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Busca domiciliar e o injustificável controle preventivo judicial

22/06/2006 às 00:00
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Competem às Polícias Civis dos respectivos Estados membros da federação e à Polícia Federal as atividades de polícia judiciária (art. 144, §§ 1º e 4º da CF) consistente na apuração das infrações penais e suas respectivas autorias. No desempenho dessas relevantes funções institucionais, referidos órgãos necessitam de instrumentos legais para desenvolver suas tarefas investigativas com eficiência e a devida celeridade, sob pena de malograr-se diante da criminalidade cada vez mais crescente e audaciosa.

A busca domiciliar constitui mecanismo indispensável ao bom desempenho da atividade repressiva, sem a qual o sucesso das investigações pode ficar irremediavelmente comprometido e até inviável dependendo da situação fática. É sobre esse instituto que centraremos as nossas considerações neste trabalho, onde demonstraremos o grande equívoco cometido pelo legislador constitucional quando introduziu o controle jurisdicional prévio nas buscas domiciliares, substituindo o sistema de controle posterior disciplinado no Código de Processo Penal.

Apenas para relembrar, o artigo 241 do Código de Processo Penal concedia atribuições para a autoridade policial (Delegado de Polícia) proceder pessoalmente buscas domiciliares ou expedir o respectivo mandado para que seus agentes cumprissem a referida ordem, comunicando-se posteriormente o juízo. Impensadamente, o constituinte de 1988 retirou essa atribuição da autoridade policial, exigindo, doravante, autorização prévia da autoridade judiciária competente (art. 5º, XI CF).

A partir de então, para proceder a uma busca domiciliar, salvo nos casos de flagrante delito, desastre ou para prestar socorro, se o morador não consentir com a entrada na sua residência, o que normalmente acontece, principalmente quando não se trata de cidadão de bem, a autoridade policial deverá dirigir-se a um magistrado, representando pela expedição do respectivo mandado judicial, a fim de levar a cabo a diligência averiguatória que o caso reclama.

Ocorre, porém, que o legislador se esqueceu ou ignorou que muitas cidades são desprovidas de juízes. E mais. Em tantas outras localidades a distância e os precários meios de locomoção impedem o acesso imediato ao magistrado, tornando impossível a obtenção da medida acautelatória constitucional, ocasionando quase sempre o perdimento da prova, matéria prima essencial para a efetivação da justiça criminal.

Assim, não havendo a quem pedir a justa e necessária providência jurisdicional, muitas vezes a busca domiciliar não se realiza, prejudicando o trabalho da polícia e a produção da prova do crime, tudo em nome da excessiva rigidez da inviolabilidade do domicílio. Além disso, mesmo de posse do mandado judicial a busca não pode ser executada durante a noite, devendo a polícia aguardar pacientemente o clarear do dia para realizar a diligência, não obstante ser do conhecimento geral que a maioria dos crimes ocorrem no período noturno.

Não é de hoje que as garantias constitucionais, dentre elas a inviolabilidade domiciliar, não podem servir de escudo para o acobertamento da prática de ilícitos penais. Não foi para isso que elas foram contempladas no texto da Lei Maior. O interesse particular não pode sobrepujar o interesse público. As normas visam o bem social e não o pessoal. Logo, percebe-se que a exorbitante proteção domiciliar não tem atingido a sua finalidade, beneficiando na prática quase sempre os contraventores, em prejuízo da sociedade ordeira.

O argumento utilizado para excluir o mandado de busca domiciliar expedido pela polícia partiu da falsa premissa de que ocorriam muitos abusos. Nada mais hipócrita. Na verdade, não se realizou nenhum levantamento estatístico sobre casos concretos de inobservância dos preceitos legais nas buscas realizadas de ofício ou por ordem direta da autoridade policial. A mudança foi impulsionada pelo "achometro" dos constituintes e não alicerçada em dados científicos confiáveis.

