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A nova redação dos quesitos no PL nº 4.203/2001

(reforma do Tribunal do Júri)

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15/06/2006 às 00:00
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Uma nova lei pode eliminar a necessidade de se quesitar separadamente as teses de defesa aos jurados, exigindo apenas que os jurados afirmem se o réu é "culpado ou inocente".

SUMÁRIO:INTRODUÇÃO; 1 O TRIBUNAL DO JÚRI , 1.1 A evolução histórica do Tribunal do Júri , 1.1.1 No mundo , 1.1.2 No Brasil , 1.2 Princípios constitucionais que norteiam o Júri ; 2 QUESTIONÁRIO NO TRIBUNAL DO JÚRI , 2.1 Conceito de questionário , 2.2 Fontes do questionário , 2.3 Redação e formulação atual dos quesitos ; 3 QUESTIONÁRIO NO PROJETO DE REFORMA DO JÚRI , 3.1 Redação dos quesitos no Projeto de Lei n.° 4.203/2001 , 3.2 As críticas à simplificação do questionário ,3.2 Outros sistemas possíveis de julgamento ; CONCLUSÃO ; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ; ANEXO


INTRODUÇÃO

A presente monografia tem por objetivo o estudo da nova sistemática dos quesitos no Tribunal do Júri, contida no Projeto de Lei n.° 4.203/2001, que tramita no Congresso Nacional. Tal sistema de questionário a ser feito aos jurados modificará substancialmente o atual sistema de votação, uma vez que eliminará a necessidade de se quesitar as teses de defesa, exigindo, ao invés disto, que os jurados afirmem tão-somente se o réu é "culpado ou inocente".

Cumulada com outras regras de teor simplificativo, dito sistema de questionário surgiu tendo como principal justificativa as constantes nulidades ocorridas com a formulação atual dos quesitos. Contudo, as alterações do questionário propostas fizeram emergir opiniões diversas entre doutrinadores e profissionais do Direito acerca de seus aspectos positivos e negativos, caso o projeto de lei em comento fosse aprovado. Nessa perspectiva, busca-se trazer nesta obra científica um estudo sobre todas as peculiaridades do novo questionário, inclusive em uma análise frente aos princípios constitucionais que norteiam o Tribunal do Júri.

Para a concretização de tal análise, necessário que se traga à leitura a evolução histórica do Júri, tanto no Brasil como no mundo, visualizando o berço dos preceitos constitucionais que hoje o regem.

Da mesma forma, há de se expor o conteúdo destes preceitos, cláusulas pétreas da Carta Magna de 1988, que devem ser rigorosamente observados e respeitados em qualquer projeto de lei superveniente à Constituição.

Tendo em vista o tema sob análise, urge que se transmita qual o sistema que melhor se harmoniza com decisões justas pelo Júri Popular, tão desejadas pela sociedade, mas sempre proporcionado ao acusado as garantias que a Constituição Federal lhe confere. Para isso, examina-se os principais aspectos tanto da proposta de novo questionário como da atual sistemática.

Portanto, tem-se como propósito do presente trabalho emergir conclusões acerca de qual é o melhor método de julgamento pelos jurados: o aplicado atualmente, o previsto no Projeto de Lei n.° 4.203/2001, ou outro sistema sugerido pelos doutrinadores e juristas?

Muito se discute sobre a capacidade dos juízes leigos de realizarem um justo e correto julgamento, uma vez que está sobre esta decisão o peso de se privar a liberdade de um ser humano. Assim, diante da peculiaridade inerente à instituição do Júri, patente está a relevância da matéria em estudo.


1 O TRIBUNAL DO JÚRI

1.1 A evolução histórica do Tribunal do Júri

O Júri Popular, desde seu surgimento, foi uma instituição polêmica em face da discussão quanto à capacidade dos jurados para decidir questões consideradas pelos juristas como de alta relevância técnica [01]. Para termos uma melhor compreensão da estrutura e julgamentos deste instituto, de entusiasmados adeptos e de veementes opositores, mister que se apresente sua origem e evolução histórica no Brasil e no mundo.

