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A prescrição trienal em favor da Fazenda Pública.

Para uma interpretação sistêmica e dialógica à luz do Código Civil de 2002

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4. NOVA REGULAMENTAÇÃO PELO CÓDIGO CIVIL DE 2002

            A Lei nº 10.406/02 (novo Código Civil), observando uma maior cientificidade e um mais apurado rigor técnico no regramento da matéria, abre título específico para tratar da prescrição e da decadência. Dentro de tal título, na seção que cuida dos prazos prescricionais, dispõe da seguinte forma:

            "Art. 205. A prescrição ocorre em 10 (dez) anos, quando a lei não lhe aja fixado prazo menor.

            Art. 206. Prescreve:

            (...)

            § 3º em 3 (três) anos:

            I - a pretensão relativa a aluguéis de prédios urbanos ou rústicos;

            II - a pretensão para receber prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias;

(grifou-se)

            III - a pretensão para haver juros, dividendos ou quaisquer prestações acessórias, pagáveis, em períodos não maiores de um ano, com capitalização ou sem ela; (grifou-se)

            IV - a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa; (grifou-se)

            V - a pretensão de reparação civil; (grifou-se)

            VI - a pretensão de restituição dos lucros ou dividendos recebidos de má-fé, correndo o prazo da data em que foi deliberada a distribuição;

            VII - a pretensão contra as pessoas em seguida indicadas por violação da lei ou do estatuto, contado o prazo:

            a) para os fundadores, da publicação dos atos constitutivos da sociedade anônima;

            b) para os administradores, ou fiscais, da apresentação, aos sócios, do balanço referente ao exercício em que a violação tenha sido praticada, ou da reunião ou assembléia geral que dela deva tomar conhecimento;

            c) para os liquidantes, da primeira assembléia semestral posterior à violação;

            VIII - a pretensão para haver o pagamento de título de crédito, a contar do vencimento, ressalvadas as disposições de lei especial;

            IX - a pretensão do beneficiário contra o segurador, e a do terceiro prejudicado, no caso de seguro de responsabilidade civil obrigatório.

            Como se vê, o novel Código Civil não mais faz distinção entre ações reais e pessoais, ou entre partes presentes e ausentes. Houve alteração também quanto ao prazo máximo de prescrição que passou de 20 (vinte) para 10 (dez) anos. Por outro lado, como já ficou dito, todos os prazos prescricionais presentes no Código encontram-se na referida seção, todos os demais prazos espalhados pelo referido diploma e referentes especificamente a determinados institutos possuem natureza decadencial.

            Assim, a sistemática passou a ser esta: ou o prazo para o exercício de determinado direito (eventualmente exercitável via judicial) é previsto em um dispositivo legal específico fora dos artigos 205 e 206 e trata-se de prazo decadencial com todos os efeitos daí decorrentes; ou o lapso temporal dentro do qual deve ser ajuizada ação está previsto casuisticamente em um dos parágrafos do art. 206, tendo assim natureza prescricional; ou, não havendo a fixação de prazo específico, socorre-se do prazo prescricional geral de 10 (dez) anos, conforme previsto no art. 205.

            Por hora, nos interessa especialmente o § 3º do art. 206, do novo Código Civil. Esse preceptivo fixa em três anos o prazo prescricional para o exercício de uma série de pretensões que elenca. Ainda dentro desse dispositivo, enfocaremos diretamente os incisos II a V (acima grifados), por nos interessarem mais de perto.

            Ora, mencionados incisos referem-se a ações essencialmente pessoais, em que se busca de terceiros (devedores), através da tutela jurisdicional, o cumprimento de prestações que resultem no recebimento de "prestações vencidas", ou no pagamento de "juros, dividendos, ou quaisquer prestações acessórias, pagáveis, em períodos não maiores de um ano", ou no "ressarcimento de enriquecimento sem causa", ou na "reparação civil". Em todas essas ações pessoais, cujo móvel do ajuizamento consiste na finalidade reparar a lesão ao direito a uma prestação de que é titular o autor, por não ter sido cumprida a obrigação devida, prescrevem em 3 (três) anos (prescrição trienal).

            Chega-se ao ponto nuclear de nossas investigações.