De outra parte, não é razoável acreditar que uma autoridade pública como o Delegado de Polícia, longa manus do Estado e conhecedor da lei, tivesse o prazer de devassar a intimidade do lar de alguém somente para satisfazer caprichos de ordem pessoais. Assim mesmo, se por acaso isso viesse acontecer, o controle judicial posterior dispunha de instrumento legais para adotar as medidas jurídicas adequadas para punir o eventual transgressor.

Infelizmente o legislador constitucional preferiu restringir o campo de atuação das instituições policiais civis e prejudicar toda a sociedade ao invés de enfrentar a questão com coragem e objetividade. Optou-se por uma saída simplista e preconceituosa contra as organizações policiais, com manifesto cunho político-sensacionalista, sem avaliar as drásticas conseqüências do ato. Coincidência ou não, a partir daí a escalada da criminalidade vem atingindo patamares sem precedentes. A falta de confiança do Estado nas suas instituições é uma demonstração inequívoca de incapacidade gerencial dos próprios governantes.

Não se pode negar que eventuais desvios de finalidade da busca podiam ocorrer, entretanto, quem pode garantir que atualmente, apesar do prévio controle do juiz, isto também não ocorre. Não se deve desprestigiar uma instituição pública com base em fatos pontuais a que todos os órgãos estão sujeitos. Tais medidas não contribuem para o aprimoramento das atividades desenvolvidas pelo Estado e a consolidação de suas instituições. Lamenta-se que nada disso foi considerado.

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Na atual sistemática, contra possíveis abusos agora cometidos pelo juiz de direito, autoridade competente para expedir a ordem de busca domiciliar, o cidadão ofendido não tem para quem reclamar, diversamente do que ocorria no sistema anterior em que o judiciário exercia o controle imediato das buscas realizadas pela polícia. Esta é outra demonstração de que a inovação não teve por finalidade proteger o cidadão de bem que não tem por hábito obstaculizar a atuação do Estado, pelo contrário, sempre colabora.

No procedimento vigorante, o judiciário praticamente defere o pedido formulado pela autoridade policial, mesmo porque, é intuitivo que o juiz desconhece por questões óbvias as peculiaridades do fato ensejador da medida para poder avaliar a sua oportunidade e conveniência. Assim sendo, no mais das vezes o mandado é expedido na confiança profissional estabelecida entre o Delegado de Polícia (titular das investigações) e o magistrado, comunicando-se este sobre o resultado da diligência. Aliás, não poderia ser diferente tendo em vista tratar-se de autoridades públicas que exercem atividades convergentes que visam o bem estar social.

Na verdade, apenas burocratizou-se desnecessariamente o procedimento sem aumentar a proteção constitucional da inviolabilidade do domicílio, visto que, a iniciativa continua sendo da autoridade policial (competência de fato) que de regra acaba sendo recepcionada pelo magistrado (competência de direito) que expede a ordem nos termos em que foi solicitada. Em síntese, a mudança não se justificou e tampouco proporcionou benefícios à sociedade de bem, no entanto, certamente agradou a comunidade delinqüente.

É importante ressaltar que as atividades das Polícias Civis, ao contrário do que alguns inadvertidamente apregoam, são essenciais para salvaguardar as garantias individuais do cidadão, visto que, além de não figurar como parte interessada nos conflitos, seus atos passam por rigorosos controles internos e externos, elevando-se o grau de transparência e de eficiência. Neste contexto, a retirada do mandado de busca domiciliar do rol das atribuições da autoridade policial não passou de verdadeiro retrocesso legislativo constitucional, tendo por única finalidade dificultar e às vezes até inviabilizar o trabalho de um ente público que presta indispensável contribuição à justiça criminal e ao bem-estar da coletividade.

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Sobre o autor
Raymundo Cortizo Sobrinho

delegado de Polícia Civil em São José do Rio Preto (SP), pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal, professor da Academia da Polícia Civil de São Paulo e do Centro Universitário Rio Preto (UNIRP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORTIZO SOBRINHO, Raymundo. Busca domiciliar e o injustificável controle preventivo judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1086, 22 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8554. Acesso em: 19 abr. 2024.

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