1.1.1 No mundo

Procurando buscar a origem da instituição do Júri, encontrou-se uma prefiguração secular nos judices romanos, nos discatas gregos, e nos centeni comites dos primitivos germanos [02]. Entretanto, ali não se verificou nenhum colegiado que pudesse ter, pelo menos, as características do Tribunal do Júri [03].

Por outro lado, segundo doutrina Paulo Rangel, o Júri passou a surgir durante o reinado de Henrique II (1154-1189), na Inglaterra, com o propósito de eliminar as chamadas ordálias [04]. Válida é sua descrição:

(...) a acusação, que até então era feita por um funcionário, espécie de Ministério Público, passou a ser feita pela comunidade local quando se tratava de crimes graves (...), surgindo assim o júri que, como era formado por um número grande de jurados (23 jurados no condado), foi chamado de Grand jury (Grande Júri). Por isso era chamado de Júri de acusação.

(...) Deviam decidir segundo o que sabiam e com base no que se dizia, independentemente de prova, já que estas eram de responsabilidade de outros doze homens de bem, recrutados entre os vizinhos, formando assim um pequeno júri (Petty jury) que decidia se o réu era culpado (guilty) ou inocente (innocent). [05]

O referido Petty juri, também chamado Júri de julgamento, surge com caráter intimamente religioso, não somente pelo número de jurados (em alusão aos doze Apóstolos de Cristo), mas pelo poder que passa a ser concedido aos homens comuns de serem detentores da verdade para julgar uma conduta humana, função, na época, pertencente exclusivamente a Deus, através das ordálias [06].

Assim, formou-se um consenso entre boa parte da doutrina que o Júri, na sua visão moderna, teve origem na Inglaterra, em 1215, depois que o Concílio de Latrão aboliu as ordálias e os juízes de Deus [07].

No referido ano, na Inglaterra, iniciou-se a propagação do Júri com a edição da Carta Magna do Rei João Sem Terra, que possuía o seguinte preceito: ninguém poderá ser detido, preso ou despojado de seus bens, costumes ou liberdades, senão em virtude de julgamento de seus pares, segundo as leis do país [08]. (Grifou-se).

Após a Revolução Francesa [09] de 1789, com o intuito de combater as idéias e métodos dos magistrados do regime monárquico, estabeleceu-se o Júri na França, de onde espalhou-se para os demais países da Europa, exceto Holanda e Dinamarca, como ideal de liberdade e democracia [10]. No tocante, ainda, aos motivos para a difusão do Júri na época, salienta Guilherme de Souza Nucci:

(...) que o Poder Judiciário não era independente, motivo pelo qual o julgamento do júri impunha-se como justo e imparcial, porque produzido pelo povo, sem a participação de magistrados corruptos e vinculados aos interesses do soberano. [11]

Convém destacar que, com base no petty jury (Júri de julgamento), a Constituinte francesa buscou as linhas estruturais da instituição do Júri, modificando e adaptando o modelo inglês, a ponto de formar um sistema próprio, que serviu de paradigma às demais legislações do mundo ocidental [12].

No entanto, o prestígio do Tribunal do Júri não teve a mesma intensidade que houve na justiça inglesa, motivo pelo qual, em muitos países, o Júri transformou-se em tribunal escabinado, ou seja, jurados e juízes votam, decidindo [13]. O que não ocorreu nos Estados Unidos, onde o Tribunal do Júri, adotando o sistema inglês, é considerado, até hoje, uma das mais importantes salvaguardas constitucionais na esfera criminal e cível. O Júri norte-americano tornou-se regra e não a exceção [14].

1.1.2 No Brasil

Em nosso país, o caminho que percorreu o Tribunal do Júri, desde 1822, como bem destaca James Tubenchlak, assemelha-se a uma Guerra Santa: ora avançando, ora compelido a recuar, ora deformado em sua competência material, resistiu galhardamente a tudo isso, inclusive dois períodos ditatoriais [15].