            Havendo o novo Código Civil reduzido de 20 (vinte) para 3 (três) anos o prazo prescricional para essas ações que almejam, em síntese, a recomposição do patrimônio desfalcado, quer pelo dano efetivo ou pelo lucro cessante, é possível entender-se que em relação às ações contra a Fazenda Pública continua em vigor o prazo de 5 (cinco) anos, em razão do princípio da especialidade, ou, partindo-se de uma normatização posterior e levando-se em consideração os princípios orientadores das relações publicísticas, haveria de se concluir que o novo prazo aplica-se também em favor dos entes públicos? Esta é, em suma, a problemática de que nos ocupamos.

            Com já ficou consignado, a maioria da doutrina e dos tribunais nacionais, a despeito da entrada em vigor das novas disposições codificadas referentes aos prazos prescricionais, continua entendendo como aplicável aos feitos propostos contra a Fazenda Pública o prazo prescricional qüinqüenal previsto no Decreto nº 20.910/32. Alguns tomam tal posição por simples desconhecimento da nova sistemática normativa da matéria, outros, apesar de terem observado a alteração legal, afirmam que tais enunciações, por se encontrarem no bojo da lei civil codificada, possuiriam natureza de normas gerai, ao passo que a regulação levada a efeito pelo Decreto nº 20.910, do longínquo ano de 1932, possuiria um traço diferenciador que lhe garantiria a aplicação aos entes públicos. De acordo com tal doutrina, encartaria o aludido decreto disposições legais especiais, referindo-se especificamente à prescrição em favor da Fazenda Pública. Conclui, assim, esta corrente de pensamento, que não haveria que se falar em antinomia no vertente caso, devendo-se tão-somente aplicar-se a máxima segundo a qual lex specialis derrogat legi generali, ou, ainda, a norma de sobredireito constante do art. 2º, § 2º da Lei de Introdução ao Código Civil ("A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior").

            Como todo o respeito às posições divergentes, discordamos de tal entendimento. Assim o fazemos pelas razões que passamos expor.

            Em primeiro lugar, precisa-se destacar que desde a edição da Medida Provisória nº 2.180-35/01, que moldou a atual redação do art. 1º-C da Lei 9.494/97 (último dos diplomas legais que previu o prazo prescricional "reduzido" para a Fazenda Pública), até a entrada em vigor do Código Civil de 2002 não houve em nosso ordenamento jurídico, em nossa sociedade juridicamente organizada, enfim, em nosso Estado Democrático de Direito, qualquer inversão nos valores socialmente tidos como aceitos que nos possa conduzir à conclusão de que as razões justificantes do tratamento privilegiado concedido pelas leis materiais e processuais à Fazenda Pública, consistentes nas prerrogativas já aludidas, tenham desaparecido. Ou, o que é pior, passassem a exigir um tratamento legal diametralmente oposto, ou seja, da concessão de prerrogativas surgisse o império de se impor sujeições que lhe impingisse um tratamento mais severo.

            Em outros termos, parece fora de qualquer dúvida que nenhum abrupto ou imprevisto movimento cultural, social, político ou econômico eclodiu em nossa sociedade de modo a fazer incidir na ordem jurídica a necessidade de uma alteração radical da regulamentação dos prazos prescricionais em geral e os fixados em favor da Fazenda Pública. Efetivamente, não se deu tal convulsão de valores. Os vetores axiológicos subjacentes à nossa ordem jurídica permanecem os mesmos. Os princípios orientadores da atividade legiferante, administrativa ou jurisdicional não se inverteram. Os fins perseguíveis por nossa sociedade permanecem inalterados. Enfim, a ordem dos fatores relevantes não se alterou.

            Sob um prima positivista, cumpre lembrar que a mencionada Medida Provisória nº 2.180-35/01 foi editada já sob a nova ordem constitucional instaurada pela Constituição da República de 1988 e, apesar das inúmeras alterações verificadas no texto magno levadas a efeito pelo poder constituinte derivado, não se vislumbra, absolutamente, uma transformação na essência da Lei Fundamental, em seus princípios (explícitos e implícitos) fundantes, que lhe garantem a harmonia, unidade axiológica e sentido unitário no decorrer do tempo, em respeito ao princípio da continuidade e identidade da Constituição.

