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Estado de não-Direito:

a negação do Estado de Direito

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11/06/2006 às 00:00
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3. Quem tem legitimidade ao Direito

Como alegamos, os pobres, portanto, reivindicam para si o Estado de Direito e têm por definição que para que isso se dê em consenso é preciso que o Estado esteja voltado justamente aos interesses populares. Os líderes do Estado Paralelo pretendem, inversamente, o falecimento do Estado de Direito e o sucateamento dos seus aparelhos, pois assim monopolizam a atenção popular e a prestação de serviços comunitários fica a seu cargo.

Sem a concorrência das agências do Estado Oficial, realizando a segurança interna, com ordem e hierarquia no comando, ainda retaliam ofertando bens e serviços à comunidade, e assim floresce o não-Direito. O Estado Paralelo provoca sua aceitação interna ao grupo (convencendo ou impondo-se violentamente para isso, não importa) e com isso tem a base inicial necessária à construção de sua legitimidade: condição igualmente essencial para que se mantenha como liderança.

Os líderes do Estado Paralelo, ainda que aleguem qualquer Direito in rebellis, sempre serão inimigos (hostis) do Estado de Direito, estando ao alcance do Direito de guerra (ius belli), e jamais possuirão o status de opositores do sistema. Os cidadãos, por sua vez, além de poderem se livrar do jugo do Estado Paralelo podem corrigir o Estado de Direito, pois participariam da transformação do rebellis em civis (cidadão ativo) e estariam muito mais interessados nessa transformação, nessa passagem ou afirmação do Estado de Direito.

Os cidadãos, intrinsecamente, revitalizam o direito à oposição, quando se voltam contra o abandono do Estado de Direito. Para isso, ainda podem alegar que há injustiça social, pois o mesmo Estado de Direito, para eles, em virtude de seu estado de abandono e descaso, é só um Estado de Injustiça. Nessa dimensão social embrutecida pela pobreza e miséria, o Direito figura como opressão, mas, o pior é que nessa condição o Estado Oficial será o maior praticante dos crimes sociais.

Porém, mesmo com tudo isso, os líderes do Estado Paralelo não representam esses mesmos abandonados ou ignorados pelo Estado de Direito. Para os mais pobres, o Estado de Direito não é de fato, mas só de Direito e formal. Para os líderes do Estado Paralelo, tanto o Estado de Direito Oficial quanto o Estado de não-Direito (uma determinada situação ou condição que negam o Direito) personificam esse fato: a ausência do Estado e do Direito. E é a ausência do Direito que os beneficia.

Os pobres podem alegar que criminosos do colarinho branco estão acobertados e sob a proteção das leis do Estado de Direito, e que estes criam ainda mais leis contra os bandidos pobres, com a finalidade única de se manterem pelo maior tempo possível nas condições presentes de domínio em que se encontram. Mas os supostos líderes do Estado Paralelo não, porque, como bandidos interessados no não-Estado, não podem ajustar o mesmo Estado Democrático de Direito Social de acordo com o benefício popular, republicano.

Os mais pobres estão e são aptos a invocar o direito à revolução porque, como membros da coletividade motivadose movidos por sua história e cultura, transformam-se em agentes sociais e em sujeitos históricos destinatários do direito à revolução. O alcance da Justiça Social significa-lhes a transformação das condições materiais da vida particular e da vida social em que se inserem e se refazem – isso altera as relações mantidas e travadas no interior da sociedade civil.

De forma complementar, os mais pobres têm aptidão à transformação social e à revolução da base cristalizada do Estado de Direito porque lhes interessa diretamente realizar, efetivar o Estado de Justiça Formal, que provém do Estado de Direito, e o Estado de Justiça Social – que possa advir do Estado Democrático de Direito Social: igualizando, somando Justiça Material, social, real com a Justiça Formal, oriunda da aplicação do Direito Positivo.