Em 18 de junho de 1822, época em que o Brasil ainda era colônia de Portugal, por decreto do Príncipe Regente D. Pedro de Alcântara, instalou-se o Júri no Brasil [16]. Este foi denominado de "Juízes de Fato", o qual era composto por vinte e quatro jurados, com competência restrita para julgar os crimes de imprensa, cabendo recurso de suas decisões somente dirigido ao Príncipe Regente [17].

Com a Constituição do Império, de 25 de março de 1824 (arts. 151 e 152), o Júri passou a ser um dos ramos do Poder Judiciário, atribuindo a este competência para julgar todas as infrações penais e determinadas causas cíveis, conforme determinassem as leis [18]. Por meio de uma Lei de 20 de setembro de 1830, o Júri passou a ser organizado em "Júri de Acusação" e "Júri de Julgação".

Tendo por base dita lei, o Código de Processo Criminal do Império, de 29 de novembro de 1832, estabeleceu o "Júri de Acusação", com vinte e três jurados, e o "Júri de Sentença", com doze [19], o que se denota a semelhança com o originário Júri inglês, ao possuir o "grande júri" e o "pequeno júri". O primeiro, com debates entre os jurados, decidia se a acusação contra o réu era procedente. Caso afirmativo, o réu seria submetido a julgamento pelo "pequeno júri" [20].

Em primorosa analogia, ensina Paulo Rangel:

(...) o grande júri exercia o papel que hoje é dado ao juiz togado na decisão interlocutória de pronúncia (art. 408 do CPP = julgar admissível a pretensão acusatória).

Decidido, pelos 23 jurados, que o réu seria julgado pelo Conselho de Sentença, este, formado por 12 outros jurados, decidiria sobre o mérito da acusação. Tratava-se do, agora, pequeno júri (...). [21]

Todavia, em 03 de dezembro de 1841, através da Lei n.° 261, foi extinto o Júri de Acusação. Nesta época, o Júri sofreu um duro golpe com profundas modificações em sua estrutura. Dentre elas, destaca-se: a pronúncia ou impronúncia dos réus ficou a cargo dos delegados e subdelegados de polícia, sendo, após, submetidas ao juiz municipal [22]; a lista dos jurados passou a ser elaborada pelos delegados de polícia, que escolhiam somente cidadãos que podiam ser eleitores, o que resultava num "júri de classes", uma vez que os que tinham baixa condição econômica não podiam ser eleitores [23].

Agravando a situação imposta pela Lei n.° 261, editou-se a Lei n.° 562, de 2 de julho de 1850, a qual subtraiu da competência do Júri o julgamento dos crimes de moeda falsa, roubo, homicídio nos municípios da fronteira do Império, resistência e tiradas de preso e bancarrota [24].

Tal quadro alarmante imposto ao Júri somente foi minimizado pela Lei n.° 2.033, de 20 de setembro de 1871 (Lei Rio Branco), regulada pelo Decreto Imperial n.° 4.824, de 22 de novembro de 1871, que redefiniu a competência do Júri para toda a matéria criminal. Além disso, tal dispositivo trouxe outra importante alteração: extinguiu as atribuições dos chefes de polícia, delegados e subdelegados para a formação da culpa e para pronunciar os acusados, passando a serem de competência dos juízes de direito das comarcas [25].

Com o fim do regime imperial e a proclamação da República, manteve-se a instituição do Júri na primeira Constituição Republicana, de 24 de fevereiro de 1891. Segundo Guilherme de Souza Nucci, sob influência da Constituição americana, quando incluído o Júri em nossa Carta Maior Republicana, colocou-se tal instituição entre os direitos e garantias individuais dos cidadãos. Afirma Nucci que esse resultado foi obtido em face da intransigente defesa do Tribunal Popular feita por Rui Barbosa, seu admirador inconteste [26].

