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Da impossibilidade de pagamento em moeda estrangeira nos contratos celebrados em território nacional

28/06/2006 às 00:00
Leia nesta página:

1. Introdução

Com a intensificação do fenômeno da globalização, é natural o aumento do número de contratos celebrados entre empresas estrangeiras e brasileiras. É ainda natural que, sendo esses contratos normalmente ligados a investimentos estrangeiros no Brasil, essas empresas vislumbrem a disposição do pagamento em moeda corrente de seu país de origem.

O assunto, que parece não exigir maior complexidade jurídica, vem, ao longo do tempo, despertando discussões. O motivo destes debates gira não só em torno da matéria contratual, mas também dos aspectos econômicos e políticos, chegando até mesmo a abordar a soberania nacional.

Esse breve estudo não pretende aprofundar-se nos aspectos históricos ou de Direito Comparado, mas tão somente apontar, com objetividade, o tratamento oferecido pelo Direito brasileiro no que diz respeito à previsão legal, soluções práticas e entendimento jurisprudencial dos nossos tribunais.

A abordagem legislativa é antiga, como se verifica a seguir.


2. Previsão Legislativa

Em 11 de setembro de 1969 foi publicado o Decreto-Lei 857, que alterou e consolidou a legislação sobre moeda de pagamento em contratos exeqüíveis em território nacional, como se destaca no que dispõe em seu artigo 1º.

"Art. 1º. São nulos de pleno direito os contratos, títulos e quaisquer documentos, bem como as obrigações que, exeqüíveis no Brasil estipulem pagamento em ouro ou moeda estrangeira, ou por alguma forma, restrinjam ou recusem, nos seus efeitos, o curso legal do cruzeiro."

Apresenta, entretanto, algumas exceções e reformula uma série de normativos em sentido contrário:

"I - aos contratos e títulos referentes a importação ou exportação de mercadorias;

II - aos contratos de financiamento ou de prestação de garantias relativos às operações de exportação de bens de produção nacional, vendidos a crédito para o exterior;

III - aos contratos de compra e venda de câmbio em geral;

IV - aos empréstimos e quaisquer outras obrigações cujo credor ou devedor seja pessoa residente e domiciliada no exterior, excetuados os contratos de locação de imóveis situados no território nacional;

V - aos contratos que tenham por objeto a cessão, transferência, delegação, assunção ou modificação das obrigações referidas no item anterior, ainda que ambas as partes contratantes sejam pessoas residentes ou domiciliadas no país."

Vale destacar, desde já, que é de saltar aos olhos que a intenção desse normativo foi a valorização da moeda nacional e conseqüente manutenção da circulação de nossas riquezas em território nacional.

Apesar do normativo determinar a nulidade do contrato, a jurisprudência da época tratou de amenizar esta conseqüência, firmando o entendimento de ineficácia da cláusula ilegal e a manutenção do restante do contrato, a fim de evitar maiores prejuízos às partes contratantes. O que se verificou foi a estipulação da conversão da moeda estrangeira em moeda brasileira.

O princípio da consagração da moeda corrente no Brasil foi devidamente ratificado com o advento da edição da Medida Provisória 1.488-14, de 8 de agosto de 1996, que determinou a possibilidade de se contrair dívida em ouro ou em moeda estrangeira, mas estabeleceu que essa possibilidade estaria condicionada às hipóteses previstas na Decreto Lei 857/69 e na parte final do art. 6º da Lei 8.880/94.

Art. 6º - É nula de pleno direito a contratação de reajuste vinculado à variação cambial, exceto quando expressamente autorizado por lei federal e nos contratos de arrendamento mercantil celebrados entre pessoas residentes e domiciliadas no País, com base em captação de recursos provenientes do exterior.


3. Da Possibilidade de Solução

Não obstante a proibição inserida pelo Decreto-Lei 857/69, não se pode confundir a estipulação de pagamento em moeda estrangeira, que de fato pode causar um impacto na circulação da moeda corrente nacional, atingindo até mesmo nossa soberania, com a parametrização de um contrato ao equivalente, em moeda nacional, a um certo valor em moeda estrangeira, o que não apresenta as conseqüências acima citadas.

O fato de se prever um valor em moeda estrangeira, mas determinar o pagamento no seu equivalente em dinheiro nacional, mantém o pagamento em nossa moeda, gerando circulação de riqueza em nossa moeda corrente.

Já o mesmo não pode ser dito para a estipulação de indexação pela variação cambial. Talvez seja nesta intenção que o Plano de Estabilização Econômica, Lei 8.880/94, em seu art. 6º, determina a nulidade de qualquer estipulação nesse sentido, com as devidas exceções, com o objetivo de evitar perdas em caso de desequilíbrios cambiais.

Silvio de Salvo Venosa, em sua obra Direito Civil, Contratos em Espécie, Volume III, suscita a possibilidade [01] introduzida por uma nova regra do Novo Código Civil, através do art. 487, a saber:

"Art. 487. É lícito às partes fixar o preço em função de índices ou parâmetros, desde que suscetíveis de objetiva determinação".