            Agora, pergunta-se: já que não houve qualquer modificação nos valores que alicerçam nosso ordenamento jurídico, inclusive com a manutenção da principiologia constitucional, como se poderia justificar uma tão brusca alteração de sentido na regulação normativa do instituto da prescrição? Como se explica juridicamente uma tão radical mudança de perfil por parte do legislador ordinário se sua fonte material de validade, a Constituição Federal, não se transmudou em algo distinto do que era?

            De fato, a mudança legislativa foi "da água para o vinho", se adotarmos a orientação dominante. Antes, as ações pessoais contra os particulares em geral prescreviam em 20 (vinte) anos, ao passo que, pelas razões já expostas, as mesmas ações quando propostas contra a Fazenda Pública prescreviam em prazo bem menor: em 5 (cinco) anos. Agora, de acordo com tal segmento doutrinário, o primeiro desses prazos prescricionais (ações movidas contra as pessoas físicas e jurídicas privadas) reduziu-se para 3 (três) anos, enquanto o segundo permaneceu inalterado, inabalado, alienado e alheio às mudanças convulsivas que eclodiram ao seu redor. Ou seja, parecem sustentar que o ordenamento jurídico "ciente da maior relevância dos interesses individuais quando confrontados com o interesse coletivo corporificado no Estado, concedeu um prazo de prescrição mais largo para as ações que aqueles intentem contra este". Nada mais absurdo! A idéia soa digna dos liberais revolucionários franceses do século XVIII.

            Facilmente se percebe que se instalou um quadro inteiramente desarrazoado e ilógico quando confrontado o resultado desse processo hermenêutico equivocado e o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Este princípio, verdadeiro dogma de todo o grande ramo do Direito Público, continua com sua viva eficácia em nossa ordem jurídica, apesar de permanecer implícito em nossa Lei Fundamental, como percucientemente notou Celso Antônio Bandeira de Melo em trecho acima transcrito.

            Como pode então, apesar da integridade e vivacidade do aludido princípio, o prazo prescricional a favor da Fazenda Pública deixar de ser inferior, privilegiado, reduzido em relação ao prazo geral para, de um dia para o outro (precisamente em 10 de janeiro de 2003 – dia que entrou em vigor nosso atual Código Civil), tornar-se mais dilatado, extenso, prejudicial? A resposta é simples: não pode. A menos que queiramos subverter a ordem dos valores consagrados por nosso Estado Democrático e Social de Direito, passando a entender-se que os interesse individuais privados possuem maior relevância do que o interesse público primário perseguido pelos entes públicos.

            A solução para a superação de tal perplexidade encontra-se na construção de um processo interpretativo sistêmico e dialógico, procedendo-se a uma leitura teleológica e fundada na ratio essendi das normas veiculadas no Decreto-Lei nº 20.910/32 e no Código Civil de 2002.

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            De fato, partindo-se da premissa de que o ordenamento jurídico é um sistema e, como tal, não comporta contradições internas, estabelece-se um mecanismo de controle voltado à superação das antinomias eventualmente verificáveis entre o enunciados legais. Tradicionalmente, este mecanismo de purificação do sistema constitui um conjunto de regras de sobredireito que, partindo de técnicas lógico-jurídicas, terminam por amputar o sistema com a exclusão de uma daquelas normas conflitantes. São classicamente concebidos os seguintes critérios de solução de conflito entre normas: critério hierárquicolex superior derrogat legi inferiori – a norma hierarquicamente superior prevalece sobre a inferior; critério cronológicolex posterior derrogat legi priori – a norma posterior revoga/não recepciona a anterior; critério da especialidadelex specialis derrogat legi generali – a norma especial afasta a aplicação da norma geral.

            Tal processo de eliminação da colidência de normas é autofágico, na medida em que para equacionar o choque normativo precisa, necessariamente, mutilar o sistema com a exclusão compulsória de uma de suas fontes, empobrecendo, conseqüentemente, a diversidade semântica e axiológica do próprio sistema.

            Mais modernamente, tem-se buscado construir um processo alternativo de solução das indesejáveis antinomias. Procura-se extrair de todas as normas integrantes do ordenamento sua correspondente significação valorativa, procedendo-se a uma construção dialética do significado resultante do conjunto harmônico das fontes normativas, sem que tal processo implique na eliminação de uma das referidas fontes. Elaborou-se, assim, o que se denominou chamar de diálogo de fontes.