Em resumo, vemos no Direito o resultado da civilização dos atos sociais – o controle da beligerância, a negação da violência e da dor: impostas como meio de controle e atemorização pelo Estado Paralelo. Aos criminosos do Estado Paralelo, de forma diversa, não interessa nenhuma forma de Justiça, só a ganância pelo poder. A realização da Justiça, ao contrário, colocaria fim ao seu Estado repressor e paternalista, pois este vive do intercâmbio entre ameaça e concessão, terror e premiação, assédio e eliminação, rígido controle interno e cooptação, violência e beneplácito com o arbítrio. Mas, ainda mais uma vez, não nos esqueçamos de que estas são características de todo e qualquer Estado Paternalista, populista, assistencialista e seja ele um Estado de Direito ou não.

Se quisermos expor de forma mais descritiva, ainda podemos dizer que esses líderes do Estado Paralelo também não representam o direito à revolução, porque:

1.Forjam, financiam ou simplesmente fabricam sua própria condição de liderança, sem que seja respeitada a condição natural da liderança – dada pela confiabilidade, respeito mútuo, afinidade eletiva, ideológica e de objetivos e metas traçadas para o benefício comum.

2.Não são conclamados ou proclamados líderes, e, assim, colocam-se à margem da noção e da experiência provocada pelo Estado Democrático e pela República Popular.

3.Alegam que nunca foram incorporados pelo Estado Democrático de Direito Social, e, por isso, justificam sua destruição.

4.Não entendem que esse direito à revolução será usado pelo povo – como foi, historicamente –, em defesa da liberdade, da igualdade, da felicidade e da dignidade da pessoa humana.

5.Não compreendem que passado o período revolucionário deveriam guiar o povo, se de fato fossem líderes, em sua busca de maior segurança.

6.Suas reivindicações legítimas contra a opressão – do próprio Estado de Direito – só se manifestam de forma ilegítima, posto que se impõem por meio de outras formas de opressão.

7.Buscam o poder a qualquer custo, unicamente para satisfazer a ganância pessoal.

8.São incapazes de formular projetos sociais humanitários.

9.Seu modelo social é ainda mais discriminatório e, desse modo, só podem gerar e gerir maiores níveis de injustiça social.

10.Seu modelo político é autoritário, autocrático.

11.Toda noção de regra, que possa haver, não passa de meros acordos e de imposições discricionárias do poder local.

12.Seu poder é ilegítimo, visto que não compõe novo pacto, contrato ou acordo social.

13.São incapazes de formular uma cultura legal e legítima mais civilizatória do que a montada sobre o Estado de Direito atual.

14.Sua capacidade de ação é limitada às possibilidades de infração.

15.Representam, quando podem, única e exclusivamente seus interesses materiais.

16.Não simbolizam, e muito menos sintetizam, os anseios populares.

17.Só espelham a corrupção do Direito e espalham o terror, o medo e o ódio.

18.Seus códigos e símbolos estão calcados no temor.

19.Se são incapazes de suprir a plena realização e o desenvolvimento da sua coletividade de origem, são ainda mais inaptos a colaborar no esforço global de defender a coisa pública.

20.Desconhecem qualquer noção e princípio democrático e, por isso, rapinam tanto quanto podem a República.

21.Nunca se mostraram aptos – mesmo quando diante das reivindicações mais justas e legítimas – a produzir sequer um esboço de sociedade mais democrática e global.

22.São incapazes de formular qualquer tipo de projeto político, ideológico, social ou econômico alternativo, mas que seja democrático, popular e inclusivo.

23.Sua lógica econômica é individualista, não inclusiva e, portanto, também é incapaz de distribuir riqueza social.

24.Sua lógica econômica também só opera no nível do consumo derivado da infração, sendo incapaz de produzir qualquer tipo de produto, bem ou serviço socialmente necessário, útil e válido.

25.Significam um retrocesso diante do atual modelo do Estado Democrático de Direito Social.

