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A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho

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SUMÁRIO. Introdução; 1. Desconsideração da Personalidade Jurídica; 1.2. Noções básics sobre personalidade jurídica; 2.2. Observações sobre o desenvolvimento histórico da teoria da desconsideração da personalidade jurídica; 1.3. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica no atual direito brasileiro; 2. Aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho; Referências bibliográficas; Notas.


INTRODUÇÃO

A desconsideração da personalidade jurídica é um mecanismo de incontestável eficiência para a efetivação da prestação jurisdicional quando frustrada a execução trabalhista.

Embora hábil à satisfação da pretensão do obreiro credor, casos há em que sua utilização vem sendo desvirtuada, prejudicando a segurança jurídica e contrariando a sólida construção civilista da personalidade jurídica distinta da personalidade dos sócios.

Deve-se isso, em grande parte, à ausência de disposição expressa na Norma Consolidada a respeito da aplicabilidade da despersonalização, emergindo daí inúmeras dúvidas sobre em que hipóteses poderia se lançar mão deste instituto.

Busca-se, por conseguinte, com este artigo, identificar as hipóteses em que deve ser empregada a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito Trabalhista, por meio da análise de seus pressupostos, que já foram amplamente debatidos e analisados em sede de Direito Comercial, Civil, Consumerista e Tributário, adaptando-os à realidade juslaboralista.


1.Desconsideração da personalidade jurídica

1.1.Noções básicas sobre a personalidade jurídica

Antes de iniciar quaisquer comentários a respeito da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, faz-se necessário, por questão de ordem e de lógica, repassar os conceitos básicos a respeito da personalidade dos entes ideais.

Revela-se um tanto difusa a formação do conceito de pessoa jurídica no Direito Romano. Vandick Londres da Nóbrega [01] explica que a dificuldade para os romanos admitirem uma personalidade distinta da pessoa natural tem raízes no profundo individualismo que marcou tal sistema jurídico clássico.

Como ressalta o mesmo professor, "o antigo direito civil dos romanos era o direito do indivíduo, pois de acôrdo com a concepção dominante, só a pessoa natural podia ser sujeito de direito." [02]

Não obstante, firmou-se, posteriormente, a concepção doutrinária de que o Estado, as províncias, o Fisco, os municípios, eram pessoas de direito público; as fundações, os collegia (associações criadas para o culto de divindades), os sodalicia (corporações religiosas criadas pela transferência de bens sacros), eram pessoas de direito privado. [03]

Em seguida, na fase chamada pós-clássica ou justinianéia, já se encontra regulamentação precisa de sociedades, como as de banqueiros (argentarii) e de publicanos (publicani – coletores de impostos e executores de obras públicas).

Diz Rubens Requião, porém, que o processo de limitação de responsabilidade, ou seja, a distinção entre as obrigações que vinculam a sociedade em si e as que vinculam os sócios, só veio a se iniciar, nos moldes em que hoje o conhecemos, na Idade Média. [04] O conceito acabado de personalidade jurídica, todavia, é algo recente.

No Brasil, por exemplo, afirma-se que só se veio a separar, perfeitamente, a personalidade da sociedade da daqueles que a formam quando da edição do Código Civil de 1916 – mesmo o velho Código Comercial de 1850 se mostrava contraditório a respeito, ora negando a personalidade autônoma das sociedades, ora admitindo preceitos claramente favoráveis à distinção, como o do art. 350. [05]

Feita esta rápida digressão histórica, podemos ingressar no atual estado da personalidade jurídica, no contexto do Direito vigente.

Para Teixeira de Freitas, na clássica definição constante do art. 272 de seu Esboço, "todos os entes suscetíveis de aquisição de direito, que não são pessoas de existência visível, são pessoas de existência ideal." [06]

Conforme Orlando Gomes, pessoas jurídicas são "grupos humanos, dotados de personalidade, para a realização de um fim comum." [07]

É igualmente tradicional o conceito de Fran Martins, para quem pessoa jurídica é "o ente incorpóreo que como as pessoas físicas, pode ser sujeito de direitos." [08]

Os excertos acima transcritos deixam a descoberto o ponto principal da questão. O que caracteriza a pessoa jurídica é o fato de ser uma entidade admitida pelo Direito, que, mesmo não sendo pessoa natural, é capaz de figurar, em nome próprio, no pólo passivo ou ativo de relações jurídicas.

