Antes mesmo do julgamento de todos os processos disciplinares instaurados para apurar a quebra de decoro parlamentar por congressistas [01], já era mencionada pela imprensa, após as primeiras (e únicas) cassações, a idéia de se "anistiar" os deputados cassados, a fim de que eles voltassem a ser elegíveis.
Em prol da tese, argumentava-se que favor semelhante já havia sido concedido anteriormente, em favor do falecido Senador Humberto Lucena.
Todavia, não há como vislumbrar no episódio em questão um "precedente" que legitime a malfadada proposta de "reabilitação" dos parlamentares cassados por envolvimento com o chamado "escândalo do mensalão".
E a razão é óbvia.
A anistia concedida pelo Congresso Nacional (artigo 1º da Lei nº 8.985/95), com fundamento no artigo 48, VIII, da Constituição Federal, a todos os "candidatos às eleições gerais de 1994, processados ou condenados ou com registro cassado e conseqüente declaração de inelegibilidade ou cassação do diploma, pela prática de ilícitos eleitorais previstos na legislação em vigor, que tenham relação com a utilização dos serviços gráficos do Senado Federal" (e não apenas ao Senador Humberto Lucena, como divulgado pela imprensa), teve por objeto a prática de crime (o que é ínsito ao próprio conceito de anistia [02], por se tratar de causa de extinção da punibilidade [03]), previsto em lei e julgado pela Justiça Eleitoral (= Poder Judiciário) e não infração disciplinar, prevista na Constituição Federal (artigo 55, II) e julgada pela Câmara dos Deputados (= Poder Legislativo).
Naquela oportunidade, a perda do mandato (em sentido amplo) e a declaração de inelegibilidade seriam efeito da condenação criminal. Nos casos recentes, a perda do mandato é a pena imposta ao parlamentar ao final de um processo disciplinar, que tem como conseqüência, nos termos do artigo 1º, I, "b", da LC nº 64/90 (com a redação da LC nº 81/94), a sua inelegibilidade pelo prazo de 8 (oito) anos.
Logo, distintas as situações, sob os aspectos fáticos e jurídicos, não há como se buscar na Lei nº 8.985/95 fundamento para "anistiar" os deputados cassados, até porque a cassação não pode ser objeto de anistia pelo Congresso Nacional.
Em primeiro lugar, porque não há nenhum dispositivo na Constituição Federal autorizando o Congresso a "anistiar" a falta de decoro parlamentar, a qual, como visto, não se confunde com infração penal.
Em segundo lugar, porque a "anistia" representaria a indevida interferência de uma das casas do Congresso, no caso o Senado (e também do Poder Executivo, eis que a promulgação do ato depende da sanção presidencial) em assunto de exclusiva competência da outra (a Câmara dos Deputados), responsável pelo julgamento político que resultou na aplicação da pena de cassação do mandato e na inelegibilidade.
Em terceiro, e último lugar, porque o poder de anistia de Congresso Nacional decorre da sua competência para criminalizar (e descriminalizar) condutas (quem pode o mais, pode o menos), por meio de lei, a qual, portanto, não encontra similitude no poder-dever de punir os congressistas, que se encontra previsto na Constituição. Se os congressistas, por meio de lei, não tem como abolir o instituto do decoro parlamentar, também não tem como anistiar aqueles que o tenham violado.
Notas
01 A respeito do tema, cf. o nosso "Controle jurisdicional do processo de cassação de mandato parlamentar por falta de decoro". Jus Navigandi, Teresina, a. 10, n. 864, 14 nov. 2005. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/7596. Acesso em: 23 nov. 2005.
02 Cf. BARBOSA, Ruy. Commentarios à Constituição Federal Brasileira. v. II. Sçao Paulo: Saraiva, 1933. pp. 441-462.
03 "Art. 107. Extingue-se a punibilidade: II – pela anistia, graça ou indulto". Cf. COSTA JR., Paulo José da. Comentários ao Código Penal. v. 1. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1987. pp. 481-482; NORONHA, Magalhães. Direito Penal. v. 1. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1986. pp. 335-336.