26.Em suma, não libertam, oprimem.

Os mais pobres nutrem, fervorosamente, a idéia da Justiça Material e processual, ao contrário dos líderes do suposto Estado Paternalista. Quem se organiza para o cometimento de crimes contra o povo jamais saberá o que é legítimo, legal e justo - daí não ser capaz de se portar de forma satisfatória diante do Estado Democrático de Direito Social.

Também podemos entender por crimes contra os pobres, de forma técnica, os crimes cometidos pelo próprio Estado de Direito, isto é, os atos da Administração Pública dirigidos contra o patrimônio ou espírito público, prestando desserviço público, e que possam gerir, favorecer, incentivar ou agravar situações de maior pobreza e miséria social. Neste caso, novamente há similitude entre o Estado de não-Direito e o Estado Oficial Omisso, especialmente quanto a(os):

- Atos genéricos do Estado Oficial que desestabilizem, não promovam ou não incentivem os preceitos da República.

- Omissões propositais que desestimulem o interesse público.

- Ações ou omissões causadas ou causadoras de todas e quaisquer formas de corrupção político-administrativa.

- Proposição de políticas públicas que agravem a miséria social.

- Remoção de políticas públicas, medidas administrativas ou quaisquer diretrizes, metas, princípios ou objetivos de Estado que visem inibir a miséria social, sem a reposição de outro ato de governo que lhe seja equivalente em termos de alcance, profundidade e abrangência dos serviços, recursos, ou instrumentos utilizados contra essa mesma miséria social.

- Desinteresse por medidas governamentais que desagravem a pobreza ou a miséria social.

- Improbidade administrativa que viole os princípios ou os objetivos do Estado de Direito.

- Incompetência administrativa que provoque ações ou omissões geradoras de outras formas de desinteresse social.

- Toda e qualquer situação provinda da administração pública que privilegie o interesse privado ao invés do interesse público.

- Toda situação promovida pela Administração Pública que acentue situações de classe, partidos, grupos ou indivíduos em detrimento do benefício público.

- Promoção de leis injustas, privilégios, particularismos ou benefícios privados que levem a ações, situações ou relações baseadas na desigualdade social.

- Desenvolvimento e funcionamento das estruturas públicas para satisfação de interesses, negócios ou necessidades estritamente pessoais, e que, ao agir assim, inibam a preservação da coisa pública. É evidente que a distribuição da Justiça individual não é exemplo de manipulação do aparelho judicial do Estado, mas é evidente que beneficiar a distribuição da Justiça individual de forma contrária à promoção da Justiça Social é exemplo suficiente.

- Diretrizes ou finalidades do Estado que, por futilidade de interesse ou derivada de corrupção das intenções públicas, não promova ou, então, prejudique a interação e a solidariedade social.

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- Políticas Públicas, diretrizes do Estado, diretivas administrativas que obstaculizem a plena realização da felicidade popular, por meio da negação da igualdade, da liberdade ou da solidariedade social.

- Desmantelamento do aparato público – material ou legal – que esteja a serviço da proteção dos bens públicos.

- Deixar de desmantelar aparato público que esteja exclusivamente a serviço de interesses classistas ou individuais.

- Em resumo: quando há privatização do interesse e/ou patrimônio público.

De forma mais abrangente, e de maneira subsidiária ao que já anotamos, podemos relacionar Estado de não-Direito aos crimes contra o interesse público. Os tipos mais comuns e a forma de sua operacionalização não distinguem a procedência entre iniciativas privadas ou públicas. Portanto, tais crimes estão presentes em situações em que algum interesse particular seja privilegiado em contrasenso à predominância do interesse público. Desse modo, o Estado de não-Direito está presente em:

- Quaisquer situações, públicas ou privadas, que não estimulem a consecução da República, do Estado Democrático de Direito Social e da solidariedade social, uma vez que visa efetivar privilégios (como leis privadas, de alcance e beneplácito privado, particular [20]).

