Capa da publicação Morte de Urias: atipicidade da conduta do Rei Davi (teoria da imputação objetiva)
Capa: Pieter Lastman

Da atipicidade da conduta do Rei Davi pela morte de Urias sob a égide da teoria da imputação objetiva

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O Rei Davi foi um personagem muito importante na história e sua vida é retratada em destaque na Bíblia Sagrada. Davi recebe este especial tratamento por ter sido um homem segundo o coração de Deus e por ser ascendente de Jesus. No entanto Davi pecou e com

1. INTRODUÇÃO

O Brasil é o segundo maior país cristão do mundo e, segundo um estudo publicado em abril de 2019 pelo Pew Research Center1, em 2015, contava com 179.910.000 cristãos, o que equivalia a 88.5% da população brasileira.

A Bíblia é tida pelos cristãos como um livro sagrado que traz diversas histórias verídicas, dentre elas a do Rei Davi, o qual, em apertada síntese, foi considerado responsável pela morte de Urias, um dos valentes de seu exército.

Ocorre que analisando a história do Rei Davi sob a égide da teoria da imputação objetiva se chegou à conclusão, como se observará ao longo deste artigo, de que ele não deveria ser responsabilizado por este fato. Todavia cumpre em primeiro lugar se analisar a referida história, o que se fará a seguir.


2. A HISTÓRIA DE DAVI

Deus escolheu Davi como o sucessor de Saul para que fosse rei de Israel. Ele foi ungido pelo profeta Samuel, ainda na juventude, porque ele era fiel a Deus.

A Bíblia em 1 Samuel 16:1-13 descreve o processo de unção de Davi pelo profeta Samuel:

1 Por fim, Jeová disse a Samuel: “Até quando você ficará triste por causa de Saul, ao passo que eu o rejeitei como rei de Israel? Encha um chifre com óleo e vá. Eu o enviarei a Jessé, o belemita, porque escolhi um dos filhos dele para ser rei.”

2 Mas Samuel disse: “Como posso ir? Quando Saul ficar sabendo disso, ele me matará.” Jeová respondeu: “Leve uma novilha com você e diga: ‘Vim para oferecer um sacrifício a Jeová.’

3 Convide Jessé para o sacrifício, e eu lhe direi o que deve fazer. Você deve ungir para mim aquele que eu indicar.”

4 Samuel fez o que Jeová disse. Quando chegou a Belém, os anciãos da cidade foram se encontrar com ele, tremendo de medo, e disseram: “A sua visita é de paz?”

5 Ele respondeu: “É de paz. Vim para oferecer um sacrifício a Jeová. Santifiquem-se e venham comigo ao sacrifício.” Então ele santificou Jessé e seus filhos, e depois os chamou para o sacrifício.

6 Quando eles entraram e Samuel viu Eliabe, ele disse: ‘Com certeza este é o ungido de Jeová.’

7 Mas Jeová disse a Samuel: “Não olhe para a sua aparência nem para a sua altura, pois o rejeitei. Porque Deus não vê como o homem vê; o homem vê a aparência, mas Jeová vê o coração.”

8 Então Jessé chamou Abinadabe e o fez passar diante de Samuel, mas ele disse: “Jeová também não escolheu este.”

9 A seguir, Jessé apresentou Samá, mas ele disse: “Também não foi este que Jeová escolheu.”

10 Assim, Jessé fez sete dos seus filhos passar diante de Samuel, mas Samuel disse a Jessé: “Jeová não escolheu nenhum destes.”

11 Por fim, Samuel perguntou a Jessé: “Estes são todos os filhos que você tem?” Ele respondeu: “Ainda falta o mais novo; ele está pastoreando as ovelhas.” Então Samuel disse a Jessé: “Mande buscá-lo, porque não nos sentaremos para a refeição enquanto ele não chegar.”

12 Portanto, mandou buscá-lo. Ele era corado,* de belos olhos e boa aparência. Jeová disse: “Vamos, é esse! Você deve ungi-lo.”

13 Então Samuel pegou o chifre com óleo+ e o ungiu diante dos seus irmãos. E a partir daquele dia o espírito de Jeová deu poder a Davi. Mais tarde, Samuel voltou para Ramá.2

Davi foi escolhido por Deus para ser rei de Israel porque era um homem temente a Deus e, segundo a Bíblia (Atos 13:22), era um homem segundo o coração de Deus: “Após removê-lo, levantou-lhes Davi como rei, a respeito de quem deu testemunho, dizendo: ‘Encontrei Davi, filho de Jessé, um homem que agrada ao meu coração; ele fará tudo o que desejo.’”3.