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Estabelecia o art. 72, § 31, da Carta Magna de 1891: é mantida a instituição do Júri. Tendo em vista o teor lacônico da tal dispositivo, houve ampla discussão no tocante ao significado da expressão "é mantida". Em face disso, conforme descreve José Frederico Marques, o Supremo Tribunal, em acórdão de 07 de outubro de 1899, dando certa regulação à instituição, decidiu que:

São características do tribunal do júri: I – quanto à composição dos jurados, a) composta de cidadãos qualificados periodicamente por autoridades designadas pela lei, tirados de todas as classes sociais, tendo as qualidades legais previamente estabelecidas para as funções de juiz de fato, com recurso de admissão e inadmissão na respectiva lista, e b) o conselho de juramento, composto de certo número de juízes, escolhidos à sorte, de entre o corpo dos jurados, em número tríplice ou quádruplo, com antecedência sorteados para servirem em certa sessão, previamente marcada por quem a tiver de presidir, e depurados pela citação ou recusação das partes, limitadas as recusações a um número tal que por elas não seja esgotada a urna dos jurados convocados para a sessão; II – quanto ao funcionamento, a) incomunicabilidade dos jurados com pessoas estranhas ao Conselho, para evitar sugestões alheias, b) alegações e provas de acusação e defesa produzidas publicamente perante ele, c) atribuição de julgarem estes jurados segundo sua consciência, e d) irresponsabilidade do voto emitido contra ou a favor do réu. [27]

Seguindo a trajetória conturbada do Júri, a Constituição Federal de 16 de julho de 1934, tendo como Presidente Getúlio Vargas, novamente retrocedeu a instituição do Júri, retirando-a da seção dos direitos e garantias fundamentais para dispor na destinada ao Poder Judiciário [28].

Em 10 de novembro de 1937, Getúlio Vargas instala a ditadura no Brasil, revoga a Constituição de 1934 e outorga a Carta Magna do denominado Estado Novo, a qual, para surpresa dos juristas, não possuía qualquer norma tratando do Júri [29]. Assevera Guilherme de Souza Nucci que, por conta disso, iniciaram-se os debates acerca da manutenção ou não da instituição do Júri no Brasil, até que o Decreto-lei 167, de 1938, confirmou a existência do júri, embora sem soberania [30].

Referido decreto veio a suprimir a soberania dos veredictos, pois passou a permitir o recurso de apelação quanto ao mérito da decisão dos jurados, em caso de completa divergência desta com as provas existentes. O Tribunal de Apelação poderia, inclusive, aplicar pena mais justa ou absolver o réu [31]. Aliás, acrescenta-se que citado decreto, mais tarde, foi incorporado ao Código de Processo Penal de 1941 [32].

Durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, o Júri passou a ser composto por sete pessoas, que eram escolhidas pelo juiz dentre as que faziam parte da elite na sociedade, bem como instituiu-se a incomunicabilidade entre os jurados [33], distanciando-se o Júri do Brasil, definitivamente, do sistema inglês. Neste período, conforme leciona Paulo Rangel, o júri julgava os crimes de homicídio, atentado contra a vida de uma pessoa por envenenamento, o infanticídio, o suicídio, a morte ou lesão corporal seguida de morte por duelo, o latrocínio e a tentativa de roubo [34].

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, e finda a ditadura de Getúlio Vargas, foi promulgada nova Constituição do Brasil, em 18 de setembro de 1946, que restaurou a soberania dos veredictos do Júri, além de recolocá-lo no capítulo das garantias individuais [35]. Assim previa o art. 141, § 28, da Constituição de 1946:

É mantida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, contanto que seja sempre ímpar o número dos seus membros e garantido sigilo das votações, a plenitude de defesa do réu e a soberania dos veredictos. Será obrigatoriamente da sua competência o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. [36](Grifo nosso).

Durante o segundo regime de ditadura no país, iniciado pelo golpe militar de 1964, permaneceu a instituição do Júri inalterada na Constituição do Brasil de 24 de janeiro de 1967 e na Emenda Constitucional de 1969. Esta última, entretanto, como afirma Lenio Luiz Streck, não fez menção à soberania dos veredictos, reabrindo a discussão sobre a relevância do Júri em nossa sociedade [37].

