4. Lei Complementar e exercício do poder de tributar em relação às contribuições sociais para a seguridade social
A Lei Complementar é identificada, conforme sólida jurisprudência, por exigência específica e expressa da Constituição da República, ao que esta elege quais matérias são submetidas à disciplina da Lei Complementar, contornos estes que identificam o viés material da mesma.
A vinculação de disciplina na Lei Complementar está afeta ao caráter nacional da mesma, ao que a doutrina a nomeia como uma lei nacional. Assim, o que fundamenta a existência da Lei Complementar sob o ângulo jurídico é a explicitação constitucional de sua previsão.
A necessidade de lei complementar em matéria tributária quanto às contribuições sociais para a seguridade somente se revela quando visar o legislador a instituir nova fonte de custeio, no exercício de competência tributária residual, consoante está previsto no artigo 195, §4º, CR, o qual dispõe:
§ 4º - A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I.
Destarte, somente se exige lei complementar quando se tratar de instituição de nova fonte de custeio a partir de ato infraconstitucional, ou seja, quando a legislação infra-constitucional pretender efetivar novo parâmetro contributivo para a seguridade social não previsto na própria Constituição. Entretanto, a partir da Emenda Constitucional n. 20/98 há previsão constitucional da fonte de custeio que ampara a tributação sobre os agentes políticos, o que torna desnecessária qualquer lei complementar. Fundando-se a contribuição social para a seguridade social em fonte de custeio já prevista na Constituição, não há exercício de competência tributária residual, ao que a sujeição passiva dos agentes políticos à tributação é consectário constitucional e legal.
Neste sentido, ressalta Leandro Paulsen:
"A referência à possibilidade de instituição de outras fontes, claramente, remete ao futuro, ou seja, a instituição de fontes novas de custeio que não as já previstas nos incisos I, II e III, deste art. 195, excluídas da sua incidência, ainda, as que já existiam quando do advento da CF/88 e que foram por ela recepcionados." (Paulsen, 2004:541/542)
Se há a previsão constitucional da fonte de custeio, torna-se claro que nada foi instituído pela legislação ordinária, mas sim pela própria Constituição. A necessidade de lei complementar restringe-se às hipóteses em que a Constituição não arrola a fonte de custeio pretendida como base de incidência da tributação. Considerando que a própria Carta expõe enquanto fonte de custeio da seguridade a contribuição sobre rendimentos pagos ou creditados a qualquer título, assim como daquele segurado pela previdência social a qualquer título, a operacionalização normativa da contribuição exige tão somente lei ordinária, e não complementar, pois trata-se de fonte de custeio já existente.
Portanto, tendo em vista que a própria Constituição institui a fonte de custeio, por meio do poder constituinte derivado, materializado na EC 20/98, seria contrário ao princípio da supremacia constitucional desconsiderá-la, havendo apenas exercício da capacidade e competência tributária já explicitada na Constituição. Por decorrência, considerando que não se trata criação de fonte de custeio, inexiste obrigação de lei complementar quanto à matéria, ao que a partir da EC 20 a imposição de contribuições sociais para a seguridade que incidam sobre a remuneração dos agentes políticos é consectário constitucional.
Quanto ao artigo 146, III, alínea ‘a’, da Constituição, necessário salientar: as contribuições sociais para a seguridade social são espécies tributárias próprias, sendo que a Constituição somente exige lei complementar para identificar fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes de impostos, e não das denominadas contribuições especiais, dentre as quais, as contribuições sociais para a seguridade social. Não é de menor importância lembrar que os impostos são tributos de imposição possível por todos os entes federativos, logicamente, cada um destes dentro de seu âmbito de competência e capacidade tributária. Assim, a fim de evitar-se conflitos de competência na imposição de impostos, necessária uma lei que delimite o âmbito e essência dos mesmos, donde há que ser uma lei nacional, figura que remete à lei complementar. Já as contribuições para a seguridade social são de instituição exclusiva por parte da União. Ora, não há possibilidade de conflito de competência quanto ao seu exercício. Por via lógica, não há necessidade de lei complementar, dispondo a lei ordinária quanto à matéria do fato gerador ou contribuintes, por absoluta ausência de possibilidade de distúrbios federativos no exercício da capacidade e competência tributárias. A necessidade de lei complementar não é exigência formalística romana, mas consectário da lógica própria do sistema jurídico.