Karnal reforça que “Davi é o herói escolhido por Deus, o rei-poeta, o governante que dança de alegria à frente da Arca da Aliança. [...] Um pastor tirado do rebanho para guiar Israel, tomado pelo espírito do Todo-Poderoso [...]”4

Davi como rei de Israel obteve muitas vitórias em guerras, possuía um exército poderoso e suas conquistas se deram com a unção e o apoio de Deus5.

Dentre os soldados do exército de Davi havia os valentes, os quais eram soldados de Elite e um deles era Urias, marido de Bateseba, o qual era um fiel e corajoso soldado6.

Em determinada batalha, enquanto os soldados e os generais do exército foram para a guerra, Davi permaneceu em seu palácio.

É o que descreve 2 Samuel 11:1: “No começo do ano, época em que os reis saem em campanhas militares, Davi enviou Joabe junto com os seus servos e todo o exército de Israel para destruir os amonitas, e eles cercaram Rabá. Mas Davi ficou em Jerusalém.”7

Em uma noite, durante aquela batalha, Davi saiu na varanda do palácio e viu Bateseba, mulher de Urias, tomando banho e ficou encantado pela moça. Então Davi mandou chamá-la, oportunidade em que com ela teve conjunção carnal e a engravidou.

2 Samuel 11:2-5 expõe:

2 Certo dia, ao anoitecer, Davi se levantou da cama e foi passear pelo terraço da casa do rei. Do terraço ele viu uma mulher tomando banho, e a mulher era muito bonita. 3 Davi mandou alguém procurar saber quem era a mulher. Disseram-lhe: “É Bate-Seba, filha de Elião, esposa de Urias, o hitita.”

4 Então Davi enviou mensageiros para que a trouxessem. Então ela veio, e ele se deitou com ela. (Isso aconteceu quando ela estava se purificando da sua impureza.) Depois ela voltou para casa.

5 A mulher ficou grávida e mandou dizer a Davi: “Estou grávida.”8

Karnal reforça:

Está em curso uma campanha militar contra os amonitas. O rei ficou na sua cidade, Jerusalém. O sol caiu sobre a cidade dourada e o rei poeta está no terraço. Ele vê uma bela mulher tomando banho. É Betsabá casada com um soldado de Davi, Urias. Davi a deseja e manda trazê-la. Da união ilegal, resulta uma gravidez e um problema. Urias voltará da guerra e sua esposa está grávida. (...) 9

Assim que soube da gravidez de Bateseba, Davi buscou, em vão, várias formas de acobertar o seu pecado de adultério com a mulher de Urias, até que resolveu que a única forma seria que Urias morresse. Assim relata 2 Samuel 11:6-13:

6 Em vista disso, Davi mandou a seguinte mensagem a Joabe: “Envie-me Urias, o hitita.” Então Joabe enviou Urias a Davi.

7 Quando Urias chegou, Davi perguntou como estava Joabe, como estavam os soldados e como estava indo a guerra.

8 Davi disse então a Urias: “Vá para casa e descanse um pouco.” Assim que Urias saiu da casa do rei, foi-lhe enviado um presente de cortesia do rei.

9 No entanto, Urias não foi para casa, mas dormiu à entrada da casa do rei com todos os outros servos do seu senhor.

10 Então disseram a Davi: “Urias não foi para casa.” Em vista disso, Davi disse a Urias: “Você não acabou de chegar de viagem? Por que não foi para casa?”

11 Urias disse a Davi: “A Arca+ e os homens de Israel e de Judá estão em abrigos temporários, e meu chefe Joabe e os servos do meu senhor estão acampados em campo aberto. Como eu poderia ir para casa, comer e beber, e me deitar com a minha esposa? Tão certo como o senhor vive, não farei isso!”

12 Então Davi disse a Urias: “Fique aqui mais um dia, e amanhã o mandarei de volta.” Assim, Urias ficou em Jerusalém naquele dia e no dia seguinte.

