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Ensaio sobre o fenômeno jurídico da regressão de regime

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4. As garantias fundamentais: contraditório e ampla defesa.

          Diz o Estatuto da Execução Penal, no parágrafo 2º, de seu artigo 118 que, nos casos de regressão de regime determinada pela prática de crime doloso ou falta grave, frustração dos fins da execução em regime aberto ou não pagamento, quando possível, de pena pecuniária cumulativamente imposta, deverá ser ouvido, previamente, o condenado.

          Não há como tocar na temática sem referenciar sua matriz constitucional, responsável pelo grande impulso dado ao estudo do processo, à luz dos direitos fundamentais. O tema, afeto à disciplina processual, é vasto e, tocando-o tangentemente, segue-se em breves notas.

          A tutela constitucional do processo caracteriza-se por ser garantista e expressiva da idéia de que o sistema processual sustenta-se na noção do devido processo legal. Em seu aspecto formal, o due process of law exprime o entendimento de que ninguém pode ser privado da vida, da liberdade ou do patrimônio senão em processo ou procedimento nos quais se materializam todas as exigências e formalidades da lei, dentre as quais se encontram o contraditório e a ampla defesa que, assim como o princípio basilar do processo, estão previstos expressamente na Lei Maior, no título destinado aos direitos e garantias fundamentais, permitindo-se, daí, rotulá-los como direitos fundamentais processuais, inabaláveis à ação do legislador constituinte, eis que são cláusula pétrea.

          A Carta Federal, promulgada 04 anos após a edição da Lei nº 7.210/84, ampliando a proteção da precitada norma infraconstitucional – que se limitou a assegurar a prévia oitiva do condenado antes de regredi-lo - reservou, ao lado do contraditório, a garantia da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, aos litigantes em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral31.

          Ora, de nada adiantaria o contraditório sem a presença de figura que lhe é conexa: a ampla defesa, porquanto não há contraditório sem defesa e não há defesa sem contraditório. No brilhante ensinamento do professor Delosmar Mendonça Jr., o contraditório é o instrumento de atuação do direito de defesa, ou seja, esta se realiza através do contraditório32.

          Ademais, o comando constitucional, nos termos em que se expressa, não diferenciou a aplicabilidade da garantia ao tipo de processo, se judicial - civil ou penal – ou administrativo, abrangendo, desta forma, os procedimentos que acolhem os incidentes da execução penal.

          Esta rasa análise fenece ao argumento de que o teor do dispositivo constitucional em comento, segundo respeitável doutrina e jurisprudência, robustece-se substancialmente com a moderna compreensão do contraditório como o direito fundamental à participação em contraditório33: noção aprimorada, resultante do processo de sua evolução conceitual cujo início partia do binômio: informação e reação.

          Destarte, e agora no campo da execução penal, o juiz da execução não pode decretar de imediato a regressão do regime, pois há necessidade de instauração de procedimento incidental34, no qual será ouvido em contraditório o sentenciado, sendo admissível a produção de provas.

          Assim, em se tratando de medida definitiva, o Estado-juiz, antes de decretar a regressão de regime, sob pena de configurar constrangimento ilegal remediável via Habeas Corpus, deverá assegurar ao condenado a oportunidade do contraditório e ampla defesa no sentido amplo e efetivo que lhes imprime a Carta Política, seguindo os autos, então, ao Ministério Público para elaboração de parecer.

          Neste sentido, entendimento pacífico do STJ consubstanciados nos Resp 77.4957/RS, Resp 765988/RS, Resp 771096/RS, RHC 17924/PR, HC 21141/RJ, RHC 16899/SP, HC 42415/SP, Resp 685537/RJ, HC 41164/SP, Resp 681884/RJ e HC 27544/RJ.

          Malgrado ululante, em se tratando de condenação definitiva por crime doloso, dispensa-se a oitiva prévia.

          Como derradeira observação, em abono do caráter acadêmico deste ensaio, consigna-se que das decisões judiciais proferidas em sede de execução penal, inclusive a decretação de regressão de regime, cabe recurso de agravo sem efeito suspensivo35.