Finalmente, encerrado o regime militar no Brasil, o Tribunal do Júri ingressou num período democrático, com nossa atual Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, que, revivendo os princípios previstos na Carta Magna de 1946, prevê no art. 5°, inciso XXXVIII, dentre os direitos e garantias fundamentais:

XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a)a plenitude de defesa;

b)o sigilo das votações;

c)a soberania dos veredictos;

d)a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

O Tribunal do Júri tornou-se, assim, como bem doutrina Alexandre de Moraes:

(...) de essência e obrigatoriedade constitucional, regulamentado na forma da legislação ordinária, e, atualmente, composto por um juiz de direito, que o preside, e por 21 jurados, que serão sorteados dentre cidadãos que constem do alistamento eleitoral do Município, formando o Conselho de Sentença com sete deles. [38]

1.2.Princípios constitucionais que norteiam o Júri

Como já exposto na seção anterior, o Tribunal do Júri no Brasil, após tumultuado percurso histórico, passou a ter, com a Carta Magna de 1988, quatro princípios constitucionais basilares: a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para os crimes dolosos contra a vida (art. 5°, inciso XXXVIII, da CF).

A plenitude de defesa,atribuída à instituição do Júri, traz aparente redundância do direito constitucional à ampla defesa (art. 5°, LV, da CF). Todavia, são dois preceitos diferentes impostos pelo legislador constituinte. Aramis Nassif esclarece que a plenitude de defesa no Tribunal do Júri foi estabelecida para determinar que o acusado da prática de crime doloso contra a vida tenha ‘efetiva’ e ‘plena’ defesa. A simples outorga de oportunidade defensiva não realiza o preceito, como ocorre com a norma concorrente [39](leia-se ampla defesa).

Escrevendo sobre a matéria, ensina Guilherme de Souza Nucci:

Um tribunal que decide sem fundamentar seus veredictos precisa proporcionar ao réu uma defesa acima da média e foi isso que o constituinte quis deixar bem claro, consignando que é qualidade inerente ao júri a plenitude de defesa. Durante a instrução criminal, procedimento inicial para apreciar a admissibilidade da acusação, vige a ‘ampla defesa’. No plenário, certamente que está presente a ampla defesa, mas com um toque a mais: precisa ser, além de ampla, ‘plena[40]. (Grifo nosso).

Nessa perspectiva, amparado pela plenitude de defesa, poderá o defensor usar de "todos" os argumentos lícitos para convencer os jurados, uma vez que estes decidem por íntima convicção, ou seja, julgam somente perante a consciência de cada um, sem fundamentarem e de forma secreta [41].

Obedecendo dito princípio constitucional, exemplificadamente, deve o Magistrado, por ocasião da elaboração do questionário, quesitar todas as teses defensivas, mesmo que sejam eventualmente contraditórias [42]. No mesmo sentido, deve o Juiz-Presidente observar atentamente o trabalho desenvolvido pela defesa, pois, sendo este deficiente, deverá dissolver o Conselho de Sentença, em atendimento ao art. 497, inciso V, do CPP [43], em harmonia com o princípio da plenitude de defesa [44].

Ademais, deve-se ressaltar que, segundo ensina Pontes de Miranda, na plenitude de defesa, inclui-se o fato de serem os jurados tirados de todas as classes sociais e não apenas de uma ou de algumas [45].

Quanto ao sigilo das votações assegurado pela Carta Magna, doutrina Lenio Luiz Streck, um dos defensores da extinção da sala secreta, que tal dispositivo consiste em: cada jurado responderá o quesito de forma sigilosa, e não o sigilo na votação. (...) sigilo das votações é equivalente a voto secreto, e sigilo na votação corresponde à sessão secreta [46].

James Tubenchlak, outro fervoroso adepto à idéia de extinção da sala secreta, argumenta que o princípio da publicidade (art. 5°, inciso LX, da CF) somente pode ser restringido em duas hipóteses: defesa da intimidade e exigência do interesse social ou público, sendo que ambas são incompatíveis, genericamente, com o julgamento pelo Júri [47].

Não obstante o citado entendimento, somos da opinião que, para uma justa e livre decisão dos jurados, sem constrangimentos decorrentes da publicidade da

votação, deve ser mantido tanto o voto secreto como a votação em sala secreta, nos moldes dos artigos 480 e 481 do Código de Processo Penal [48].