As Leis mais modernas já buscavam seguir esse entendimento, como a mencionada Lei 8.880/94 que expressamente autoriza a cláusula contratual que vincula o reajuste das prestações no contrato de leasing com base na variação cambial, quando a captação de recursos que possibilitou a celebração do contrato fora realizada no exterior. É uma exceção, que fique bastante claro, pois a regra geral é, conforme esclarecido, a impossibilidade da indexação pela variação cambial e como se verificará adiante, nossos tribunais já corroboraram com essa impossibilidade, por exemplo, nos contratos de compra e venda.

Ainda nesse mesmo sentido, porém de forma mais superficial e corriqueira, resta evidente que a preocupação, o espírito da lei, gira em torno da moeda utilizada para o efetivo pagamento, nada que impeça a utilização, por exemplo, da expressão "o preço será o equivalente em Reais a US$ 100.000,00", pois o que circulará será a moeda nacional.


4. Da Jurisprudência Atual

É exatamente nessa trilha que seguem nossos tribunais, como não poderia deixar de ser, aplicando o Direito Positivo, adequado já há tempos à solução mercadológica acima transcrita. Pode-se dizer que acabou por ocasionar a introdução do art. 487, no Novo Código Civil de 2002. Os julgados seguem o disposto na legislação, possibilitando a regra da "equivalência em moeda nacional ao valor contratual em moeda estrangeira" e a regra da "indexação pela variação cambial" somente na exceção prevista na lei especial.

Destaque-se alguns recentes julgados de nossos tribunais superiores:

"AGRAVO NO RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE DEVEDOR. PENHORA DE PARTE DO BEM DE FAMÍLIA. POSSIBILIDADE.NULIDADE DO CONTRATO NÃO RECONHECIDA. CONTRATAÇÃO EM MOEDA ESTRANGEIRA. PAGAMENTO EM MOEDA NACIONAL.APLICAÇÃO DO CDC. DISSÍDIO NÃO DEMONSTRATO. MULTA E JUROS MORATÓRIOS. FUNDAMENTO INATACADO.

(...)

- O STJ considera viável a contratação em moeda estrangeira, desde que o pagamento seja realizado em moeda nacional

AGRESP 685804/RJ; AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2004/0119843-9. Ministra Nancy Andrighi. Terceira Turma. Data do Julgamento 16/02/2006. Data da Pub. 06/03/2006.

* * *

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ARRENDAMENTO MERCANTIL. AÇÃO REVISIONAL. REAJUSTE PELA VARIAÇÃO CAMBIAL. CAPTAÇÃO DE RECURSOS NO EXTERIOR. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO. REEXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 07/STJ. DESPROVIMENTO.

(...)

2 – No que tange à manutenção da cláusula contratual que vincula o reajuste das prestações com base na variação cambial, no caso, o dólar Norte-Americano, conquanto seja lícita tal disposição no contrato de leasing, eis que expressamente autorizada em norma legal específica (art. 6º da Lei 8.880/94), o v. acórdão recorrido registrou a ausência de demonstração da efetiva captação de recursos em moeda estrangeira para aquisição do bem arrendado, reputando nula, pois, a aludida cláusula.(...)

AGRG NO RESP 471057/ RS. AGRAVP REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. 2002/0127181-6. Ministro Jorge Scartezzinini. Quarta Turma. Data do Julgamento 28/06/2005. Data Pub. 15.08.05.

* * *

COMERCIAL. VALIDADE DE CONTRATO CELEBRADO EM MOEDA ESTRANGEIRA. PAGAMENTO EM CRUZEIRO. EXEGESE DA NORMA CONTIDA NO ART. 1º DO DECRETO-LEI N.857/69.

I. Legítimo é o pacto celebrado em moeda estrangeira, desde que o pagamento se efetive pela conversão na moeda nacional. II. O legislador visou evitar não a celebração de pactos ou obrigações em moedas estrangeiras, mas sim, aqueles que estipulassem o seu pagamento em outro valor que não o cruzeiro – moeda nacional – recusando seus efeitos ou restringindo seu curso lega. Inteligência do art. 1º do Decreto-Lei 857/69. Precedentes do STJ. III. Recurso não conhecido.

JSTJ e TRF – LEX – 91, pág. 214

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Diante do exposto, resta pacífico o entendimento da possibilidade da aplicação da doutrina da moeda de pagamento, ou aqui denominado princípio da "equivalência em moeda nacional", ou seja, a estipulação do valor do contrato em moeda estrangeira, porém com o pagamento efetuado em equivalente em moeda nacional, bem como a doutrina de índice cambial para os casos expressamente previstos em lei.

