Nos últimos dias, o Poder Judiciário, a OAB, a Imprensa e a Sociedade Civil vêm debatendo decisão proferida por juiz da 6ª Vara Cível de Campo Grande-MS, que proíbe a publicação de matérias acerca de investigação feita pelo Ministério Público envolvendo ex-prefeito de Campo Grande e pré-candidato ao Governo do Estado nas próximas eleições.
Não se trata de censura posterior, que pode culminar em "direito de resposta", e sim de "censura prévia", eis que a obrigação é de "não-fazer", ou seja, de acordo com a decisão, o Jornal não pode publicar matérias acerca desse assunto, sob pena de multa diária.
A Imprensa entende que a decisão feriu os princípios constitucionais que asseguram a liberdade de imprensa.
Sem pretensão de "tomar partido" de um ou de outro, passemos, n’uma análise acadêmica, aos institutos jurídicos envolvidos nesta questão.
Trata-se de obrigação de não fazer prevista no art. 461 do Código de Processo Civil.
Nosso ordenamento jurídico garante que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei, assim como garante que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa; que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos; que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, e mais outros direitos considerados fundamentais.
Com base nesse ordenamento jurídico surgem dúvidas sobre a legalidade de certos atos, como divulgação de determinadas informações acerca de pessoas, físicas ou jurídicas, de imputação de crime a quem ainda não teve condenação judicial transitada em julgado, etc.
Disso decorre o questionamento acerca da divulgação de informações constantes de investigações e processos judiciais.
Quanto a isso, a CF, no inciso LX, dispõe que a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.
O art. 155 do Código de Processo Civil, norma infraconstitucional que regulamenta a questão, dispõe que os atos processuais são públicos. Correm, todavia, em segredo de justiça os processos: I - em que o exigir o interesse público; II - que dizem respeito a casamento, filiação, separação dos cônjuges, conversão desta em divórcio, alimentos e guarda de menores.
No inciso II, o legislador foi objetivo quando elencou os casos em que os atos processuais fogem à regra da publicidade, ou seja, apenas as partes e seus procuradores podem ter acesso ao processo, porque trata-se de intimidade da pessoa, da sua vida privada, que não interessa a terceiros estranhos à relação processual.
E quanto ao "interesse público" de que trata o inciso I?
Também está contido no inciso II, porque, garantindo essa privacidade processual, a lei também está protegendo um interesse público. Quando a Constituição assegura a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, assegurando inclusive indenização por eventual dano material ou moral decorrente da violação dessas garantias (art. 5º, inciso X), significa que o Estado tem de utilizar de meios para garantir essa inviolabilidade, o que faz com que esses meios façam parte de um pacote de providências que interessam não somente às partes envolvidas, mas ao próprio Estado. No caso, o Poder Judiciário é responsável pela inviolabilidade do que contém no processo, por isso que, juridicamente, esse processo passa a tramitar em "segredo de justiça". Essa afirmação nos leva a concluir que sempre que a lei assegurar algo a alguém o Estado tem o dever de proteger esse alguém. Outro exemplo é o sigilo fiscal, que somente pode ser "quebrado" por determinação judicial. Quando isso ocorre "dentro de um processo", esse processo deve correr em "segredo de justiça" porque há um "interesse público" a ser preservado. Por que "interesse público"? Porque, sendo uma garantia legal, o Estado é responsável pela integridade dessa garantia.
Exemplificamos: se em uma ação de execução o juiz determina à Receita Federal a apresentação da declaração de bens do executado, e essa declaração passa a fazer parte desse processo, o juiz deve zelar pelo sigilo das informações ali contidas, porque a lei garante o sigilo fiscal. Nesse caso, há um interesse público a ser preservado.
A bem da verdade, muita discussão existe acerca do verdadeiro conceito e em que consiste o interesse público.
Principalmente no fato ora discutido, é difícil chegar a uma conclusão de qual seja o conceito exato desse interesse, valendo ressaltar que, na ânsia de conceituá-lo, não devemos confundi-lo com interesse "do" público e nem colaborar, de qualquer forma, para que interesses partidários possam desvirtuar tal instituto, que assegura garantias bem diferentes daquelas pretendidas em época de eleição.
