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Estado de não-Direito:

a negação do Estado de Direito

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11/06/2006 às 00:00
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2. Da suposição ilegítima do direito à revolução

Antes de adentrarmos às propriedades dessa possibilidade de mudança mais profunda do Estado de Direito, cabe perguntar se, de fato, trata-se de revolução ou de reformar a própria ausência do Estado Oficial. Pois, todos aqueles que sempre se viram abandonados pelas formas mais elementares da vida social e política, não estão de posse dos significados históricos e conceituais acerca da reforma ou da revolução do Estado.

A rigor, por desconhecerem completamente o debate democrático, esses excluídos e excludentes humanos simplesmente alteram pela imposição da força bruta, as relações e estruturas mais próximas de si. Ocorre, entretanto, que esse novo vigor social pode instituir alternativas às relações jurídicas anteriores, o Direito renovado, ou simplesmente degenerar em outras formas puramente bárbaras de aquisição, domínio e expansão do poder – com a mera afirmação do Estado de não-Direito.

Para Canotilho (1999), o recrudescimento do Estado de não-Direito conduz ao ponto do não-Direito, o último instante, atingindo a máxima agonia que a sociedade e suas populações podem suportar antes de invocarem para si o Direito. Esse mesmo Direito que anteriormente celebrou o Estado de Direito, mas que agora se encontra aturdido e inerte:

Atingir-se-á o "ponto do não direito" quando a contradição entre as leis e medidas jurídicas do Estado e os princípios de justiça (igualdade, liberdade, dignidade da pessoa humana) se revele de tal modo insuportável (critério de insuportabilidade) que outro remédio não há senão o de considerar tais leis e medidas como injustas, celeradas e arbitrárias e, por isso, legitimadoras da última razão ou do último recurso ao dispor das mulheres e homens empenhados na luta pelos direitos humanos, a justiça e o direito – o direito de resistência, individual e coletivo (Canotilho, 1999, p. 14).

Uma das faces do direito à revolução é a resistência à opressão e ao descaso, portanto, mantendo a linha de Direito Propositivo. Por isso, também será chamado, simplificadamente, de direito à resistência. Teórica e historicamente, este é o momento que marca a origem ou a passagem institucional do não-Estado ao Estado de Direito e, subseqüentemente, ao Estado Democrático de Direito Social (modelo desenvolvido de Estado normativo em que há anterior fixação das regras da democracia social). Em seguida, institui-se formalmente uma outra fase em que o Direito à insurreição se converte em Direito à oposição e coincide, também, com o aparecimento do cidadão moderno: objeto preferencial da defesa das regras democráticas. Na verdade, como sujeito de direitos disponibilizados e garantidos pela força do Estado de Direito, está dado o reino do status legal:

A passagem do Estado autocrático para o Estado democrático aconteceu, tecnicamente falando, mediante o processo de constitucionalização do direito de resistência, que transformou o direito puramente natural de resistência à opressão, cuja legitimação é sempre póstuma, dependendo do resultado, num direito positivo à oposição, cuja legitimidade é preconstituída e portanto lícita, qualquer que seja o resultado. Ao longo do mesmo caminho e no mesmo período histórico em que o direito público externo transformou pouco a pouco o rebelde (rebellis) em inimigo (hostis), através do direito de guerra (ius belli), o direito público interno foi transformando o rebellis em civis (cidadão), através das regras do jogo democrático que permitem às diversas partes a contenda pacífica entre si, para alcançar metas que fora dessas regras não seria possível alcançar a não ser através da violência (Bobbio, 1994, p. 55).

Sem dúvida, pode-se dizer que essa transformação do inimigo em civil faz parte do longo processo civilizatório exercido pelo Direito nas sociedades humanas [10]. O que Bobbio denomina de constitucionalização do direito de resistência - constituição dos direitos individuais, na Inglaterra de 1689, e dos direitos políticos a partir da Revolução Americana - também expressa o conteúdo do sistema jurídico do Estado de Direito:

1) Estrutura formal do sistema jurídico: garantia das liberdades fundamentais com a aplicação da lei geral-abstrata por parte de juízes independentes. 2) Estrutura material do sistema jurídico: liberdade de concorrência no mercado, reconhecida no comércio aos sujeitos da propriedade. 3) Estrutura social do sistema jurídico: a questão social e as políticas reformistas de integração da classe trabalhadora. 4) Estrutura política do sistema jurídico: separação e distribuição do poder (Bobbio, 2000, p. 401).