Seguindo a lição de Orlando Gomes, não adentraremos nas teorias que justificam a natureza jurídica do instituto sob análise, por se tratar de especulações que interessam, hoje, mais à Filosofia do Direito que ao Direito Privado propriamente dito. Lembraremos as palavras do mesmo professor, porém, para demonstrar sua finalidade e as razões de sua admissão pela Ciência Jurídica: [09]

Não são apenas as pessoas naturais que podem ser sujeitos de direito. Entes formados pelo agrupamento de homens, para fins determinados, adquirem personalidades distintas dos seus componentes. Reconhece-lhes a lei capacidade de ter direitos e contrair obrigações.

A personalização desses grupos é construção técnica destinada a possibilitar e favorecer-lhes a atividade. O Direito toma-os da sociedade, onde se formam, e os disciplina à imagem e à semelhança das pessoas naturais, reconhecendo-os como pessoas, cuja existência autônoma submete a requisitos necessários a que possam exercer direitos dando-lhes regime compatível com sua natureza.

O fenômeno da personalização de certos grupos sociais é contingência inevitável do fato associativo. Para a realização de fins comuns, isto é, de objetivos que interessam a vários indivíduos, unem eles seus esforços e haveres, numa palavra, associam-se. A realização do fim para que se uniram se dificultaria extremamente, ou seria impossível, se a atividade conjunta somente se permitisse pela soma, constante e iterativa, de ações individuais. Surge, assim, a necessidade de personalizar o grupo, para que possam proceder como uma unidade, participando do comércio jurídico como individualidade, tanto mais necessária quanto a associação, via de regra, exige a formação de patrimônio comum constituído pela afetação dos bens particulares de seus componentes. Esta individualização necessária só se efetiva se a ordem jurídica atribui personalidade ao grupo, permitindo que atue em nome próprio, com capacidade jurídica igual à das pessoas naturais. (...) Assim se formam as pessoas jurídicas.

O trecho acima reproduzido, muito embora extenso, aponta com precisão e acerto a função da personalidade jurídica. Se as pessoas físicas precisam se associar, para a realização de empreendimentos de maior monta e complexidade técnica e financeira, é indispensável dotar o amálgama então formado de individualidade e autonomia, como modo de viabilizar a realização das finalidades pretendidas em nome próprio, já como um ente constituído de per si, independente daqueles que o formaram. Este é o cerne da personalidade jurídica.

Devidamente atendidos os pressupostos legais para tanto, a pessoa jurídica se constitui e se torna, de logo, um ente jurídico autônomo, dotado de personalidade propriamente dita. Caracteriza-se pelos seguintes traços, que podemos sintetizar abaixo, lançando mão de esquema adotado por autor mais recente: [10]

Decorre do documento escrito – contrato social ou estatuto – levado a registro, a personalidade jurídica, gerando alguns efeitos:

- Titularidade negocial e processual: a assunção da capacidade para adquirir direitos e contrair obrigações, podendo para defender seus interesses figurar, nas ações processuais, tanto no pólo ativo como no pólo passivo;

- Individualidade própria: os sócios não mais se confundem com a pessoa da sociedade, inclusive quanto à qualidade de comerciante. O art. 20 do Código Civil expressa de forma clara este efeito: "As pessoas jurídicas têm existência distinta da de seus membros."

- Responsabilidade patrimonial: a pessoa jurídica possui patrimônio próprio, distinto do patrimônio de seus sócios;

- Alteração orgânica: a sociedade pode alterar sua estrutura interna, modificando sua forma societária (limitada, s/a, comandita simples, em nome coletivo, capital e indústria e comandita por ações) , seu objeto social, sua estrutura societária, com o ingresso de novos sócios ou a retirada de outros, seu endereço, seu capital, etc.