Nesse sentido, é a exímia lição de Aramis Nassif:

Assegura a Constituição o sigilo das votações para preservar, com certeza, os jurados de qualquer tipo de influência ou, depois do julgamento, de eventuais represálias pela sua opção ao responder o questionário. Por isso mesmo a jurisprudência repeliu a idéia de eliminação da sala secreta, assim entendida necessária por alguns juízes com base na norma da Carta que impõe a publicidade dos atos decisórios (art. 93, IX, da CF). [49]

A soberania dos veredictos, que já foi retirada do Júri durante sua trajetória no Brasil, conforme exposto na seção anterior, hoje, está entre as cláusulas pétreas da Constituição de 1988. Entende-se que a decisão dos jurados, feita pela votação dos quesitos pertinentes, é suprema, não podendo ser modificada pelos magistrados togados [50]. No ensinamento de Guilherme de Souza Nucci, soberania quer dizer que o júri, quando for o caso, assim apontado por decisão judiciária de órgão togado, terá a última palavra sobre um crime doloso contra a vida [51].

Ainda, em conceito sucinto e claro, o francês Faustin Hélie, citado por José Frederico Marques, leciona que a soberania do Júri consiste na impossibilidade de os juízes togados se substituírem aos jurados, na decisão da causa [52].

Tendo em vista o teor de dito preceito constitucional, muito se discute entre os juristas se a soberania das decisões do Júri não é afetada pelo Código de Processo Penal, que possibilita a anulação dos veredictos pela instância superior, quando "manifestamente contrário à prova dos autos". Assim prevê dito diploma legal:

Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:

(...)

III – das decisões do Tribunal do Júri, quando:

(...)

d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

(...)

§ 3°. Se a apelação se fundar no n. III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação.

Entendemos que a possibilidade do recurso de apelação, conforme dispositivo acima, não afeta a soberania dos veredictos, pois declarada nula a decisão pela instância superior, os autos voltarão ao Tribunal do Júri para realização de novo julgamento e decisão.

Nessa senda, contrapondo a corrente que entende inconstitucional o supracitado recurso, bem argumenta José Frederico Marques:

Consistirá, porém, essa soberania na impossibilidade de um controle sobre o julgamento, que, sem subtrair ao Júri o poder exclusivo de julgar a causa, examine se não houve grosseiro erro in judicando? De forma alguma, sob pena de confundir-se essa soberania com a onipotência insensata e sem freios. [53]

Em consonância com tal argumento, Lenio Luiz Streck entende inexistir violação à soberania do Júri, ‘mas apenas um mecanismo de provocar um novo julgamento por este mesmo Tribunal do Júri’, em busca de maior segurança em face de crimes e penas tão graves [54].

Nesse sentido, aliás, entende o Supremo Tribunal Federal, o qual declarou que a garantia constitucional da soberania do veredicto do Júri não exclui a recorribilidade de suas decisões. Tal soberania está assegurada com o retorno dos autos ao Tribunal do Júri para novo julgamento [55].

Outro aspecto relevante no tocante à soberania do Júri diz respeito à possibilidade de revisão criminal de seus julgamentos. Embora a soberania do Conselho de Sentença seja atingida pelo acolhimento da revisão criminal, a doutrina e a jurisprudência dominante entendem cabível tal impugnação autônoma.

Dentre os inúmeros argumentos para dito entendimento, destaca-se a lição de Julio Fabbrini Mirabete:

A soberania dos veredictos é instituída como uma das garantias individuais, em benefício do réu, não podendo ser atingida enquanto preceito para garantir a sua liberdade. Não pode, dessa forma, ser invocada contra ele. Assim, se o tribunal popular falha contra o acusado, nada impede que este possa recorrer ao pedido revisional, também instituído em seu favor, para suprir as deficiências daquele julgamento. Aliás, também vale recordar que a Carta Magna consagra o princípio constitucional da amplitude de defesa, com os recursos a ela inerentes (art. 5°, LV), e que entre estes está a revisão criminal, o que vem de amparo dessa pretensão. [56]