NOTAS

          1

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 1997, p.70.

          2

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 4. ed. São Paulo: RT, 2000. p.513.

          3

ob. cit. p. 523.

          4

A Constituição Federal do Brasil dispõe que "não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis" (art. 5º, XLVII).

          5

Neste ponto, a Magna Carta, insculpindo os valores cardeais da execução penal, ao lado dos densos e fundantes comandos axiológicos da culpabilidade, da humanidade e da intranscendência, assegurou sua individualização, cabendo à lei sua regulamentação, conforme art. seu 5º, XLVI.

          6

A despeito da discussão doutrinária relativa ao número de fases que comporiam a tarefa judicial de aplicação da pena, o Código Penal, em seu artigo 68, adotou o critério trifásico, também denominado critério Nelson Hungria que decompõe a dosimetria da pena em: a) fixação da pena base (circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal), b) incidência de agravantes e atenuantes e, c) causas especiais de aumento ou diminuição da pena.

          7

Conforme magistério do culto mestre Zaffaroni, as espécies de sanções penais são denominadas manifestações da coerção penal, admitida sua divisão em material e formal, sendo que, nesta, encontra-se, isoladamente, a figura jurídica da medida de segurança.

          8

Para o entendimento e diferenciação dos regimes de cumprimento de pena, vide artigo 33, §1º, alíneas "a", "b" e "c" do Código Penal e artigos 87 a 95 da Lei de Execução Penal que tratam dos estabelecimentos penais para cumprimento de pena.

          9

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 8ºed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.430.

          10

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 4. ed. São Paulo: RT, 2000. p. 540.

          11

A reforma penal de 1984 adotou o sistema progressivo de cumprimento da pena privativa de liberdade, conforme se constata da disposição do artigo 33, §2º do Código Penal: "As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, (...)". Registre-se que, malgrado ainda permaneça a disposição literal "segundo o mérito do condenado" no Diploma Penal, a Lei nº 10.792/2003 comprometeu a real avaliação judicial sobre o cumprimento do requisito subjetivo do apenado para o deferimento da progressão de regime, eis que, uma vez banidos o exame criminológico e o parecer da Comissão Técnica de Avaliação, a verificação da habilitação subjetiva do sentenciado ao benefício compete ao diretor do estabelecimento prisional ao atestar o bom comportamento carcerário do recluso.

          12

Sobre a forma pela qual desenvolve-se a progressividade da execução da pena privativa de liberdade, reza o art. 112 da Lei de Execução Penal: "A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinado pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos 1/6 da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão".

          13

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 8ºed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 431.

          14

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 4. ed. São Paulo: RT, 2000. p.543.

          15

Art. 118 da LEP: "A execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado: I – praticar fato definido como crime doloso ou falta grave; II – sofrer condenação, por crime anterior, cuja pena, somada ao restante da pena em execução, torne incabível o regime".

          16

Ainda sobre o não induzimento à violação da presunção de inocência, o mesmo STJ no RHC 18344/PR.

          17

MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal: comentários à Lei 7.210/84. 9.ed. São Paulo: Atlas. p.255.

          18

PIMENTEL, Manoel Pedro. Sistemas penitenciários. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, v. 639, p.271.

          19

Art. 118, parágrafo primeiro da LEP: "O condenado será transferido do regime aberto se, além das hipóteses referidas nos incisos anteriores, frustrar os fins da execução ou não pagar, podendo, a multa cumulativamente imposta". Relativo à parte final deste parágrafo, preconiza-se que o condenado solvente deve efetuar o pagamento da pena pecuniária nos termos do artigo 164 e seguintes da LEP. Com a alteração do artigo 51 do Código Penal e a revogação do artigo 182 da Lei de Execução Penal pela Lei nº 9.268/96, grande desinteligência a respeito da execução da pena de multa foi instaurada. O panorama conflitante do tema nos apresenta, atualmente, que o não pagamento do valor da pena pecuniária pelo condenado solvente não a converte em pena privativa de liberdade, pois a multa será considerada, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, dívida ativa, aplicando-se-lhe os preceitos relativos à dívida pública da Fazenda, cuja ação será promovida pelo órgão responsável do Fisco, conforme têm se manifestado a Corte Suprema e o Superior Tribunal de Justiça, a despeito de corrente minoritária que defende o Ministério Público no pólo ativo da ação executiva, ao argumento de que a multa não perderia seu caráter penal. Abordada a questão atinente ao pólo ativo da execução da pena pecuniária imposta, convém frisar que o seu não pagamento não dá causa à regressão, tendo em vista a nova redação do artigo 51 do Código Penal.