13 Davi o convidou então para vir comer e beber com ele, e o embriagou. Mas Urias saiu ao anoitecer para dormir na sua cama, junto com os servos do seu senhor, e não foi para casa.10

No mesmo sentido são os relatos de Karnal:

(...) Davi manda chamar Urias da frente de batalha. Seu plano: sob o pretexto de ouvir notícias de guerra, Davi fará Urias ficar uma noite em Jerusalém para, certamente, fazê-lo visitar sua esposa que não vê há meses e encobrir a paternidade. Urias vem, como ordenado. O plano é bom, mas esbarra na virtude e solidariedade militar de Urias: como seus companheiros estão na guerra ele não vai até sua casa e dorme em uma esteira junto aos oficiais de Davi, sem visitar Betsabá. O primeiro plano de Davi falhou. 11

Então, Davi mandou uma carta ao General Joabes, ordenando que ele colocasse Urias no lado mais sangrento da batalha, com a finalidade de que ele morresse e, com isso, pudesse assumir Bateseba e esconder o adultério.

O general Joabes seguiu as ordens do Rei Davi e colocou Urias na fronte mais sangrenta da batalha, no lugar mais violento da guerra e, com isso, Urias morreu.

Revela 2 Samuel 11:14-17:

14 De manhã, Davi escreveu uma carta a Joabe e a enviou por meio de Urias.

15 Ele escreveu na carta: “Coloquem Urias na linha de frente, onde o combate estiver mais violento. Então recuem e o deixem sozinho, para que ele seja ferido e morra.”

16 Joabe já vinha observando a cidade atentamente, e colocou Urias onde ele sabia que estavam os guerreiros mais valentes.

17 Quando os homens da cidade saíram e lutaram contra Joabe, alguns dos servos de Davi foram mortos. Urias, o hitita, estava entre os que morreram.12

Karnal também relata:

Não podendo encobrir a paternidade da amante, o rei manda uma carta a seu general: deve colocar Urias no pior local da batalha e abandoná-lo. O condutor da carta é o próprio Urias. O soldado fiel desconhece que carrega sua sentença de morte. Como ordenado, Urias foi conduzido à morte. Davi estava livre para tomar a viúva do seu soldado fiel.13

E acrescenta Liberal:

Davi, então, ordena por meio de carta ao comandante do seu exército, que o soldado Urias seja colocado na frente da batalha para que recebesse as primeiras investidas inimigas e morresse. E assim acontece. Em meio a uma batalha ferrenha, Urias é atingido e morre.14

É pacífico nos meios religiosos, especialmente no segmento evangélico, que Davi é responsável pela morte de Urias, inclusive, muitos afirmam que ele cometeu um homicídio.

Duarte descreve Davi como cobiçoso, adúltero, homicida e mentiroso:

Davi foi cobiçoso, adúltero, homicida e mentiroso, falso. Cobiçoso, por cobiçar a mulher alheia, embora já possuísse as suas. Adúltero, por relacionar-se com uma mulher que pertencia a outro homem. Homicida, por matar o esposo de tal mulher, sendo ele o seu próprio soldado que o defendia nos campos de batalhas. E mentiroso, porque hipocritamente chorou a morte de Urias15.

Da mesma forma, Barbera imputa a prática do crime de homicídio a Davi:

O texto citado, vem descrito o pecado de adultério e de homicídio que Davi cometeu, quando ele foi para a cama com Bat-Sheba e ordenou matar o marido que estava no campo de batalha com Joabe. É sem dúvida a página mais negra na história da vida de Davi, não controlar seus sentimentos e suas paixões, ele se comportou como um homem que não tinha medo de Deus. 16

Ocorre que, para se afirmar que uma pessoa cometeu um crime, é preciso examinar, dentre outras coisas, o conceito formal ou analítico de crime.


3. CONCEITO FORMAL OU ANALÍTICO DE CRIME

Para analisar o conceito formal ou analítico de crime é preciso ter em mente que há na doutrina a este respeito duas teorias com maiores destaques: a bipartida e a tripartida.

A teoria bipartida, defendida por Jesus, estabelece que crime é o fato típico e antijurídico: “Sob o aspecto formal, crime é um fato típico e antijurídico. A culpabilidade, como veremos, tem outra natureza”17.