A Constituição é límpida ao exigir a lei complementar somente no que tange fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes dos impostos, e não das contribuições sociais ou demais tributos:
Art. 146. Cabe à lei complementar:
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
A questão encontra-se solidificada pelo Supremo Tribunal Federal:
As contribuições de seguridade social - inclusive aquelas que incidem sobre os servidores públicos federais em atividade -, embora sujeitas, como qualquer tributo, às normas gerais estabelecidas na lei complementar a que se refere o art. 146, III, da Constituição, não dependem, para o específico efeito de sua instituição, da edição de nova lei complementar, eis que, precisamente por não se qualificarem como impostos, torna-se inexigível, quanto a elas, a utilização dessa espécie normativa para os fins a que alude o art. 146, III, a, segunda parte, da Carta Política, vale dizer, para a definição dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes. Precedente: RTJ 143/313-314.» ADI-MC 2010 / DF - DISTRITO FEDERAL MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a): Min. CELSO DE MELLO Julgamento: 30/09/1999 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação: DJ 12-04-2002 PP-00051 EMENT VOL-02064-01 PP-00086
5. Contribuições de agentes políticos não exercentes de mandato eletivo
Embora haja referência constante na jurisprudência e doutrina à Lei n. 9.506/97 como origem da contribuição dos agentes políticos, em verdade, esta restringe-se a determinada categoria de agentes políticos, quais sejam os ocupantes de mandato eletivo, em âmbito federal, estadual e municipal. A norma em questão não abrangeu os agentes públicos em seu gênero, nem mesmo a totalidade dos agentes políticos. Os agentes públicos, na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, são classificados em três categorias: agentes políticos; servidores estatais; particulares em colaboração com o Poder Público:
"Agentes políticos são os titulares dos cargos estruturais à organização política do País, ou seja, ocupantes dos que integram o arcabouço constitucional do Estado, o esquema fundamental do Poder. Daí que se constituem nos formadores da vontade superior do Estado. São agentes políticos apenas o Presidente da República, os Governadores de Estado, Prefeitos e respectivos vices, os auxiliares imediatos dos Chefes de Executivo, isto é, Ministros e Secretários das diversas Pastas, bem como os Senadores, Deputados federais e estaduais e os Vereadores.
O vínculo que tais agentes entretêm com o Estado não é de natureza profissional, mas de natureza política." (MELLO, 2005:229)
A contribuição social para a seguridade social incidente sobre a remuneração dos agentes políticos que não exerçam mandato eletivo não se funda na Lei n. 9.506/97, mas sim no art. 12, §6º, da Lei n. 8.212/91, em redação conferida pela Lei n. 9.876/99:
Art. 12. (...)