O ponto fulcral da personalidade jurídica, pode-se dizer, é, realmente, a sua separação, como entidade autônoma, das pessoas físicas que a integram, princípio que se faz corolário das questões acima tratadas, sobretudo a capacidade que a pessoa jurídica tem de se obrigar, e responder, com seu próprio patrimônio, pelos débitos que assume, sem que se possa responsabilizar diretamente os sócios por eles.

No entanto, como observa Waldirio Bulgarelli, um dos grandes problemas a respeito das sociedades no Direito moderno é o do abuso da personalidade jurídica, [11] ou seja, a utilização maliciosa, pelos sócios, das prerrogativas de individualidade da pessoa jurídica que integram, para o cometimento de ilícitos e fraudes.

Diante da distinção patrimonial rigorosa que se aplica em nosso sistema jurídico, abre-se a possibilidade de empresários inescrupulosos endividarem as pessoas jurídicas que constituem, dilapidando seu patrimônio e auferindo lucros pessoais, por meios que repugnam à boa-fé contratual.

Quando os credores forem em busca da satisfação das relações obrigacionais existentes, perceberão que a sociedade não mais dispõe de respaldo patrimonial para saldá-las. E não poderão cobrá-las diretamente dos sócios, em face do antedito princípio da autonomia.

Foi exatamente para coibir a prática de tais abusos, que desvirtuam a finalidade própria da personalidade jurídica independente, que se desenvolveu a teoria da desconsideração, que veremos em seguida.

1.2.Observações sobre o desenvolvimento histórico da teoria da desconsideração da personalidade jurídica

A doutrina costuma identificar o nascedouro da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (ou disregard doctrine) na jurisprudência da Common Law.

Dois casos reais, ambos ocorridos no século XIX, teriam levado à elaboração das bases teóricas que tornariam possível ultrapassar o dogma da separação entre a pessoa jurídica e os sócios que a compõem: o primeiro, relatado pelo juiz Marshall, da Suprema Corte Americana, em 1809, e o segundo, relatado por Lord Macnaughten, na House of Lords inglesa, em 1897. [12]

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Partindo dos precedentes jurisprudenciais mencionados, o jurista alemão Rolf Serick adaptou a disregard doctrine ao sistema romano-germânico, seguindo-se à sua obra a de Piero Verrucoli e precedendo-a, ainda que sem alcançar o mesmo grau de evolução doutrinária, o trabalho de Maurice Wormser. [13]

Do primeiro caso, Bank of United States vs. Deveaux, registra a doutrina [14] que envolvia uma sociedade anônima (o Bank of United States). Para firmar a competência da Justiça Federal, de acordo com a Constituição Americana, preciso seria que envolvesse a demanda cidadãos de estados diferentes – todavia, ambos, sociedade e demandado, tinham domicílio no mesmo estado.

Desta forma, o relator, o conhecido juiz Marshall, desconsiderou a personalidade jurídica do banco para lembrar que seus acionistas residiam em diversos pontos do país, reconhecendo-se a competência federal.

Tal caso, porém, é manifestação incipiente e ainda não explícita da teoria em comento – não se trata, ainda, de sua aplicação direta, nos termos em que hoje a conhecemos, ou seja, não se trata de responsabilizar os sócios pelas obrigações da sociedade. Porém, sem dúvida, pode ser apontado como o mais antigo precedente jurisprudencial conhecido a ter relação com a disregard doctrine.

O outro caso referido, Salomon vs. Salomon & Co. Ltd., julgado pela House of Lords em 1897, ultrapassa a fase meramente embrionária e já nos mostra a plena aplicabilidade da desconsideração.

Alexandre Couto Silva [15] o resume nos seguintes termos: um comerciante, Aaron Salomon, fundou a sociedade Salomon & Co. Ltd., em que figuravam ele próprio, como subscritor de 20.001 ações, [16] sua mulher e seus cinco filhos, estes, com uma ação cada um. Totalizava-se, assim, 20.007 ações.

Destas, 20.000 foram integralizadas por Aaron Salomon com a transferência de um fundo de comércio que já possuía, a título individual.