Entretanto, para os casos de doutrina de índice cambial, ou princípio da "indexação pela variação cambial", nos eventos não expressamente previstos em lei, o STJ já decidiu pela impossibilidade, como pode se verificar:

CONTRATO DE COMPRA E VENDA COM PREÇO FIXADO E INDEXADO EM DÓLARES, PARA PAGAMENTO EM CRUZEIROS. NULIDADE DA CLÁUSULA. DECRETO-LEI 857/69

I. É taxativamente vedado a estipulação, em contratos exeqüíveis no Brasil, de pagamento em moeda estrangeira, a tanto equivalendo calcular a dívida com indexação ao dólar norte-americano, e não a índice oficial ou oficioso de correção monetária, lícito segundo as leis nacionais.

II. Ação de cobrança da variação cambial, proposta pela vendedora. Nulidade de pleno direito da cláusula ofensiva à norma imperativa e de ordem pública.

III. Recurso especial conhecido e provido.

RESP 23.707-9 MG JSTJ e TRF – LEX 91, pág.239/245.

Algumas decisões, anteriores à Lei 8.880/94, possibilitaram a indexação em moeda estrangeira. Entretanto após essa Lei, o próprio Ministro Ari Pargendler, que votou nesse sentido, já admite a impossibilidade.


5. Miscelânea

Interessante notar que existe uma situação sui generis.

O que ocorre no caso de um contrato em moeda estrangeira com previsão de pagamento em equivalente em moeda nacional, porém de forma parcelada?

Nessa hipótese temos a observância do que é permitido em nosso Direito (com o princípio da "equivalência e moeda nacional"), numa situação, porém, que foi exatamente o motivo da impossibilidade do chamado princípio da "indexação pela variação cambial" (o risco do desequilíbrio cambial).

Na minha opinião, como nesse caso as partes podem ser submetidas a uma insegurança jurídica, o advogado deve sugerir a alteração da forma de pagamento pela utilização da moeda corrente nacional, ou, se necessário o valor em moeda estrangeira, que esse pagamento seja à vista ou, ainda, se imprescindível o parcelamento, que o contrato preveja a repactuação das parcelas e estipulação de índice de reajuste, em caso de desequilíbrio cambial.

Um modelo de cláusula desse caso, como sugestão:

DO PREÇO – Pelo bem objeto do presente contrato o comprador pagará ao vendedor 12 (doze) parcelas anuais do equivalente em Reais a US$ 100.000,00 (cem mil dólares norte-americanos), sendo a primeira no presente ato, e as posteriores até o 5º dia útil do primeiro mês de cada ano, ficando desde já ajustado que, em caso de um desequilíbrio cambial, as partes repactuarão as parcelas vincendas em Reais, reajustadas com base no IGPM/MF, para retomar o equilíbrio contratual. O pagamento deverá ser efetuado através de depósito bancário em conta a ser posteriormente informada.


6. Conclusão

Diante de todo o embasamento legal, jurisprudencial e doutrinário, resta bastante clara a impossibilidade de estipulação de pagamento em moeda estrangeira nos contratos celebrados em território nacional.

A solução encontrada, entretanto, foi a possibilidade do aqui denominado princípio da "equivalência em moeda nacional", que nada mais é que a previsão contratual de valor em moeda estrangeira, porém com o seu pagamento no equivalente em moeda nacional.

Já o princípio da "indexação pela variação cambial", ou seja, a estipulação de reajuste do valor contratual indexado à variação cambial, mesmo que o pagamento seja em moeda corrente nacional, não foi admitido pelas nossas fontes de Direito, afastadas as exceções existentes.


Notas

01 Comenta: "Nesse campo, é comum que determinados setores da indústria e do comércio se utilizem de parâmetros conhecidos da categoria para fixar o preço. Normalmente, esses parâmetros são determinados por uma fórmula matemática que leva em conta custos específicos de um ramo de atividade. Para que esse estratagema seja válido, porém, é necessário que ambas as partes conheçam seus métodos perfeitamente, ou, como dispõe a lei, que sua aferição seja suscetível de determinação objetiva, caso contrário o contrato ou a cláusula será nula, pois o preço ficará ao arbítrio exclusivo de uma das partes, esbarrando na vedação do art. 489. Note, no entanto, que o art. 487 permite o estabelecimento de índices ou parâmetros para fixar o preço; no entanto, o pagamento será sempre em moeda corrente do país, ou em moeda estrangeira quando norma específica o permitir. Oportuno notar que na maioria das vezes os usos e costumes mercantis se encarregam de consagrar esses índices ou parâmetros, na maioria das vezes incompreensíveis para o leigo.(grifo nosso).

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Sobre o autor
Diogo Ribeiro de Gusmão

advogado no Rio de Janeiro (RJ), juiz arbitral do 5º Tribunal Arbitral, pós-graduado LL.M em Direito Empresarial pelo IBMEC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUSMÃO, Diogo Ribeiro. Da impossibilidade de pagamento em moeda estrangeira nos contratos celebrados em território nacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1092, 28 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8566. Acesso em: 23 nov. 2024.

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