Esta configuração do status de civil, de civilidade e de civilizatório, de outro modo, lembra Hannah Arendt quando diz da instauração de um novo contrato social por meio da não-violência – como verdadeiro antídoto ao florescimento do Estado de não-Direito. A diferença substancial entre a análise proposta por Arendt e a que viemos seguindo é que, para a autora, esse novo contrato estabelece e define o poder, mas que só na ausência desse poder regulador é que se instala o reino da violência:

A forma extrema de poder é o Todos contra Um, a forma extrema da violência é o Um contra Todos [...] O poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido [...] A partir do momento em que o grupo, do qual se originara o poder desde o começo (potestas in populo, sem um povo ou grupo não há poder), desaparece, ‘seu poder’ também se esvanece (Arendt, 1994, pp. 35-6).

Dessa forma, até que ponto o Estado Paralelo não reivindica para si a legitimidade do direito à insurreição [11]? Seus líderes, no entanto, não serão os portadores legítimos da contestação movida pelo abandono, abuso e ausência do Estado legítimo, porque sua motivação é egoísta e não se atina à Justiça comum.

É necessário, portanto, analisar o que é o direito à insurreição ou revolução legítima. Mas antes, é bom reter que o Estado de Direito é aquele que também monopoliza a interpretação das necessidades de fim (ou finalidades de Estado). De toda forma, o Estado de Direito também reivindica o simples monopólio do uso legítimo da força (Weber), ainda que não seja muito eficaz. De todo modo, atentemos para o fato de que o Estado de não-Direito desconhece a capacidade jurídica do Estado.

Finalidade Jurídica do Estado

A personalidade e as finalidades públicas do Estado expressam ou constituem a capacidade criada por uma vontade da ordem jurídica. Se os cidadãos têm capacidade jurídica (pessoa física), atuando como sujeitos de direitos (sendo o Direito definido como a relação entre indivíduos capazes), então, como unidade coletiva desses mesmos sujeitos de direitos (como síntese possível da consciência coletiva), é claro que o Estado também terá personalidade jurídica. E eis a questão: o Estado Paralelo nunca irá promover a síntese política das vontades individuais em real síntese jurídica coletiva.

Esse tipo de Estado Arbitrário [12] não será capaz da síntese política e jurídica mesmo que se alegue que todo Estado se constitui pelo estabelecimento, no seio da nação, de um poder público que se exerce autoritariamente sobre todos os indivíduos que formam o mesmo grupo nacional. Porque, de forma contrária, o que nunca irá ocorrer no Estado Paralelo é a consubstanciação jurídica dessa mesma violência fundante do Estado.

No Estado de Direito, por sua vez, seguindo a análise jurídica, a essência própria de toda comunidade estatal consiste primeiro em que - apesar da pluralidade de seus membros e das trocas que se operam entre estes - a pluralidade social se encontra retraída diante da unidade estatal pelo fato de impor-se coercitivamente a organização e a centralização. Este é o fato jurídico primordial que deve ter em conta a ciência do Direito, e não podemos tê-lo em conta se não se reconhecer desde logo no Estado (como expressão da coletividade unificada) uma individualidade global distinta da de seus membros particulares e transitórios, ou ainda das somatórias dessas vontades.

Aliás, seguindo a lógica formal, em sociedades divididas em classes não poderia haver somatória, uma vez que as vontades das classes são excludentes, contraditórias, antagônicas. Nessa situação, o Estado de Direito, então, tentará impor uma mediação institucional [13], e, na incapacidade disso (no seu limite, jurídico), representará os interesses das classes mais fortes e dominantes – e mesmo que não exclua por completo a representação de certos interesses das classes mais fracas e perdedoras. Vale dizer, definindo o Estado como pessoa jurídica presente nas sociedades que se constituíram sob o Poder Político, por conseguinte, o que os juristas chamam propriamente de Estado é o ente de Direito, no qual se resume abstratamente a coletividade nacional. Ou também, segundo outra definição, Estado é a personificação da nação.