Sucede que o fundo de comércio possuía valor superior ao das ações integralizadas, e, assim, Salomon tornou-se credor da sociedade, com garantia real.

Falindo a empresa, Aaron Salomon ingressou com ação judicial para receber o crédito privilegiado de que dispunha.

O Poder Judiciário britânico, porém, não acolheu, ao menos a princípio, sua pretensão. Tanto a primeira instância, quanto o Tribunal de recursos (High Court e Court of Apeal, respectivamente) negaram-lhe o recebimento do alegado crédito, sob o argumento de que teria se utilizado de fraude para auferir os lucros da sociedade sem assumir os riscos da atividade econômica.

A House of Lords, contudo, instância superior, reformou as decisões anteriormente proferidas e, reafirmando o princípio da autonomia da pessoa jurídica, reconheceu o direito postulado, deferindo-lhe a possibilidade de receber as quantias perseguidas diretamente da sociedade, em detrimento dos demais credores quirografários.

Muito embora o resultado final tenha sido desabonador à tese então recentemente lançada, o fato é que, nos julgados das Cortes menores, estabeleceram-se os pressupostos que, mais à frente, seriam retomados por Rolf Serick e pelos escritores que o seguiram, para tornar a Disregard Doctrine um recurso válido e entronizado nos principais sistemas jurídicos ocidentais, inclusive o nosso.

Relata Couto Silva, porém, que, até hoje, a teoria é rechaçada na Inglaterra. Não obstante ter suas origens no descrito caso da jurisprudência britânica, a desconsideração da personalidade jurídica não tem logrado boa acolhida entre os ingleses, que se apegam ferrenhamente à separação patrimonial entre sócios e sociedade. [17]

1.3.A teoria da desconsideração da personalidade jurídica no atual Direito Brasileiro

No presente estágio de nosso Direito, resta pacificado e estreme de dúvidas que, "em razão do princípio da autonomia patrimonial, as sociedades empresárias podem ser utilizadas como instrumento para a realização de fraude contra credores ou mesmo abuso de direito" [18], e ainda, que "a personalidade jurídica não constitui um direito absoluto, mas está sujeita e contida pela teoria da fraude contra credores e pela teoria do abuso de direito." [19]

Os preceitos, assim, estão diretamente ligados, e se a pessoa jurídica compreende a possibilidade de abusos e fraudes, o controle a ser exercido pelo ordenamento jurídico virá, justamente, sob a forma da coibição através das construções teóricas que repelem o abuso de direito e a fraude contra credores.

Aplica-se a disregard doctrine no Brasil, portanto, com essa finalidade, e, de acordo com Fábio Ulhoa Coelho, independentemente de previsão legislativa a respeito. [20]

Antes, porém, de adentrarmos diretamente no estudo da teoria sob comento no Direito Brasileiro, é preciso assentar duas advertências.

A primeira é a de que a utilização da disregard doctrine não se presta a desprestigiar a separação patrimonial entre sócios e sociedade, mas sim a homenageá-la. [21] Não se tenciona, por meio de tal recurso jurídico, minar a autonomia societária; ao contrário, o que se pretende é fortalecê-la, para que, uma vez expurgada dos desvios que a põem em risco, possa continuar a vigorar, como instrumento de aperfeiçoamento técnico que representa.

A segunda advertência válida é a de que a teoria da desconsideração não guarda a finalidade de dissolver sociedades ou declarar nula a personificação. Sua utilidade reside em, justamente, possibilitar a ineficácia da personalidade jurídica em relação a certos atos, para que o patrimônio dos sócios possa vir a ser atingido, sem que se infirme a sociedade em si ou se prejudique outros negócios e atos jurídicos não atingidos pelos efeitos nocivos da fraude ou do abuso. [22] Feitas estas considerações, passemos à análise da disregard no Direito pátrio.

Fábio Ulhoa Coelho, de forma didática, distingue duas teorias da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil, denomina-as "teoria maior", e por decorrência, "teoria menor". [23]

A chamada teoria maior da desconsideração é identificada, por tal autor, como sendo sua versão mais elaborada, [24] coincidindo com as formulações dos outros juristas citados que estudam a matéria.