Capez corrobora:

Sob esse ângulo, crime é todo fato típico e ilícito. Dessa maneira, em primeiro lugar deve ser observada a tipicidade da conduta. Em caso positivo, e só neste caso, verifica-se se a mesma é ilícita ou não. Sendo o fato típico e ilícito, já surge a infração penal. A partir daí, é só verificar se o autor foi ou não culpado pela sua prática, isto é, se deve ou não sofrer um juízo de reprovação pelo crime que cometeu. Para a existência da infração penal, portanto, é preciso que o fato seja típico e ilícito.18

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Lado outro, existem doutrinadores que defendem a teoria tripartida de que crime é fato típico, antijurídico e culpável. Prado ensina:

Todos os elementos estruturais do conceito analítico de crime, que adotamos, como ação típica, antijurídica e culpável […]. Não acompanhamos o entendimento dominante no Brasil, segundo o qual ‘crime é a ação típica e antijurídica’ admitindo a culpabilidade somente como mero pressuposto da pena.

Ao contrário de alguns autores, não incluímos a punibilidade no conceito analítico de crime, porque aquela ao faz parte do crime, constituindo somente sua consequência.[…]19

Bitencourt também se filia à teoria tripartida: “Assim concebido, o delito vem a ser toda ação ou omissão típica, ilícita ou antijurídica e culpável.”20

Coelho partilha do mesmo entendimento:

A primeira, que nós comungamos junto com a maior parte da doutrina brasileira, diz que “o crime é um fato típico, antijurídico e culpável” (entendimento da maioria da doutrina – o Código Penal não descreve o conceito de crime, você obtém o conceito do seu sistema). (...)

Seguindo a linha da primeira corrente, temos que a culpabilidade integra o conceito de crime, pois o que se propõe no art. 59 do CP é aferir a culpabilidade em seu grau, ou seja, maior ou menor grau de reprovação, sendo isso medido na aplicação da pena e se configurando o delito enquanto um pressuposto da pena e não apenas a culpabilidade. Não há imposição da pena sem a realização do crime, sem a existência do crime.21

Embora haja divergência em relação à culpabilidade integrar ou não o conceito analítico de crime, os juristas concordam que o fato típico é um pressuposto para a configuração de uma infração penal.

Segundo Capez, fato típico “é o fato material que se amolda perfeitamente aos elementos constantes do modelo previsto na lei penal”.22

Insta destacar que o fato típico possui quatro elementos, os quais serão especificados a seguir.


4. DOS ELEMENTOS DO FATO TÍPICO

O fato típico, conforme supracitado, é composto por quatro elementos, os quais são: a conduta, o nexo de causalidade, o resultado e a tipicidade.

A conduta, segundo preceitua Nucci, “é a ação ou omissão, voluntária e consciente, implicando um comando de movimentação ou inércia do corpo humano, voltado a uma finalidade”23.

O resultado, por sua vez, divide-se em duas espécies: o resultado normativo e o resultado naturalístico. O primeiro é a lesão ou a exposição a perigo do bem jurídico tutelado pela norma. Já o segundo é aquele que provoca mudanças no mundo exterior.

Coêlho destaca a diferença entre as duas espécies de resultado:

Deve-se ressaltar que o resultado normativo, para a maioria da doutrina, se ma- nifesta não apenas em relação aos crimes materiais como também em relação aos delitos de perigo, seja de perigo concreto ou perigo abstrato. (...)

O resultado naturalístico se manifesta nos crimes materiais e ocorre quando a conduta provoca alterações na realidade exterior. São exemplos de crimes materiais, homicídio (art. 121 do CP) e estupro (art. 213 do CP), dentre outros. Os crimes formais podem ter a ocorrência de um resultado naturalístico em que pese não ser necessária sua existência para a consumação do delito, enquanto que nos crimes de mera conduta não existe resultado naturalístico, apenas jurídico (normativo).24

A tipicidade ocorrerá quando a conduta efetivada pelo autor preencher todas as elementares estabelecidas em um tipo penal. Deve existir um amoldamento completo entre a conduta humana e a norma penal incriminadora.

Capez leciona:

Conceito de tipicidade: é a subsunção, justaposição, enquadramento, amoldamento ou integral correspondência de uma conduta praticada no mundo real ao modelo descritivo constante da lei (tipo legal). Para que a conduta humana seja considerada crime, é necessário que se ajuste a um tipo legal25.

No caso em análise, a conduta, o resultado e a tipicidade estão presentes, já que Davi agiu, de forma dolosa, ordenando que o general de seu exército colocasse Urias na fronte mais sangrenta da batalha, resultando na morte de Urias, o que se adéqua perfeitamente ao tipo penal de homicídio.