Argumentando, também, pela possibilidade da revisão criminal, Hermínio Alberto Marques Porto:

A soberania dos veredictos tem seu sentido – impossibilidade de outro órgão jurisdicional modificar a decisão dos jurados (...) – e seus efeitos restritos ao processo enquanto relação jurídico-processual não decidida. Assim, transitando em julgado a sentença do Juiz Presidente, é cabível a revisão do processo findo (art. 621), e o que foi decidido na esfera revisional ‘não fere a soberania do Júri’. [57]

Finalizando os princípios constitucionais do Júri, encontramos a sua competência para os crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados. Tais crimes estão previstos no início da Parte Especial do Código Penal: homicídio simples, privilegiado ou qualificado (art. 121 §§ 1° e 2°); induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (art. 122); infanticídio (art. 123); e aborto (arts. 124, 125, 126 e 127).

Cabe esclarecer, de antemão, que crimes dolosos contra a vida não são todos aqueles em que ocorra o evento morte. Para ser assim denominado, deve estar presente na ação do agente o animus necandi, ou seja, a atividade criminosa deste deve se desenvolver com o objetivo de eliminar a vida [58].

Ampliando a esfera de competência do Júri, encontra-se as regras de modificação da competência por conexão ou continência, que importam em unidade de processo e julgamento [59]. Por força do princípio constitucional em tela, a competência do Júri prevalece para o julgamento das infrações penais de outra natureza, quando houver conexão ou continência [60].

Dessa forma, estabelece o Código de Processo Penal (art. 78, inciso I) que, no concurso entre a competência do Júri e a de outro órgão da Jurisdição Penal Comum, prevalecerá a competência do Tribunal do Júri [61].

Havendo reunião de processos por conexão ou continência e tendo o Conselho de Sentença "absolvido" o réu em relação ao crime contra a vida, continuará este competente para julgar as demais causas penais conexas ou continentes, conforme art. 81, caput, do CPP [62].

No caso da "desclassificação própria [63]", contudo, não é pacífica a doutrina e jurisprudência nesse entendimento. Para alguns, ocorrendo tal hipótese, permanece a aplicação do art. 81, caput, do CPP, onde o Juiz-Presidente julgará somente o crime em que se operou a desclassificação, enquanto os Jurados continuarão competentes para julgar os conexos e continentes. Para outros, ocorrendo a desclassificação pelos jurados, a competência para julgar o crime desclassificado e os conexos seria do Juiz-Presidente, por força do art. 492, § 2º, do CPP. Mais sensata a última corrente, a qual, aliás, foi acolhida pelo projeto de reforma do Júri, conforme veremos a seguir.

Outra questão a merecer destaque no tocante à competência é a conexão de crime de menor potencial ofensivo – sujeito ao Juizado Especial Criminal - com crime doloso contra a vida.

Tema controvertido, para Adriano Marrey, o Tribunal do Júri atrai para sua competência o crime conexo ainda que, caso fosse praticado isoladamente, seria da competência do Juizado Especial [64]. Mesma compreensão possui Lenio Luiz Streck: (...) competente o Tribunal Popular para o maior, não se poderia subtrair-lhe a competência para a apreciação dos delitos menores. Do contrário, com a cisão, estar-se-á violando a própria soberania constitucional do Tribunal do Júri [65].

Todavia, em entendimento contrário, que nos parece melhor adequado, pois mais benéfico ao réu, Aramis Nassif ensina que, no caso de dita conexão, é correta a cisão do processo. Para isso, aduz que a conexão é instituto gestado pela norma comum, no Código de Processo Penal, e não na Lei 9099/95 (que dela não trata), o que autoriza admitir que, em sendo norma de caráter especial, não é afetada pelo fenômeno da vis atractiva [66].

Vale lembrar outro aspecto debatido com relação ao Júri e a Lei n.° 9099/95: a desclassificação própria, pelo Conselho de Sentença, de crime doloso contra a vida para crime de competência do Juizado Especial Criminal.