Podemos sintetizar sua aplicabilidade na fórmula seguinte: [25]

A teoria será sempre aplicada quando a personalidade jurídica da sociedade for utilizada com instrumento para cometer abuso de direito ou perpetrar a fraude, no seu sentido amplo, e principalmente quando a personalidade tornar-se obstáculo para a realização da justiça.

Como observa Fábio Ulhoa, é preciso que a personalidade jurídica da sociedade se revele um obstáculo direto à composição dos interesses. Há que se ter, portanto, um ato que, a princípio, é plenamente lícito, mas que, em verdade, oculta uma fraude ou um abuso de direito, sendo necessário desconsiderar a existência da empresa para atingir, diretamente, a seus sócios e assim resolver o problema posto sem prejuízo dos legítimos interesses dos credores. [26]

Como identifica, com muito acerto, Teresa Cristina G. Pantoja, [27] o grande fundamento da teoria é a proteção da boa-fé. Restando evidente que os sócios praticaram atos que ferem ao princípio da boa-fé, e que os levará à locupletação ilícita em detrimento dos legítimos credores, tudo sob o manto de legalidade que a separação patrimonial lhes oferece, é imprescindível suspender o princípio da autonomia para, efetivamente, chegar-se a uma solução justa e que desprestigie o procedimento fraudulento e malicioso.

Enunciados os termos básicos da teoria da desconsideração, é útil arrolar alguns exemplos concretos de sua aplicabilidade, para aclarar a exposição.

Fábio Ulhoa [28] aventa a seguinte hipótese: dois sócios de uma sociedade anônima destinada a operar no ramo de mudanças são demandados em ação de indenização milionária, que poderá levar a empresa à falência. Constituem, então, uma limitada, com estrutura nova e independente (outro estabelecimento, outros funcionários, etc.), e deixam de investir na empresa antiga, que vai aos poucos perdendo os clientes para a nova e diminuindo seu patrimônio.

Ao fim do processo, os litigantes vencedores encontrarão a sociedade anônima praticamente falida, sem patrimônio para honrar os débitos indenizatórios, mas, ao mesmo tempo, verão os sócios em situação de prosperidade econômica, trabalhando em nova empresa, no mesmo ramo, praticamente com os mesmos clientes.

O ato é, em tese, lícito, mas há, na prática, uma espécie de fraude aos credores, os quais, se mantido o princípio da separação patrimonial entre os sócios e a pessoa jurídica demandada, nada receberão. Impõe-se, portanto, a desconsideração.

Outro caso imaginado pelo mesmo autor [29] toca a possibilidade de uma pessoa física construir um complexo industrial, em nome próprio, e vendê-lo a uma pessoa jurídica (sociedade limitada) que constitui com seu irmão. Ao invés de simplesmente integralizar suas quotas através da transferência do bem, o aliena, com reserva de domínio.

Assim, se a sociedade malogra e vem a falir, poderá recuperar o patrimônio investido, no caso, o complexo industrial, que ainda está em seu patrimônio, graças à reserva de domínio, mas que, na prática era o bem de maior monta a integrar o patrimônio da empresa.

Mantendo-se a separação patrimonial, os credores verão seus créditos insatisfeitos, ao passo em que o empresário que, por má-gestão, faliu a sociedade, não experimentará qualquer perda.

Há, neste caso, igual necessidade de se transpor a pessoa jurídica para alcançá-lo diretamente, em benefício dos credores e da boa-fé.

Ambos os exemplos falam por si e dão boa idéia do potencial que a teoria da desconsideração possui.

Existe, ainda, dentro da própria teoria maior, uma corrente objetivista, liderada por Fábio Konder Comparato, [30] que considera a confusão patrimonal entre sócio e sociedade como seu pressuposto.