Discute-se, porém, se, no caso em apreço, é possível imputar a Davi o resultado, isto é, a morte de Urias. Ou seja, questiona-se se o quarto elemento do fato típico, o nexo de causalidade, que é o vínculo, o elo que liga a conduta do agente ao resultado, está presente.

Vale destacar que esta é uma questão de grande relevância jurídica, já que, se constatada a ausência de nexo de causalidade, não há como se imputar ao agente o resultado, mas tão somente os atos por ele praticados.

No caso de Davi, ausente o nexo de causalidade entre a sua conduta e o resultado (morte de Urias), ele somente responderia pelos atos praticados, ou seja, por ter emanado ordem ao general Joabes para que colocasse Urias a frente da batalha, o que não caracterizaria nenhum crime, já que não há tipo penal incriminador para esta ação.

É preciso ter em mente que, para se proceder à responsabilização criminal do agente, é necessário verificar se o resultado pode ser imputado objetivamente ao agente (imputação objetiva), isto é, se o agente foi o causador do resultado, bem como se há nexo causal subjetivo, ou seja, se o agente agiu com dolo ou culpa para a produção do resultado.

No próximo tópico serão analisadas as principais teorias sobre o nexo causal e suas especificidades.

4.1 Das teorias sobre o nexo causal

A doutrina formulou várias teorias para resolver a questão do nexo de causalidade, dentre elas a teoria da equivalência dos antecedentes e a teoria da imputação objetiva.

O Código Penal brasileiro adotou, em seu art. 13, caput, a teoria da equivalência dos antecedentes ou teoria da conditio sine qua non, criada em 1858 por Julius Glaser, reformulada pelo filósofo Stuart Mill e introduzida na jurisprudência por Von Buri26.

Dispõe o art. 13, caput, do Código Penal: “O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”.27

Por esta teoria, tudo aquilo que, de qualquer forma, contribui para a produção do resultado pode ser considerado sua causa. Lecionam Junqueira e Vanzolini:

A ideia da teoria da equivalência é bastante simples, e talvez esse seja um dos motivos da sua perpetuação: os eventos são fruto de uma composição de inúmeros fatores, todos eles necessários para, em conjunto, produzi-los. De forma que todos esses fatores ou condições, que contribuíram para a ocorrência do resultado são considerados causa desse resultado. Como todos foram necessários, todos recebem a mesma valoração. Assim, tudo o que contribuiu para o resultado é causa. E, ainda, do ponto de vista do vínculo causal não há como se graduar as causas. O nexo existe ou inexiste, ou se é causa ou não. Não há mais ou menos nexo causal, o nexo causal é uma ligação que ou está presente ou está ausente. Se uma causa será considerada mais importante, mais relevante, mais adequada, mas mais digna de censura do que outra, trata-se de problema estranho ao nexo causal; é na verdade a valoração sobre o nexo, não o próprio nexo. Não é a toda causa que se pode imputar o resultado, mas isso não é mais, segundo essa teoria, um problema de causação, mas um problema de imputação. Nesse contexto não se estabelecem distinções entre causas conclusas, condições ou ocasiões28.

O nexo de causalidade para a teoria da equivalência dos antecedentes é uma mera constatação física, através da aplicação do método da causa e efeito29.

Para delimitar o que se enquadra como causa foi idealizado por Julius Glaser e preconizado por Thyrén o método da eliminação hipotética, segundo o qual para se verificar se o fato foi causa do resultado, basta que hipoteticamente seja ele excluído e se certifique que ainda que com a exclusão o resultado teria ocorrido. Caso positivo, o fato pode ser considerado causa do resultado30.

Ocorre que tal método gera situações tidas como esdrúxulas, já que leva em consideração o mero raciocínio físico, resultante da aplicação da regra de causa e efeito, promovendo o retrocesso ad infinitum e até o ponto de se considerar, por exemplo, que o fabricante de uma arma de fogo, seu fornecedor e seu vendedor poderiam ser incriminados pela prática de um homicídio cometido por um agente com aquela arma de fogo31.