Assim, o Estado será, por excelência, o ente de Direito por duas razões, que se afunilam e se complementam: é o agente que centraliza a normatização social (soberania legislativa [14]), como produtor do Direito, e porque também é sujeito de Direito quando estabelecidas as relações e as obrigações jurídicas às quais esteja sujeito. Neste caso, incluindo-se a obrigatoriedade do Estado Democrático de Direito Social em seguir as determinações da soberania popular, inclusive, como preceito constitucional de um governo popular regido por políticas públicas populares.

Ou ainda, o Estado é a pessoa política (jurídica) organizada pela nação, pois, atribuindo-se personalidade jurídica, o Estado passa a representar a nação e seu povo. Seguindo-se isto, poder-se-ia concretizar, pois, a noção jurídica do Estado nesta dupla idéia fundamental: o Estado é uma pessoa coletiva (ente político) e uma pessoa soberana (ente jurídico). No Estado de Direito, portanto, o Direito já é resistência à opressão do(s) poder(osos) e ao abuso do(s) indivíduo(s), a exemplo de que todo e qualquer direito individual não deve prevalecer quando em face dos direitos públicos.

Assim, tratando-se de um novo Direito gerido por força do direito à resistência, pode-se dizer que este seja o momento germinativo de novas relações e experiências jurídicas, de novos direitos, construídos sobre a ordem jurídica anterior que fora removida, e, dessa forma, também pode ser visto como fonte viva de novas relações sociais. Seguindo Aderson de Menezes (1998, p. 175 e ss.), os elementos da relação jurídica condicionantes do direito à revolução seriam:

a)fatos condicionantes do direito de revolução: trata-se da ilegalidade e da ilegitimidade de uma situação jurídica anterior [15].

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b)Titularidade: tem-se por titular natural a coletividade; e por titular atual, os líderes da facção dominante (vanguarda [16] ou fração de classe).

c)Conjunção dinâmica: é a energia que vincula o Direito objetivo à revolução, (faculdade de agir) à consciência política da necessidade de agir (subjetividade que lidera o anseio da transformação mais profunda).

d)Vias e recursos revolucionários: pergunta-se: sempre será luta armada? Diz-se que, historicamente, sim, mas que teoricamente, não. Deve-se observar que, sob a perspectiva jurídica, somente depois de esgotadas todas as etapas de resistência, é que será posta em ação a revolução.

Em uma construção jurídica, podemos definir como: "Direito de revolução é o que assiste aos governados exercitar, a certos aspectos também como dever coletivo, no sentido de reformar o poder, deturpado por maus governantes, para reintegrar o Estado no cumprimento de seu fim supremo, ou seja, a realização do bem público" (Menezes, 1998, p. 178).

De acordo com os elementos descritos, é facilmente verificável como o Estado Paralelo, portanto, não é capaz de aglutinar em torno de si a expressão legítima do titular natural do direito à revolução: o povo oprimido. Veremos de forma mais detalhada, mas pode-se dizer antecipadamente que o povo oprimido, abandonado ou ignorado pelo Estado de Direito – aliás, pelo Estado e por seu Direito: a não ser pelo alcance da polícia -, é legítimo para reivindicar o direito à revolução. Os que se apresentam como líderes do Estado Paralelo (na verdade, os que forçaram sua condição de liderança [17]) são logicamente ilegítimos diante dos mesmos preceitos do direito à revolução.

Neste ponto, comparemos com o caso concreto da Constituição Portuguesa (artigo 7.º), ao admitir expressamente o direito à insurreição (ou revolução) e teremos em claros sinais a indicação da necessidade legítima da titularidade:Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão.

Nos moldes da prescrição portuguesa, sob a ótica constitucionalista, é interessante reter a idéia central de que, findo o processo propriamente revolucionário, deverá ser erigida uma nova ordem constitucional. Não deixa de ser a constituição do Poder Político, inaugurando-se também novas formas de organização social:

E quando sobrevêm uma revolução ou guerra civil, pode ser até necessário, nas fases iniciais, quando o poder e autoridade estão passando de uma pessoa ou órgão para um outro, interpretar o poder legal em termos de obediência real ao poder predominante. Quando, porém, essa fase transitória em que lei e poder se fundem é superada, torna-se irrelevante para a determinação do que é legalmente válido explorar as fontes do poder supremo de facto no Estado. Pois, a essa altura, as regras constitucionais terão de novo assumido o controle e o sistema jurídico terá reatado seu curso regular de interpretação dessas regras, na base de suas próprias normas fundamentais de validade (Lloyd, 2000, p. 226).

