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Estado de não-Direito:

a negação do Estado de Direito

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11/06/2006 às 00:00
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4. A ação política como resposta coletiva ao Estado Paralelo

Veremos em detalhes, mas é certo adiantarmos que a melhor resposta ao Estado Paralelo é a fortificação do Estado Social: um Estado erigido em bases sociais, com ampla participação popular, onde a dinâmica do potestas in populo seja real, onde o poder popular confira soberania e legitimidade à ordem legal, é um antídoto contra a opressão. Assim, é como ver o poder popular conduzir o Estado, seus aparelhos, instituições e sistemas, mas antes de tudo, definir seus princípios e finalidades, agora como metas e objetivos de cunho social, popular, coletivo, democrático, ético e participativo.

Para todos nós, portanto, importa sobremaneira que ocorra uma transformação social no nível da aplicação da Justiça Formal e social - provocada pela motivação e ação do direito à revolução – para que não mais estejamos condenados a viver como se estivéssemos submetidos a uma espécie de Estado de Direito Kafkiano [22]: onde o Direito e o processo existem, mas sem fluir com justiça – aliás, não são justos.

De qualquer modo, é necessária a Justiça Formal, pois esta perfila a sensação de segurança e de certeza, a definição de certo e de errado, a posição e a condição de cada um dentro dos sistemas operatórios e diante do contrato social: em que se têm definidas as regras vigentes e seu modus operandi. A necessidade de haver um controle direto sobre a injustiça formal é a lição dada por Kafka, ao escrever que: "alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum" (Kafka, 1997, p. 09).

Com essa denúncia, Kafka inicia O Processo e, a nosso ver, inicia a denúncia política do Estado de não-Direito, em que o Direito, a Justiça, as instituições públicas, a limitação ou a frustração material do próprio Estado de Direito não corroboram para o fortalecimento do Estado Garante, mas simplesmente denotam sua ausência.

Num exemplo concreto, no entanto, os relatos de Vaclav Havel [23] demonstram a existência clara do Estado de não-Direito como uma premissa dos regimes em que vigora a força e não o Direito, como o elo responsável pelo equilíbrio de suas relações sociais. Ou, dizendo de outra forma, Havel esclarece, na ordem prática, como um Estado K. organiza seus sistemas e estruturas políticas e jurídicas para que o Direito seja meramente formal, indicativo, até mesmo constitucional, entretanto, estrondosamente injusto.

De modo inverso a esse estado de coisas, quando há confiabilidade na existência de regras que regem o sistema que escolhemos montar e apreciar, podemos chamar de Estado Democrático de Direito Social. Como Havel, poderíamos chamar de vida vivida na verdade, a vida vivida no Direito democrático e popular e, por conseguinte, na negação de todo tipo de ausência que nos negue. Ou seja, essa vida da mentira, do faz de conta, da ilusão, das ideologias da Justiça que nos ocasionam mais e maiores injustiças. Na definição do autor:

A "vida na verdade" no sistema pós-totalitário não tem apenas uma dimensão existencial: ela devolve o indivíduo noético a si próprio; desvenda a realidade tal como é; e, moral, representa um exemplo [...] O indivíduo não é e não pode ser alienado de si próprio senão porque há nele alguma coisa para alienar. É no terreno da sua vida autêntica que se exerce esta violência. A "vida na verdade" está, pois, diretamente inscrita na estrutura da "vida na mentira" como sua alternativa reprimida, como uma intenção autêntica à qual a "vida na mentira" dá uma resposta não autêntica [...] A "vida na verdade" como revolta do indivíduo contra a sua posição imposta, constitui uma tentativa de agarrar novamente a sua própria responsabilidade (Havel, 1991, pp. 132-138).

De modo complementar ao que devemos oferecer ao sistema - a fim de que não nos aniquile pela imposição de iniqüidades e inverdades –, é necessário repensarmos a parcela de ação, disposição, compleição política para a tomada de decisões que muitas vezes são de ordem pessoal e exigem tão somente de nós mesmos. Também é de ordem moral, porque se trata de uma espécie de condição para agir, como queria Hannah Arendt (1991), com sua vita activa.

É notável a diferenciação entre as esferas produtoras da vida social, como quer Arendt - seja enquanto transformação material e tecnológica do mundo físico, seja biológica e física, como alteração do físico humano pelo labor e pela alienação daí decorrente -, mas é na esfera da ação que se opera a política, isto é, a vida social. Portanto:

A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda vida política (Arendt,1991, p. 15).