Jesus corrobora:

A crítica mais severa que se faz à teoria da conditio sine qua non é a que diz respeito à sua extensão. Seria causa do homicídio a fabricação da própria arma usada pelo agente. Grispigni dava o seguinte exemplo: A abre com chave falsa uma porta para roubar. B entra pela porta e mata o dono da casa. A também seria responsável pela morte da vítima. Cairíamos no que se denomina regressus ad infinitum: todos os agentes das condições antecedentes responderiam pelo crime, pois teriam contribuído materialmente para o evento. Na lesão corporal também seria responsável o comerciante vendedor do rebenque com que o agente houvesse golpeado a vítima, uma vez que excluída mentalmente a venda do instrumento o resultado não teria ocorrido. (...)32

Para evitar essa regressão infinita, deverá ser cessada a cadeia de causas no momento em que não restar apurado dolo ou culpa por parte daquelas pessoas que participaram efetivamente para a produção do resultado.

Greco determina: “Contudo, para que seja evitada tal regressão, devemos interromper a cadeia causal no instante em que não houver dolo ou culpa por parte daquelas pessoas que tiveram alguma importância na produção do resultado”33.

Todavia depender apenas da análise do nexo normativo gera decisões injustas, como no caso de Davi e Urias.

Pela teoria da equivalência dos antecedentes, Davi seria responsabilizado criminalmente, uma vez que foi ele o causador da morte de Urias - proferiu a ordem para que colocasse Urias na fronte mais sangrenta da batalha e, em virtude disso, ele foi atingido e veio a óbito - e agiu de forma consciente e voluntária para tanto - Davi desejava a morte de Urias para que pudesse esconder seu adultério e assumir Bateseba e seu filho.

A partir de situações como esta, Karl Larenz (1927) e Richard Honig (1930) desenvolveram o conceito da imputação objetiva, a qual visa complementar de maneira corretiva e, em algumas hipóteses, até mesmo superar as diversas teorias causais34.

Jesus destaca a importância da teoria da imputação objetiva:

A teoria da imputação objetiva surgiu como verdadeira alternativa à causalidade. Tem a missão de resolver, do ponto de vista normativo, a atribuição de um resultado penalmente relevante a uma conduta, segundo os fins da responsabilidade penal. Pretende substituir, no futuro, a doutrina da causalidade material. No momento, sem prescindir de maneira absoluta da causalidade, é seu complemento, atuando como um critério restritivo do dogma causal material. Não é ainda uma teoria definitiva, continuando a ser alterada e discutida. Ela completa a teoria do nexo de causalidade objetiva, fornecendo solução adequada às hipóteses em que as doutrinas naturalistas não apresentam resposta satisfatória. É amplamente dominante na doutrina, especialmente na Alemanha e na Espanha35.

Na década de 70, o jurista alemão Claus Roxin deu um novo impulso à teoria de Larenz e Honig e aperfeiçoou seus conceitos, chegando-se às definições atuais36.

A teoria da imputação objetiva, nos moldes de Roxin, é, segundo Estefam e Gonçalves, é um “conjunto de pressupostos jurídicos que condicionam a relação de imputação (atribuição) de um resultado jurídico (ou normativo) a um determinado comportamento (penalmente relevante)”37.

O Superior Tribunal de Justiça vem aplicando, ainda que de foram discreta, a teoria da imputação objetiva, indicando sua incidência no direito penal brasileiro. Observe-se:

CRIMINAL. RESP. DELITO DE TRÂNSITO. RESPONSABILIDADE PENAL. DELITO CULPOSO. RISCO PERMITIDO. NÃO OCORRÊNCIA. IMPUTABILIDADE OBJETIVA. MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULA 07/STJ. INCIDÊNCIA. PENA PECUNIÁRIA SUBSTITUTIVA. AUSÊNCIA DE CORRESPONDÊNCIA COM A PENA SUBSTITUÍDA. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E DESPROVIDO.

I. De acordo com a Teoria Geral da Imputação Objetiva o resultado não pode ser imputado ao agente quando decorrer da prática de um risco permitido ou de uma ação que visa a diminuir um risco não permitido; o risco permitido não realize o resultado concreto; e o resultado se encontre fora da esfera de proteção da norma.

II. O risco permitido deve ser verificado dentro das regras do ordenamento social, para o qual existe uma carga de tolerância genérica. É o risco inerente ao convívio social e, portanto, tolerável.

III. Hipótese em que o agente agiu em desconformidade com as regras de trânsito (criou um risco não permitido), causando resultado jurídico abrangido pelo fim de proteção da norma de cuidado - morte da vítima, atraindo a incidência da imputabilidade objetiva.