- Ações individuais ou globais – isoladas ou orquestradas - em torno de grupos de interesses fúteis e que sejam incentivadas ou não desestimuladas pelo Estado ou que desestabilizem relações sociais estáveis e profícuas à coletividade.

- Qualquer ação ou omissão, individual ou de grupo isolado, privada ou pública, estatal, governamental ou de organizações não-governamentais que promovam, ou simplesmente não neguem, tudo que possa obstaculizar ou subtrair a soberania popular e o respeito integral à Democracia.

Em oposição, o Estado de Direito deveria desestimular ou obstaculizar as demais ações públicas que visem:

- Depredar, de qualquer forma, o patrimônio de uso e de benefício comum.

- Depreciar, de qualquer forma, a fim de se obter vantagem, a imagem, o conceito, a perspectiva ou a reputação da República.

- Desqualificar, de qualquer maneira, utilizando-se de qualquer meio ou método, por qualquer motivação ou possível alegação ou justificativa, todo e qualquer trabalho que vise preservar a coisa pública.

De forma complementar, ainda podemos destacar o que chamaremos de crimes contra a opinião pública, contra a consciência da soberania popular, sobretudo em decorrência das atitudes derivadas dos cânones do poder estabelecido e do Estado. Mas, lembremos, grupos de interesse estritamente privado também concorrem para a gravidade desses crimes, a exemplo de que tanto o Estado Oficial quanto o Estado de não-Direito podem:

1.Vilipendiar, violar ou concorrer para a violação ou negação da cultura popular e da promoção social.

2.Ludibriar, encobrindo interesses escusos ou deixando de desnudar iniciativas nefastas - particulares ou do próprio Estado - a fim de se obter qualquer tipo de vantagem.

3.Manipular a opinião pública a fim de torná-la suscetível, indefesa ou conivente com ações públicas ou privadas, estatais ou individuais, governamentais ou não-governamentais, ou de qualquer outra natureza, a fim de se obter alguma vantagem política que possa prejudicar o povo, a nação ou o Estado, em sua soberania e interesse coletivo.

4.Promover a ilegalidade de qualquer ação – também por omissão -, alegando-se falsamente a necessidade de outra forma de legitimidade pública.

5.Obstruir o desenvolvimento do interesse coletivo - dos negócios, das políticas e das coisas públicas -, não prestigiando, desestimulando ou alegando de forma contrária ao pleno desenvovimento do dever público de zelar pela coisa pública.

6.Beneficiar a violência, contrariamente aos interesses do Estado Democrático de Direito Social.

7.Desmobilizar a atenção da opinião pública quando estiver atenta aos atos lesivos ao patrimônio ou erário público.

8.Demover a atenção pública da importância de se zelar pela integridade do patrimônio público.

9.Corromper o patrimônio público [21].

Todos esses crimes, desse modo, são dirigidos contra a consecução da idéia de que o todo deve ser preservado em detrimento das particularidades – a preservação do público quando oposto ao privado. Neste sentido, é próprio do Estado de não-Direito agir em benefício desses mesmos indivíduos e interesses particulares, pois, sem o todo, a luta pela definição dos interesses particulares seria extremamente seletiva, discriminatória, e não democrática.

Para este trabalho, pode-se frisar que coisa pública equivale ao patrimônio material, cultural, simbólico, histórico, ambiental, que exclui o patrimônio individual, de grupo, entidade, cooperado ou de classe social, bem como seja de estrito interesse particular, privado ou exclusivo a uso e benefício de indivíduo, grupo, camada, estrato, partido, parte, classe, aglomerado, entidade ou associação de interesse particular ou voltado à preservação de privilégios limitados ou condicionados aos mesmos interesses particulares. Dito isso, agora veremos a ação coletiva como um obstáculo à presença do Estado de não-Direito.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de não-Direito:: a negação do Estado de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1075, 11 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8501. Acesso em: 28 mar. 2024.

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