O Estado de não-Direito só vê um homem, "o dono da política" e por isso é incapaz de ver os homens: como seres políticos. No entanto, se pensarmos na negação da negação do Estado de Direito, então, tratar-se-ia de uma qualidade de ação capaz de transformar tanto a vida privada quanto a vida pública, colocando-se como a matriarca da própria cidadania, ao menos desde os gregos. Como demonstra Arendt, é necessária a mediação entre público e privado, ou melhor, a afirmação do público sobre o privado, com o primado do comum, do que é de todos. A política é nossa segunda pele, interpõe-se junto à cidadania, para além da esfera familiar, privatista [24]:

O surgimento da cidade-estado significa que o homem recebera, "além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o que é comum (koinon)". Não se tratava de mera opinião ou teoria de Aristóteles, mas de simples fato histórico: precedera a fundação da polis a destruição de todas as unidades organizadas à base do parentesco, tais como a phratria e a phyle (Arendt, 1991, p. 33).

O Estado de não-Direito não é capaz de ultrapassar essa esfera do pessoal, do personalíssimo. Pois bem, retomando Havel, traçamos uma requisição à história que pode nos impulsionar a agir, transformando o que nos negava no que possa nos afirmar. Trata-se, portanto, de uma revolução copernicana na política ou, ainda, uma guinada do nível em que se faz por si mesmo para o níveldo fazer com os outros e pelos outros:

[...]se vê crescer, a partir deste pano de fundo mais vasto e mais anônimo, uma iniciativa mais visível e mais coerente, que vai além dos limites da "simples" revolta individual e se transforma numa atividade mais consciente, mais estruturada e mais orientada. A fronteira a partir da qual a "vida na verdade" deixa de ser "somente" a negação da "vida na mentira" e começa, de uma certa forma, a articular-se a si mesma de modo criativo [25], o lugar onde se gera o que poderíamos chamar a "vida independente espiritual, social e política da sociedade" (Havel, 1991, p.166-167).

E está aí, novamente, o direito de se mudar, de se revolucionar o errado em busca do desejado, de se transformar o ausente e negado em absoluta afirmação do global, de se negar frontalmente todas as formas e maneiras de negação do povo. Porém, hoje, é preciso entender que essa ausência é a condição primeira, a premissa da maior produção de injustiças sociais, pois a negação do Estado Democrático de Direito Social, para os mais pobres, é a condição de sua própria miséria, ao passo que sua afirmação poderia conotar maior e melhor desempenho às conquistas sociais.

Aliás, o principal fundamento histórico do Estado Democrático de Direito Social é justamente estender as conquistas sociais e do Direito aos que mais precisam, ao contrário do que possa supor uma análise vulgar de domínio classista. Para todos nós, mas especificamente para os mais pobres, de forma técnica, interessa realizar plenamente os pressupostos jurídicos da Justiça Formal (Estado de Direito) e da Justiça Material (Estado Democrático de Direito Social), bem como integralizar tanto a igualdade formal (todos são iguais perante a lei) quanto a igualdade real (da igualdade de oportunidades).

Para nos convencermos disso, basta-nos lembrar que a história política brasileira é ponteada de insucessos, se tomarmos como referência a plenificação dos direitos sociais e coletivos. Porém, é importante ressaltar que o Brasil – do ponto de vista jurídico, técnico – precisa se adequar aos procedimentos políticos necessários ao desenvolvimento do Estado de Direito. O estágio atual do Estado de Direito deriva do constitucionalismo alemão do século XX, e aponta para a realização das finalidades sociais com as técnicas jurídicas do Estado de Direito: isso equivaleria à presunção da prevalência da garantia constitucional dos direitos sociais.

Em Bonavides, é clara a afirmação de que o Estado Democrático de Direito Social é o antídoto, a reserva legal trazida pela terceira geração de direitos [26], contra a indignidade social que deve se constituir, assim, em nossa principal meta:

Mas o verdadeiro problema do Direito Constitucional de nossa época está, ao nosso ver, em como juridicizar o Estado social, como estabelecer e inaugurar novas técnicas ou institutos processuais para garantir os direitos sociais básicos, a fim de fazê-los efetivos. Por esse aspecto muito avançou o Estado social da Carta de 1988, com o mandado de injunção, o mandado de segurança coletivo e a inconstitucionalidade por omissão. O Estado social brasileiro é portanto de terceira geração, em face desses aperfeiçoamentos: um Estado que não concede apenas direitos sociais básicos, mas os garante (Bonavides, 2002, p. 338).