Mas também não podemos confundir a noção ou a experiência revolucionária (ou ponto do não-Direito), no plano jurídico, com o que se denominou de síncope constitucional: decretação de intervenção em Estados membros da Federação ou de Estado de Emergência, de Sítio e outras modalidades de exceção constitucional, ou simplesmente de mera justificação para golpes de Estado, sobretudo militares. Enfim, em definição baseada em Pedro Calmon:

Por alguma ameaça à ordem jurídica, o Estado decreta o afastamento do constrangimento legal, por exemplo, suspendendo a plena vigência dos direitos e das garantias individuais. As constituições modernas agasalham o princípio da razão de Estado, que não é arbitrário ou inconstitucional, porém obedece a normas, em favor da salvaguarda pública, envolvendo poderes extra constitucionais de urgência e a curto prazo (Menezes, 1998, p. 173).

Com isto, vemos que mesmo a alteração profunda e marcante do Estado de Direito é ela também regulada e estará de acordo com as condições mínimas de garantia de legitimidade e de legalidade, uma vez que, do contrário, são positivos e profícuos os golpes perpetrados pelo Estado de não-Direito. Ainda de acordo com Canotilho, talvez devêssemos melhor definir o que não é o Estado de Direito, justamente para distinguir a quem (grupo, partido, indivíduos ou classes) servirá a síncope constitucional. Assim, Estado de não-Direito:

É aquele – repita-se – em que as leis valem apenas por serem leis do poder e têm à sua mão força para se fazerem obedecer. É aquele que identifica direito e força, fazendo crer que são direito mesmo as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais desumanas. É aquele em que o capricho dos déspotas, a vontade dos chefes, a ordem do partido e os interesses de classe se impõem com violência aos cidadãos. É aquele em que se negam a pessoas ou grupos de pessoas os direitos inalienáveis dos indivíduos e dos povos (Canotilho, 1999, p. 13).

E é esse tipo de Estado que, talvez, devêssemos chamar de Estado de Direito Autoritário, essa antítese que relaciona como sinônimos Direito e Poder, e que se assim o faz é porque tem em mira o poder de dizer o que é o Direito: "Estado de não direito’ será (...) aquele em que o poder político se proclama desvinculado de limites jurídicos e não reconhece aos indivíduos uma esfera de liberdade ante o poder protegido pelo direito" (Canotilho, 1999, p. 10).

No Estado de não-Direito, o Direito Formal nega toda e qualquer forma de se atribuir, alcançar e distribuir Justiça, pois aqui Direito e Poder são sinônimos. Se bem que, quanto a este aspecto estritamente político (Direito = Política), deve-se relacionar Estado de Direito e personalidade jurídica do Estado. Para Austin, não se trata de justificar qualquer forma arbitrária de sustentação do poder, mas sua noção de soberania política (una e ilimitada [18] juridicamente) pode ter sugerido a muitos tal pressuposição do poder. De forma resumida, seu pensamento revelou que:

O soberano [...] deve possuir dois atributos essenciais, a saber, indivisibilidade e ilimitabilidade [...] O soberano deve ser uma unidade [...] Além disso, não poderiam haver limitações à soberania, pois tais limitações só resultariam da obediência a um poder externo [...] ou seriam auto-impostas, em cujo caso só poderiam corresponder a limitações morais e não legais e, portanto, como matéria de direito positivo, poderiam sempre ser ignoradas [...] Pois Austin afirma que todas as chamadas "leis" constitucionais que tratam da estrutura do poder soberano não são realmente legais, pois quem é soberano será determinado, em última instância, pelo fato de obediência. Ele também afirma que quaisquer tentativas de restrições impostas pelo Parlamento ao poder legislativo, seja qual for a força moral de que possam se revestir, são realmente inoperantes no direito estrito. Isso significaria, por exemplo, que uma cláusula num estatuto, segundo a qual uma emenda só deve ser efetuada por um procedimento especial – como, por exemplo, por uma maioria de dois terços, ou com a sanção de um referendo, ou com o consentimento de algum outro órgão – não é realmente lei, mas, no máximo, o que Austin chama "moralidade positiva" (Lloyd, 2000, p. 220-221).