§ 6º Aplica-se o disposto na alínea g do inciso I do caput ao ocupante de cargo de Ministro de Estado, de Secretário Estadual, Distrital ou Municipal, sem vínculo efetivo com a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, suas autarquias, ainda que em regime especial, e fundações. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 9.876, de 26.11.99)
A alínea g, inciso I, do art. 12 estatui:
Art. 12. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas:
I - como empregado:
g) o servidor público ocupante de cargo em comissão, sem vínculo efetivo com a União, Autarquias, inclusive em regime especial, e Fundações Públicas Federais; (Alínea acrescentada pela Lei nº 8.647, de 13.4.93)
Destaque-se ainda o disposto no art. 15:
Art. 15. Considera-se:
I - empresa - a firma individual ou sociedade que assume o risco de atividade econômica urbana ou rural, com fins lucrativos ou não, bem como os órgãos e entidades da administração pública direta, indireta e fundacional;
Portanto, havendo fundamento legal diverso de imposição, a contribuição de referidos agentes políticos não foi objeto de controle de constitucionalidade difuso pelo STF, quanto mais abrangida pela Resolução n. 26 do Senado, sendo inclusive a norma em questão posterior à Emenda Constitucional n. 20/98, ao que presente plenamente a previsão de fonte de custeio pela própria Carta. A imposição tributária em face dos agentes políticos não eletivos emerge assim como contribuição diversa, incidente igualmente sobre agentes políticos, mas agentes políticos não ocupantes de mandato eletivo e ainda tratando como condição que não exerçam cargo efetivo na União, Estados e Municípios.
6. Conclusões
Em conclusão, tem-se que a Emenda Constitucional n. 20/98 configura-se como marco interpretativo para incidência da contribuição social para a seguridade social incidente sobre agentes políticos. A exigibilidade com fundamento na Lei n. 9.506/97, até o advendo da Emenda Constitucional n. 20/98 revela-se indevida. Não obstante, as normas regentes para a verificação da prescrição pautam-se pelos critérios constantes na Lei Complementar n. 118, ao que a declaração de inconstitucionalidade pelo STF ou a Resolução n. 26/2005, do Senado, não interferem no termo prescricional, considerado como momento da extinção do crédito tributário, sendo este a data do pagamento antecipado do mesmo.
Após a Emenda Constitucional n. 20/98, a contribuição incidente sobre os agentes políticos galgou nova configuração constitucional, em fenômeno tido como mutação em recepção constitucional derivada. Além, a Emenda instituiu novas fontes de custeio dentro do próprio quadro constitucional, ao que a tributação fundada nas referidas fontes prescinde de lei complementar, não se afigurando enquanto exercício de tributação residual, ao que para tanto basta a lei ordinária.
Ultrapassar limites de uma interpretação jurídica oitocentista, amarrada a grilhões centenários, a fim de galgar-se verdeiramente uma prática científica ao Direito, com o reconhecimento da superação de padrões seculares em prol de uma compreensão sempre aberta às inovações normativas e institutos jurídicos, é condição elementar para a plena supremacia constitucional, seja em sua feição originária, seja em sua feição derivada. Agarrar-se a feições hermenêuticas incompatíveis ao paradigma do Estado Democrático do Direito é deturbar a luta constante na construção de uma ciência jurídica em prol do entendimento do Direito enquanto instrumento reacionário e de conservação, mera repetição, sem engendrar novas teses e concepções. Enquanto o cientista físico ou biológico realiza-se na superação de interpretações e teorias passadas em busca da evolução da ciência, por vezes o intérprete jurídico ainda se pauta em critérios ancestrais e paleosóicos, confundindo a segurança jurídica com inércia reacionária. A força constitucional da Emenda Constitucional é banhada com o princípio da Supremacia da Constituição, ao que negar-se a novas configurações de institutos jurídicos é negar conjuntamente a progressão evolutiva do Direito e a própria Supremacia da Constituição em prol da manutenção conceitual do passado, tal como se o Direito estivesse condenado à fossilização hermenêutica.
Nestes termos, visualizar a integridade do Direito em prol da Supremacia da Constituição é assumir o caráter científico do próprio Direito, alargando a apreensão do ordenamento para além de critérios do passado, e passando a assumir uma hermenêutica contemporânea e radicada na contextualização presente, sem grilhões que afastem a função prospectiva do ordenamento jurídico.
7. Bibliografia
AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005
BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jéferson Luiz Camargo. Sao Paulo: Martins Fontes, 1999
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 4a Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1994
MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 19a Edição. São Paulo: Malheiros, 2005
PAULSEN, Leandro. Direito Tributário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004