Evidentemente, o Estado de não-Direito nega os direitos sociais. Como já dissemos, aos mais pobres, as garantias do Estado Social são fundamentais posto que, por seu intermédio, pode-se inaugurar um tempo de Justiça Social. Esse modelo de Estado lhes assegura não só valores sociais integrados, mas também os meios legais (mandado de segurança coletivo, por exemplo) e políticos necessários à sua consecução: a exemplo da rede de segurança social, liquidada na atualidade, pelo chamado Estado Neoliberal. No plano técnico, porém, estas garantias sociais serão também o estopim das crises constitucionais mais profundas, pois, como diz Bonavides:

Contemporaneamente, os direitos sociais básicos, uma vez desatendidos, se tornam os grandes desestabilizadores das Constituições. Tal acontece sobretudo nos países de economia frágil, sempre em crise. Volvidos para o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da ordem social, esses direitos se inserem numa esfera de luta, controvérsia, mobilidade, fazendo sempre precária a obtenção de um consenso sobre o sistema, o governo e o regime. Alojados na própria Constituição concorrem materialmente para fazê-la dinâmica, sujeitando-a ao mesmo passo a graves e periódicas crises de instabilidade, que afetam o Estado, o governo, a cidadania e as instituições. Nunca deve ficar porém deslembrado que a Constituição do Estado social na democracia é a Constituição do conflito, dos conteúdos dinâmicos, do pluralismo, da tensão sempre renovada entre a igualdade e a liberdade; por isso mesmo, a Constituição dos direitos sociais básicos, das normas programáticas, ao contrário portanto da Constituição do Estado liberal, que pretendia ser a Constituição do repouso, do formalismo, da harmonia, da rígida separação de poderes, do divórcio entre o Estado e a Sociedade (Bonavides, 2002, p. 345).

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Vemos, desta forma, como o desequilíbrio trazido pela norma de conteúdo social, pelo direito social e trabalhista, é o que impõe novo prumo e pressão à ordem social, pois, a reivindicação da lei passa a ser a reivindicação social e, se atendida, transforma a realidade social, sob outra condição de equilíbrio, uma vez que os fatores sociais da desagregação estarão sob controle da própria sociedade. E talvez aí se possa dizer que a lei coincida com a ordem social, pois, do contrário, a lei impõe a desigualdade social sob a dinâmica que assegura o mesmo desequilíbrio social.

É fácil ver, portanto, que o Estado Democrático de Direito Social é o único que interessa aos mais pobres porque atua como a reserva legal da igualdade social – material e formal –, eliminando a legalização dos privilégios por meio da imposição de leis injustas. No caso brasileiro, para agravar ainda mais o quadro, devemos nos lembrar de que se trata de um critério de reserva legal (agora, contra leis injustas) que, por sua vez, não é de data nova, pois remonta a 1822, como diz Bonavides:

O Projeto da Constituinte [...] formulava com originalidade um capítulo sobre os "deveres dos brasileiros", no qual admitia o direito de resistência e declarava "dever do brasileiro negar-se a ser o executor da lei injusta", reputando como tal a lei retroativa ou oposta à moral, mas unicamente "se ela tendesse a depravá-lo e torná-lo vil e feroz" (2002, p. 329).

Esse dever de se negar ao cumprimento de lei injusta se assemelha a essa condição de insubmissão que solicitamos, quando diante do Estado de não-Direito. Seja a mera negação do Direito, seja a forma do crime organizado sob o que chamamos de Estado Paralelo, o que há em comum é a ausência do Estado de Direito e da cidadania democrática. E isto só pode interessar a uns poucos, mas não ao conjunto da sociedade que quer ver a si mesma como civis e não como hostis, solidária e não militarizada. À sociedade civil global, constituída de cidadãos, interessa o Estado Democrático de Direito Social - como síntese entre liberdade, igualdade, felicidade e dignidade da pessoa humana. Trata-se da própria síntese dos direitos da pessoa humana, dos direitos humanos assegurados a todos.

Do contrário, esse quadro de desfuncionamento interessa aos politicamente mais retrógrados e abastados, às classes sociais dominantes também reacionárias e, é óbvio, interessa que o texto legal não deixe o papel, não se materialize, posto que assim mantêm-se os privilégios. Já aos mais pobres, digamos outra vez, é essencial que a Constituição seja efetivada – no plano dos direitos individuais e sociais -, com políticas públicas eficientes, porque dessa forma também vêem transformadas as suas vidas materiais. Como vimos, a Justiça para poucos é mera questão legal, formal e abstrata; para muitos, a Justiça Social, é questão material, real, na ordem da sobrevida prática, processual portanto.

Para alguns, trata-se de ilustração teórica da vida (retórica) mas, para muitos, a Justiça é condicionante da própria vida. Porém, felizmente, restam poucas idiossincrasias contra uma crescente aspiração por transformações materiais da realidade. Trata-se de construir um Estado Democrático de Direito Social - sem disputas semânticas - em que a vida privada e pública seja vivida na verdade, em que se possa agir ativamente. Porque, por fim, a negação da vida social resulta diretamente da presença e da ação perversa do Estado de não-Direito.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de não-Direito:: a negação do Estado de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1075, 11 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8501. Acesso em: 28 mar. 2024.

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