Talvez pudéssemos manter essa ilação entre Direito e Poder como sinônimo de organização (Arendt, 1994), mas isso só seria possível se os termos fossem relacionados à República, ao Estado Democrático e à cidadania.

De forma ampliada, no entanto, é preciso reter a compreensão adequada de que Política, Poder e Direito não estabelecem meras situações de força entre si, mas sim como partes constitutivas tanto da validade legal (princípio da legalidade) quanto da legitimidade (consensualidade popular, política e pública). Também é preciso ter em conta que não se trata tanto dos casos excepcionais das revoluções ou negações arbitrárias do Estado, como na vigência do Estado Paralelo, mas que tratamos sim, ao contrário, da maior estabilidade e sociabilidade possível decorrentes do próprio Estado de Direito. Trata-se, em suma, daquilo que se veio preservando e não do que se vem anulando:

Mas embora chegue um momento em que é quase impossível distinguir o que o direito e o que a política de poder prescrevem, isso não significa, em absoluto, um endosso de tentativa austiniana de basear o direito no próprio poder. Pois, para entender os sistemas jurídicos, necessitamos, não de uma estrutura conceptual que nos habilite a assinalar de forma indiscutível o que é legalmente válido, quando nos defrontamos com situações marginais, revolucionárias ou remotas, mas de uma que explique os padrões constitucionais de Estados razoavelmente bem organizados, assim como suas relações jurídicas inter se (Lloyd, 2000, p. 224).

A essa altura talvez não fosse preciso dizer, mas os padrões constitucionais do Estado, razoavelmente, configuram o modelo jurídico típico do Estado de Direito. E o Estado de não-Direito, por sua vez, em sua forma genérica, ou Estado Fascista ou Proto-Fascista, em outra forma mais específica, também pode por em perfeita sintonia o Direito e o Poder. Contudo, ainda terá outras características para além da violência e do vilipêndio do Direito e da Justiça. Tenhamos claro que se há Direito nessas situações ele será a própria negação da Justiça ou será o Direito a serviço do poder: um Direito dos poderosos, portanto, e que não se encontra sob judice popular.

Da mesma forma, é certo que se aniquila todo Direito e toda forma de divergência em favor de certa unidade política sem finalidade pública. Para Umberto Eco (1998), muitas são as variáveis entre Direito e política no Estado Fascista, mas aqui ajustamos apenas algumas características e de acordo com nossa principal linha de análise. Neste sentido, o que vale para o Estado fascista também vale para o Estado de não-Direito:

1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e verdade primitiva. Como conseqüência, não pode existir avanço do saber. 2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. O iluminismo, a Idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como irracionalismo. 3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e, portanto, deve ser realizada sem nenhuma reflexão. 4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. Para o Ur-Fascismo, a crítica e o desacordo são traições. 5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade cultural. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição. 6. Uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas. 7. Na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô. Os seguidores têm que se sentir sitiados e o modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia. 8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo – com isso, porém, revelam-se incapazes de avaliar a força do inimigo. 9. Não há luta pela vida, mas antes vida para a luta. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. 10. Há um elitismo popular, populista, que faz as massas sonharem com o poder. 11. Nessa perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Esse culto do heroísmo está estreitamente ligado ao culto da morte, não é por acaso que o mote dos falangistas era: "Viva la muerte". (Eco, 1998, p 43 e ss.) [19].

Nesse Estado Fascista ou de não direito, educa-se para a morte.

Como vimos, apenas o desafio teórico colocado pelo conceito de Estado de Direito e, por oposição, a ausência do Direito dentro do Estado, já é grande o suficiente. Mas, a par disso, some-se o rescaldo de toda nossa história de direitos negados à maioria da população e teremos um quadro dramático que até hoje mantém a questão operária (e da pobreza) como questão de polícia, e não de política.

Por fim, pode-se dizer: não há campo mais fértil ao crescimento do Estado Paralelo (seja de não-Direito, seja Proto-Fascista) do que aquele em que o Estado de Direito é ou está ausente, obedecendo à vontade política exclusiva da classe dominante ou em decorrência de extremada incompetência administrativa que deixa a arena livre para o crime organizado.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de não-Direito:: a negação do Estado de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1075, 11 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8501. Acesso em: 29 mar. 2024.

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