Gondo: Condomínio em Edifícos, 5.ª ed., Editora RT, São Paulo, 1988, p. 1608
Instituição de Condomínio. Necessidade de Instrumento Público. Biblioteca Virtual Dr. Gilberto Valente Silva, www.irib.org.br em 15/04/2004, n.º 1.09309
Instituição de Condomínio. Necessidade de Instrumento Público. Biblioteca Virtual Dr. Gilberto Valente Silva, www.irib.org.br em 15/04/2004, n.º 1.09310
Autos do Processo n.º 83/83, Juiz da 1.ª Vara de Registros Públicos da Capital, José de Mello Junqueira11
Acórdão da Apelação Cível n.º 340-6/3, Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, decisão de 05/05/2005