Neste aspecto, convém expor o entendimento do Ministério Público do Rio Grande do Sul, onde, em recente encontro criminal realizado pelos Promotores de Justiça do Estado, aprovou-se a seguinte ementa: havendo, no julgamento de uma tentativa de homicídio, desclassificação para crime de menor potencial ofensivo, o Ministério Público zelará para que o Juiz-Presidente julgue o delito remanescente, na forma dos artigos 492, § 2°; 74, § 2°, ambos do CPP, e 92 da Lei 9.099/95 [67].

Porém, em posicionamento diverso, acolhemos novamente o magistério de Aramis Nassif:

Nesta hipótese, o magistrado deverá prolatar decisão onde descreverá a conseqüência dos veredictos e ordenará o encaminhamento ao órgão jurisdicional competente. Portanto, o artigo 492, § 2°, CPP, merece ser melhor interpretado, cumprindo sua essência mandamental com a leitura do despacho. (...) Com o trânsito em julgado, os autos serão remetidos aos Juizados Especiais Criminais. [68]

Ou seja, no caso de desclassificação para crime de menor potencial ofensivo, o Juiz-Presidente deverá remeter o processo ao Juizado Especial Criminal, que tem competência constitucional (art. 98 da CF) igual ao Tribunal do Júri. Não agindo assim, o magistrado causaria manifesto prejuízo à defesa, uma vez que sonegaria ao acusado o direito de responder ao processo pelas regras da Lei n.° 9.099/95, muito mais benéficas a ele [69].

Palmilhando o mesmo entendimento, ensina Nereu Giacomolli:

Entendendo o magistrado que se trata de infração afeta ao juizado especial criminal – lesão corporal leve, v.g. –, a ele deverá encaminhar o feito, ou, não havendo juizado especial criminal instalado, imprimirá o procedimento da Lei n.º 9.099/95, inclusive com as medidas preliminares – representação, composição civil e transação criminal. [70]

Em conformidade com a doutrina por última exposta, e que temos como a mais ajustada, o Projeto de Lei n.° 4.203/2001 prevê:

Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença, com observância do seguinte: (...)

§1° Se houver desclassificação da infração para outra, de competência do juiz singular, ao presidente do Tribunal do Júri caberá proferir sentença em seguida, exceto quando o delito resultante da nova tipificação for considerado pela Lei como infração penal de menor potencial ofensivo, da competência do Juizado Especial Criminal, para onde serão remetidos os autos.

§2° Em caso de desclassificação, o crime conexo, que não seja doloso contra a vida, será julgado pelo juiz presidente do Tribunal do Júri, salvo quando estiver incluído na competência do Juizado Especial Criminal. (Grifo nosso).

Segundo Guilherme de Souza Nucci, existem algumas posições doutrinárias que sustentam que a competência do Júri para os crimes dolosos contra a vida é fixa e, assim, não poderia ser ampliada. No entanto, seguindo corrente diversa, Nucci ensina: a cláusula pétrea no direito brasileiro, impossível de ser mudada pelo Poder Constituinte Reformador, não sofre nenhum abalo, caso a competência do júri seja ampliada, pois sua missão é impedir justamente o seu esvaziamento [71].

Desse modo, consentimos com a doutrina de Guilherme Nucci, entendendo-se que a referida cláusula pétrea é uma regra "mínima" prevista pela Constituição, e ela não impede que o legislador infraconstitucional atribua ao Tribunal do Júri outras e diversas competências.

Não obstante o preceito constitucional em comento, convém registrar, por fim, que a competência do Júri para os crimes dolosos contra a vida não é absoluta, pois, excepcionalmente, não julgará tais crimes nas hipóteses das competências especiais por prerrogativa de função, da mesma forma, expressamente estabelecidas pela Constituição Federal [72].

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Sobre o autor
Evandro Rocha Satiro

servidor do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SATIRO, Evandro Rocha. A nova redação dos quesitos no PL nº 4.203/2001: (reforma do Tribunal do Júri). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1079, 15 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8534. Acesso em: 25 abr. 2024.

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