            Sobre o assunto é elucidativa a lição de Luiz Guilherme de Almeida Ribeiro Jacob, segundo o qual "A postulação doutrinária contemporânea está em deixar o intérprete aberto à influência das inúmeras possibilidades hermenêuticas decorrentes das normas em conflito. O exegeta passa a ser um promotor de todas as potencialidades significantes das regras em jogo. Assim vivificada toda a riqueza que se pode extrair das normas conflitantes, é possível localizar o que há de sintôntico entre elas, preservando-se a unidade lógica do sistema sem que ele fique de antemão mutilado pela castração de uma de suas legítimas diretivas. (...) Nesse sentido, o diálogo das fontes, porque preserva todas as possibilidades semânticas do ordenamento, sem elidir a coerência sistêmica, potencializa asa condições de decibilidade, ensejando a construção de um instrumento mais eficiente e justo [17]".

            É este novo paradigma doutrinário para a solução das antinomias que nos fornece subsídios para a construção de uma interpretação dialógica entre o art. 1º do Decreto nº 20.910/32 e o art. 206 do Código Civil de 2002, de modo a, extraindo de cada qual a valoração ético-jurídica levada em consideração pelo legislador, preservar-se, tanto quanto possível, a potencialidade normativa de cada um, delimitando-se como precisão seus campos de regulação.

            Assim, a proposta interpretativa que aqui se propõe é a seguinte:

            Tendo-se em vista o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular e o princípio da igualdade material, assim como se levando em conta o grande volume de processos em que se exige a atuação dos advogados públicos e o fato de estes não disporem de quase nenhum poder discricionário na escolha entre atuar ou não, visto que devem observar o princípio da indisponibilidade do interesse público, não se mostra juridicamente razoável entender que a partir da entrada em vigor do Código Civil de 2002 os prazos prescricionais nas ações pessoais a serem exercidas contra a Fazenda Pública são mais extensos do que aqueles previstos para as ações propostas contra os particulares em geral.

            A despeito do reconhecimento da validade hermenêutica do princípio segundo o qual lex specialis derrogat legi generali, não pode tal preceito conduzir o intérprete a uma solução desarrazoada ou, ainda, incompatível com os princípios regentes das relações publicísticas. Efetivamente, o Decreto nº 20.910/32 é especial em relação ao Código Civil, contudo essa relação de especialidade não é capaz de, por si só, apontar para uma intelecção normativa que vá de encontro aos vetores axiológicos do nosso ordenamento jurídico.

            Da mesma forma, deve-se entender o comando inserto no art. 2º, § 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual "a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior". Não se diga que estamos aqui querendo fazer prevalecer uma opinião pessoal frente a uma ordem legal expressa. Não se trata disto. Na realidade, sustentamos que referida norma de sobredireito, ante os princípios reinantes no sistema e as demais normas vigentes, somente tem aplicação quando a convivência da lei especial anterior com a lei geral posterior não nos leve a um quadro normativo cujas conseqüências são juridicamente ilógicas e desproporcionais como se verifica no vertente caso.

            Assim, o prazo de prescrição qüinqüenal para as ações pessoais previsto no art. 1º do Decreto nº 20.910/32, no art. 2º do Decreto-Lei nº 4.597/42 e no art. 1º-C, Lei nº 9.494/97 continua existente em nossa ordem jurídica, entretanto, somente possuindo aplicação naquelas hipóteses em que o mesmo prazo para os particulares forem igual ou superior. Quando tal não ocorrer, deve-se entender que o prazo de prescrição trienal previsto no art. 206, § 3º do Código Civil aplica-se também aos feitos a serem ajuizados contra a Fazenda Pública.

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Sobre o autor
Bernardo Lima Vasconcelos Carneiro

juiz federal substituto em Belém (PA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARNEIRO, Bernardo Lima Vasconcelos. A prescrição trienal em favor da Fazenda Pública.: Para uma interpretação sistêmica e dialógica à luz do Código Civil de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1098, 4 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8594. Acesso em: 23 abr. 2024.

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