IV. As circunstâncias que envolvem o fato em si não podem ser utilizadas para atrair a incidência da teoria do risco permitido e afastar a imputabilidade objetiva, se as condições de sua aplicação encontram-se presentes, isto é, se o agente agiu em desconformidade com as regras de trânsito, causando resultado jurídico que a norma visava coibir com sua original previsão.

V. O fato de transitar às 3 horas da madrugada e em via deserta não pode servir de justificativa à atuação do agente em desconformidade com a legislação de trânsito. Isto não é risco permitido, mas atuação proibida.

VI. Impossível se considerar a hipótese de aplicação da teoria do risco permitido com atribuição do resultado danoso ao acaso, seja pelo fato do agente transitar embriagado e em velocidade acima da permitida na via, seja pelo que restou entendido pela Corte a quo no sentido de sua direção descuidada.

VII. A averiguação do nexo causal entre a conduta do réu, assim como da vítima, que não teria feito uso do cinto de segurança, com o resultado final, escapa à via especial, diante do óbice da Súmula 07 desta Corte se, nas instâncias ordinárias, ficou demonstrado que, por sua conduta, o agente, em violação ao Código de Trânsito, causou resultado abrangido pelo fim de proteção da norma de cuidado.

VIII. Não há simetria entre a pena pecuniária substitutiva e a quantidade da pena privativa de liberdade substituída.

IX. Recurso parcialmente conhecido e desprovido.38

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO CULPOSO. MORTE POR AFOGAMENTO NA PISCINA. COMISSÃO DE FORMATURA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. ACUSAÇÃO GENÉRICA. AUSÊNCIA DE PREVISIBILIDADE, DE NEXO DE CAUSALIDADE E DA CRIAÇÃO DE UM RISCO NÃO PERMITIDO. PRINCÍPIO DA CONFIANÇA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA.

1. Afirmar na denúncia que "a vítima foi jogada dentro da piscina por seus colegas, assim como tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu óbito" não atende satisfatoriamente aos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, uma vez que, segundo o referido dispositivo legal, "A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas".

2. Mesmo que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da individualização das condutas, quando se trata de delito de autoria coletiva, não existe respaldo jurisprudencial para uma acusação genérica, que impeça o exercício da ampla defesa, por não demonstrar qual a conduta tida por delituosa, considerando que nenhum dos membros da referida comissão foi apontado na peça acusatória como sendo pessoa que jogou a vítima na piscina.

3. Por outro lado, narrando a denúncia que a vítima afogou-se em virtude da ingestão de substâncias psicotrópicas, o que caracteriza uma autocolocação em risco, excludente da responsabilidade criminal, ausente o nexo causal.

4. Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a conduta dos acusados e a morte da vítima, à luz da teoria da imputação objetiva, necessária é a demonstração da criação pelos agentes de uma situação de risco não permitido, não-ocorrente, na hipótese, porquanto é inviável exigir de uma Comissão de Formatura um rigor na fiscalização das substâncias ingeridas por todos os participantes de uma festa.

5. Associada à teoria da imputação objetiva, sustenta a doutrina que vigora o princípio da confiança, as pessoas se comportarão em conformidade com o direito, o que não ocorreu in casu, pois a vítima veio a afogar-se, segundo a denúncia, em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas, comportando-se, portanto, de forma contrária aos padrões esperados, afastando, assim, a responsabilidade dos pacientes, diante da inexistência de previsibilidade do resultado, acarretando a atipicidade da conduta.

6. Ordem concedida para trancar a ação penal, por atipicidade da conduta, em razão da ausência de previsibilidade, de nexo de causalidade e de criação de um risco não permitido, em relação a todos os denunciados, por força do disposto no art. 580 do Código de Processo Penal.39

Coêlho assevera que, por esta teoria, Roxin pretendeu desenvolver um sistema que limitasse o poder de punir do Estado, a fim de que este só pudesse atuar em situações de lesões mais graves aos bens jurídicos fundamentais40.

Para Roxin, em resumo, a teoria da imputação objetiva prevê que um resultado só preenche o tipo objetivo e pode ser imputado ao agente quando: a) o comportamento do autor cria um risco não permitido para o objeto da ação; b) quando o risco se realiza no resultado concreto; e c) este resultado se encontra dentro do alcance do tipo41.

Assim, na falta de qualquer destes três pressupostos ou níveis, como previsto pela doutrina, a conduta será penalmente atípica.

O primeiro nível diz respeito à criação de um risco proibido pelo Direito, ou seja, de um risco não permitido.