A confusão patrimonal (se a sociedade paga as contas do sócio, por exemplo) é uma forma de fraude, e sua consideração objetiva sem dúvida facilita a comprovação do referido pressuposto de aplicação da desconsideração. Mas não exaure a aplicação da disregard, sendo apenas um seu facilitador. [31]

Observe-se que esta corrente doutrinária foi, claramente, positivada no art. 50 do vigente Código Civil. [32]

Estes, pois, os lineamentos gerais da chamada teoria maior. Cumpre, assim, tratar da teoria menor da desconsideração.

Sua essência é bem simples. Trata-se, nas palavras de Vieira da Silva, [33] da utilização da desconsideração sempre que houver "a demonstração pelo credor da inexistência de bens sociais e da solvência de qualquer sócio, para atribuir a este a obrigação da pessoa jurídica."

Na teoria menor, não se busca a comprovação do mau uso da sociedade pelo sócio. Não se há de provar o desrespeito à boa-fé. Não há conexão alguma com a fraude ou o abuso de direito, ou, no máximo, se realiza tal conexão através de uma espécie de presunção juris et de jure, extraída do fato objetivo de ser um sócio solvente, ao passo em que a empresa se encontra insolvente e incapaz de arcar com suas obrigações.

Tal teoria menor teve grande influência na redação do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, mormente na parte final do dispositivo e no parágrafo quinto. [34]

A própria doutrina consumerista aponta a "flexibilidade" da norma e sua desvinculação dos pressupostos da fraude e do abuso, o que só corrobora para sua identificação com a teoria menor: [35]

O texto introduz uma novidade, pois é a primeira vez que o direito legislado acolhe a teoria da desconsideração sem levar em conta a configuração da fraude ou do abuso de direito. De fato, o dispositivo pode ser aplicado pelo juiz se o fornecedor (em razão da má-administração, pura e simplesmente) encerrar suas atividades como pessoa jurídica.

Deve-se esse elastecimento das hipóteses de aplicação da disregard doctrine, à hipossuficiência do consumidor, que deve ser protegido pela lei, para que exista um equilíbrio em sua relação com o fornecedor.

Assemelha-se, neste pertinente, ao Direito Laboral, que confere superioridade jurídica ao obreiro, em contraponto à supremacia econômica do empregador, a fim de se garantir o exercício dos direitos disciplinados pela Norma Consolidada. Deste modo, é também cabível a utilização desta teoria na execução trabalhista.

Por fim, é interessante registrar a possibilidade, levantada por Fábio Ulhoa Coelho, [36] de se realizar uma desconsideração aos avessos, chamada por ele "desconsideração inversa".

Trata-se de responsabilizar a sociedade por dívidas do sócio, caso este, para perpetrar fraudes a seus próprios credores, transfere seus bens para a empresa, continuando a fruí-los livremente.

É hipótese factível e até comum, mormente nos casos em que o sócio em questão detém o absoluto controle da sociedade.

Refere, ainda, o autor citado, [37] que a desconsideração inversa pode vir a ser medida de extrema utilidade em matéria de Direito de Família, considerando a possibilidade de um dos cônjuges transferir bens de valor para empresa que integre, com o escopo de fraudar futura partilha.

De todo o exposto a respeito da tese da desconsideração da personalidade jurídica, hoje uma realidade concreta, de razoavelmente ampla utilização na prática forense, [38] é importante ressaltar a necessidade de sua aplicação independentemente de previsão legal.

Os princípios da teoria, aqui sumariamente apresentados, devem ser suficientemente amadurecidos pela doutrina e jurisprudência, e aplicados ainda que a lei não preveja especificamente, e mesmo que o faça defeituosamente.

Os pontos negativos dos dispositivos legais que a regram no Direito Brasileiro devem ser superados através de uma hermenêutica racional e construtivista, que, levando em conta precipuamente os princípios que estruturam a teoria da desconsideração, sobreponha-se aos defeitos da lei e extraia o melhor proveito que tal construção teórica pode oferecer ao nosso sistema jurídico, como recurso de suma importância que, indiscutivelmente, é.

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Sobre a autora
Ticiana Benevides Xavier Correia

advogada em Recife (PE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORREIA, Ticiana Benevides Xavier. A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1100, 6 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8589. Acesso em: 24 nov. 2024.

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