          20

As espécies de sanções disciplinares são, segundo artigo 53 da Lei nº 7.210/84: advertência verbal, repreensão, suspensão ou restrição de direitos, isolamento na própria cela, ou em local adequado, nos estabelecimentos que possuam alojamento coletivo e inclusão no regime disciplinar diferenciado (RDD).

          21

Art. 49, parágrafo único da Lei nº 7.210/94.

          22

MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal: comentários à Lei 7.210/84. 9.ed. São Paulo: Atlas. P. 137.

          23

Neste sentido, STJ, Sexta turma, no HC 43569/RJ.

          24

Vide artigos 53, V e 54 e parágrafos da Lei nº 7.210/94.

          25

Art. 33, §2º, alíneas "a", "b" e "c", combinado com art. 59, todos do Código Penal.

          26

Há certas leis que excepcionam as regras do Código Penal para a fixação de regime inicial de cumprimento de pena para certos delitos como, por exemplo: Lei nº 9.034/95 (lei de combate a organizações criminosas), Lei nº 9.613/98 (lei de "branqueamento de capitais") e Lei nº 9.455/97 (lei do crime de tortura). De forma semelhante, há posicionamentos pretorianos que também causam semelhante efeito excepto, como se visualiza nos verbetes 718 e 719 da súmula do STF. Neste ponto, é importante repisar que, no julgamento do HC 82.959-7, relator Ministro Marco Aurélio, o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, declarou a inconstitucionalidade do parágrafo 1º, do artigo 2º da Lei nº 8.072/90, que determinava a fixação do regime integralmente fechado para os crimes hediondos e equiparados.

          27

Art. 111 da Lei nº 7.210/84: "Quando houver condenação por mais de um crime, no mesmo processo ou em processos distintos, a determinação do regime de cumprimento será feita pelo resultado da soma ou unificação das penas, observada, quando for o caso, a detração ou remição".

          28

KUEHNE, Maurício. Lei de Execução Penal Anotada. Curitiba: Juruá. 1999. p.269.

          29

Vide informativo de jurisprudência do STJ nº 284.

          30

As justificativas apresentadas pelo autor do projeto, Senador César Borges, ao projeto de Lei nº 136/2006 são as seguintes: injustificável ausência de previsão do uso de aparelho de telefone celular no rol das faltas disciplinares graves de nossa Lei de execução Penal; uso do telefone celular para comandar e articular ações criminosas a partir de estabelecimentos penais e a recente onda de violência no Estado de São Paulo, em que o PCC alvejou várias instituições públicas e privadas da capital, toda ação orquestrada a partir das penitenciárias pelos líderes da organização criminosa.

          31

Art. 5º, LV da Constituição Federal do Brasil.

          32

MENDONÇA Jr, Delosmar. Princípios da ampla defesa e da efetividade no processo civil brasileiro. São Paulo: Malheiros Ed., 2001, p.55.

          33

DIDIER JR., Fredie. Direito Processual Civil, Bahia: Ius Podium. 2004. p.25.

          34

A Lei de Execução Penal regula o procedimento judicial na fase da execução da pena nos artigos 194 a 197.

          35

Art. 197 da Lei nº 7.120/84.
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Sobre o autor
Lísias Camargo Andrade Zanoni

servidor público, bacharel em Direito em Foz do Iguaçu (PR)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZANONI, Lísias Camargo Andrade. Ensaio sobre o fenômeno jurídico da regressão de regime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1090, 26 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8563. Acesso em: 25 abr. 2024.

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