Capez assevera que “risco permitido é aquele que decorre do desempenho normal das condutas de cada um segundo seu papel social, ou seja, o risco derivado de um comportamento aprovado pelo consenso social (socialmente adequado) por atender às expectativas da sociedade”.42

Assim, a contrário senso, tem-se que, se o agente criar uma situação de risco socialmente tolerável, não há como lhe imputar o resultado, embora o tenha causado fisicamente, aplicando-se o método da causa e efeito.

Capez ratifica:

Só haverá, portanto, imputação do resultado ao autor do fato se o resultado tiver sido provocado por uma conduta criadora de um risco juridicamente proibido ou se o agente, com seu comportamento, tiver aumentado a situação de risco proibido e, com isso, gerado o resultado. Em contrapartida, se, a despeito de ter fisicamente contribuído para a produção do resultado, o autor tiver se conduzido de modo a ocasionar uma situação de risco tolerável ou permitido, o resultado não lhe poderá ser imputado.43

O segundo nível da imputação objetiva prevê que o resultado só pode ser imputado ao agente se o risco proibido por ele criado se realizar no resultado concreto.

Roxin exemplifica:

(...) no exemplo do sujeito que, ferido por alguém com dolo de homicídio, vem a morrer em um acidente de ambulância, o resultado igualmente não poderá imputar-se àquele que atirou, apesar de ter sido causado e almejado. É verdade que, através do tiro, criou o autor um perigo imediato de vida, o que é suficiente para a punição por tentativa. Mas este perigo não permitido não se realizou, pois a vítima não morreu em razão dos ferimentos, e sim de um acidente de trânsito. O risco de morrer em um acidente não foi elevado pelo transporte na ambulância; ele não é maior do que o risco de acidentar-se quando se passeia a pé, ou com o próprio automóvel. Falta, portanto, a realização do risco criado pelo tiro, de modo que o resultado morte não pode ser imputado àquele que efetuou o disparo como sua obra. Ele não cometeu uma ação de homicídio, mas somente uma ação de tentativa de homicídio.44

Por outro lado, não basta que a conduta socialmente inadequada crie um risco proibido e que o risco criado se realize no resultado. É preciso ainda que o resultado esteja inserido no âmbito de proteção da norma, isto é, dentro da linha de desdobramento normal da conduta. É o que estabelece o terceiro nível da teoria da imputação objetiva.

Roxin ilustra:

(...) exemplo da entrega de heroína, o ato de entregar a droga constitui uma criação de um risco não permitido. A criação de um tal risco é proibida, pois a entrega do tóxico, por si só, já é punível com uma pena grave segundo o Direito alemão [§ 29, par. 1, n. 1, Lei de Tóxicos (Betäubungsmittelgesetz)]. Além disso, o risco não permitido se realizou, pois aquele que recebeu a droga faleceu graças à injeção de heroína. E, ainda assim, a causação de uma morte com dolo eventual - que é o que podemos constatar no traficante - não é uma ação de homicídio. Pois, de acordo com o Direito alemão, sequer a participação dolosa em um suicídio, ou seja, no ato doloso de matar-se a si próprio, é punível. Um simples argumentum a maiore ad minus chega ao resultado de que também não poderá ser punível a participação em uma autocolocação em perigo, quando houver por parte da vítima uma completa visão do risco, como no nosso caso, em que existe um suicídio praticado com dolo eventual. O alcance do tipo (Reichweite des Tatbestands) não abrange esta hipótese; pois, como demonstra a impunidade da participação em suicídio, o efeito protetivo da norma encontra seu limite na auto-responsabilidade da vítima.45

Assim, se o resultado não figurar no desenrolar da cadeia de causalidade haverá o rompimento do nexo e, por conseguinte, o resultado não poderá ser imputado ao agente.

Capez finaliza:

Em resumo, a imputação objetiva exclui a tipicidade da conduta quando o agente se comporta de acordo com seu papel social, ou, mesmo não o fazendo, o resultado não se encontra dentro da linha de desdobramento causal da conduta, ou seja, não está conforme ao perigo.46

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Sobre os autores
Marcelo Fernandes dos Santos

Mestre em Direito e Professor de Direito Civil – UNIFENAS - Campus Alfenas/MG – Promotor de Justiça.

Adelia Aparecida Vieira

Graduada em Direito pela Unifenas Estagiária de pós graduação do TJMG

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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