Em termos de legislação, sabemos que as normas de direito público são aquelas que disciplinam condutas fiscalizadas pelo Estado, como as normas trabalhistas, que devem ser cumpridas independentemente da vontade das partes (direito inafastável pela vontade das partes); a legislação fiscal e tributária; a legislação penal, etc. Isso porque, se acontece um crime, por exemplo, a punição do criminoso não interessa somente à vítima, mas sim ao Estado. No caso, o autor da ação criminal é o Ministério Público. É o Estado atuando porque foi infringida uma lei que deve ser observada por todos. Mesmo que a vítima não queira a punição do criminoso, ela não pode "trancar" essa ação.
Diferente disso são as normas de direito privado, como as contidas no Código Civil, por exemplo. Essas normas regulam as relações entre os particulares, como o Direito de Família, Direito de Herança, Direito de Vizinhança, e assim por diante. Se alguém abre mão de uma herança essa vontade será respeitada (direito afastável pela vontade das partes). O Estado não pode dar início a uma ação judicial.
Esses exemplos ajudam a dar uma certa noção do que sejam interesses públicos.
Passemos ao fato analisado.
A "liberdade de Imprensa" tem amparo legal no inciso IX da CF:
É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença
No inciso IV, complementa:
É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato
Portanto, não cabe ao Poder Judiciário decidir, previamente, quais notícias podem ser veiculadas, porque isso caracteriza censura não mais admitida pela Constituição Federal de 1988.
O que a CF prevê é o "Direito de Resposta" (inciso V: é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem), que apesar da previsão legal também pode restringir a liberdade de imprensa, quando, por exemplo, assegurado de forma indiscriminada, provocando prejuízos financeiros (jornais com mais espaços para esse "direito político" do que para as notícias de interesse "público", ou "do público comum").
Entendemos que a Imprensa tem o direito de decidir sobre os caminhos que a levarão às informações pretendidas.
Se alguma informação é extraída de um processo que, em razão de interesse público, deve correr em "segredo de justiça", isso ocorreu porque o agente público que tinha responsabilidade pela guarda desse processo não tomou o devido cuidado. No caso, comprovado dano a alguém, decorrente da violação dessa garantia, o Estado indeniza e, em ação regressiva, responsabiliza o agente causador do ato ilícito (art. 37 da Constituição Federal).
Se o Poder Judiciário, através do juiz e de seus auxiliares, preservam a garantia constitucional do "segredo de justiça" e ao final é proferida decisão condenatória de agente público por ato de improbidade administrativa, providências são previstas na lei que importam na suspensão dos direitos políticos, da perda da função pública, da indisponibilidade dos bens, no ressarcimento ao erário, na ação penal cabível, etc, ou seja, o ordenamento jurídico preserva o cidadão enquanto não há decisão judicial que o considere culpado mas também dispõe de mecanismos para punir esse cidadão no caso de condenação.
No fato analisado há conflito entre garantias constitucionais a serem preservadas.
Portanto, há necessidade de se estabelecer uma convivência entre as mesmas, de forma equilibrada, norteados pela idéia de que todas as garantias fundamentais previstas pelo legislador constituinte existem para servir a todos com justiça, cujo conceito, na lição de Norberto Bobbio, é a correspondência da norma "com os valores últimos ou finais que inspiram um determinado ordenamento jurídico".
Nesse conflito, que envolve interesses diversos, O Estado deve fazer a sua parte da ordem jurídica e, em conseqüência, do bem comum.
Em relação às conseqüências político-partidárias decorrentes da preservação das garantias fundamentais, fica a cargo do exercício da cidadania.
Ó, cidadão... Quem és tu?
Cidadão é, quase sempre, o homem da rua.
Segundo a imagem criada por Piero Calamandrei (l´´uomo della strada), o Homem de Rua é o homem simples, ingênuo e destituído de conhecimentos jurídicos, mas capaz de distinguir entre o bem e o mal, o sensato e o insensato, o justo e o injusto.