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A prescrição trienal em favor da Fazenda Pública.

Para uma interpretação sistêmica e dialógica à luz do Código Civil de 2002

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1. OBJETO E FINALIDADE DO ESTUDO

            O objeto de estudo do presente artigo consiste na análise sistêmica do instituto da prescrição sob a ótica da ordenação instaurada pela Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, com vigência iniciada um ano após sua publicação (art. 2.044), especificamente no que toca às pretensões pessoais a serem exercitadas contra a Fazenda Pública.

            Sem a aspiração de atingir o exaurimento da matéria, pretende-se proceder a uma abordagem comparativa com a sistemática reinante antes do advento do novel Código Civil, bem como se almeja, através de um processo interpretativo filtrado pelos princípios constitucionais regentes da relação do Poder Público com os particulares, alcançar um resultado hermenêutico que se revele razoável e harmônico com o sistema como um todo, em obséquio ao princípio da unidade do ordenamento jurídico.

            Como se procurará demonstrar ao longo do presente trabalho, instalou-se, após a entrada em vigor do Código Civil de 2002, um quadro normativo contraditório quando se depara com o quantum do prazo prescricional das ações pessoais contra a Fazenda Pública em contraposição ao mesmo prazo no que toca às demandas a serem propostas contra os particulares em geral, sabendo-se que os princípios orientadores do ordenamento apontam solução diversa.

            Assim, através de uma interpretação sistemática e inspirada diretamente naqueles vetores axiológicos que impregnam todas as normas integrantes do sistema, garantindo-lhes coerência e unidade orgânica, procurar-se-á superar o mencionado quadro de desarrazoabilidade, de modo a atingir-se o real significado das disposições aparentemente contraditórias, sempre guiados por uma hermenêutica dialógica, evitando-se a autofagia do sistema com a inútil exclusão de alguma das normas aparentemente conflitante.

            Deve-se ressaltar, desde o início, que não é de nosso desconhecimento a posição amplamente majoritária da doutrina e da jurisprudência nacionais que interpretam as novas disposições legais constantes na legislação civil codificada como espécie de lei geral, de modo a se apresentarem absolutamente compatíveis (não excludentes) com pretéritas disposições legais extravagantes que regem (ou regiam) especificamente a prescrição em favor a Fazenda Pública.

            Contudo, como se buscará comprovar ao longo do texto, a simples a aplicação do brocardo lex specialis derrogat legi generali, ou ainda a invocação da regra de sobredireito do art. 2º, § 2º da Lei de Introdução ao Código Civil ("A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior") não é suficiente para superar a patente falta de razoabilidade entre o sentido da norma alcançado após tal processo e os princípios publicísticos subjacentes à matéria, denotando uma situação irracional onde reina a mais pura falta de lógica.

            Antes de se adentrar propriamente no objeto de nossa preocupação investigativa, convém traçarmos previamente os conceitos de prescrição, sua diferença do instituto da decadência, a exata compreensão do termo "Fazenda Pública", uma análise das prerrogativas que esta goza, assim com suas razões justificadoras.


2. PRESCRIÇÃO

            O Estado, estando predisposto a buscar a consecução da felicidade geral através da paz e da estabilidade social [01], prevê mecanismos jurídicos tendentes a assegurar a cristalização de situações que, a despeito de objetivamente estarem em desacordo o direito positivo, consolidaram-se no tempo sob o pálio da presumida aceitação dos sujeitos teoricamente prejudicados com a inicial ação violadora.

            Como nos ensina um velho brocardo, "o Direito não socorre aqueles que dormem". Isto é, o Direito não ampara aqueles que injustificadamente permanecem inertes frente a flagrantes agressões a seus bens jurídicos, com a exceção de excepcionais casos previstos taxativamente na lei ou na Constituição ou cuja natureza não se compatibiliza com o perecimento da ação de defesa inerente ao direito (as denominadas ações imprescritíveis, tais como as concernentes aos direitos da personalidade, de reconhecimento da paternidade ou as ações de ressarcimento por prejuízos causados ao erário por agente público – art. 37, § 5º, CF/88).

            A segurança jurídica é um bem almejado por todos e amplamente amparado pelo sistema normativo nacional. E é justamente no intuito de assegurá-la, bem como a estabilidade nas relações sociais, que a lei prevê institutos como a usucapião, a preclusão, a decadência e a prescrição.

            De fato, para fins de se consolidar definitivamente uma situação jurídica que se instaurou e se consolidou, apesar de sua discordância com algum preceito legal, fixa a lei um prazo fatal dentro do qual o jurisdicionado que se julga lesado em seu direito deve impreterivelmente ingressar com a competente demanda judicial onde deduzirá sua pretensão de ver prestada a tutela jurisdicional capaz solucionar o conflito de interesses e afastar a ilicitude eventualmente perpetrada pela parte promovida.

            O caos imperaria no meio social se alguém pudesse, apesar de transcorridos vários anos ou décadas do ato de violação de seu direito, postular em juízo contra o suposto agressor, pleiteando a reparação do dano ou o desfazimento do ato ilícito. Tal possibilidade é repelida pela ordem jurídica com o escopo de preservar-se um bem coletivo superior ao interesse meramente individual do desidioso autor, qual seja, a segurança jurídica. É princípio geral de direito que o interesse público, nesta sede condensado no princípio da segurança jurídica, prevalece sobre o interesse privado, em especial quando o suposto titular revela-se relapso e desinteressado pela preservação ou restauração da situação jurídica de vantagem lhe outorgada pela lei.

            Assim, o instituto da prescrição trabalha a relação TEMPO versus EXERCÍCIO DOS DIREITOS. Contudo, não o exercício dos direitos materiais já integrados ao patrimônio jurídico do sujeito, mas sim do exercício do autônomo e abstrato direito subjetivo público de ação. No primeiro caso, perecimento do próprio direito material em decorrência do seu não exercício pelo tempo fixado em lei, temos a decadência, já no segundo, extinção da via judicial defensiva do direito material agredido pela não atuação no prazo legal, temos propriamente a prescrição.

            Nas palavras do ilustre cearense autor intelectual do Código Civil de 1916, "prescrição é a perda da ação atribuída a um direito, e de toda sua capacidade defensiva, em conseqüência do não uso delas, durante um determinado espaço de tempo" [02].

            Entretanto, o código revogado, apesar da notória ilustração de Clóvis Beviláqua, não logrou traçar traços distintivos nítidos entre os institutos que ora se examina. Sua disciplina pouco metódica e contraditória em alguns pontos fez surgir insistente contenda doutrinária e jurisprudencial na tentativa de classificar tais e quais prazos como prescritivos ou decadenciais.

            Apesar desta antiga e cansativa divergência na escolha de critérios apontados como aptos a diferenciar eficazmente a decadência da prescrição, ao que parece, hoje, em grande parte devido ao tratamento pragmático que lhe foi dado pelo Código Civil de 2002, as dúvidas e perplexidades parecem ter se dissipado.

            De acordo com o art. 189 do vigente Código Civil, "violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazo a que aludem os arts. 205 e 2006".

            Como se percebe, a Lei Civil Material, atendendo aos anseios da doutrina dominante, pacificou a celeuma, esclarecendo que o objeto da força destrutiva da prescrição é, na verdade, a pretensão. Sobre o que seja esta, cumpre trazer à baila o ensinamento de Marinoni e Arenhart [03]:

            "Quando uma norma confere a alguém um direito subjetivo, e esse direito não é observado, surge àquele que tem o referido direito a possibilidade de exigir que ele seja respeitado. Essa possibilidade de exigir, exatamente porque é uma ´´possibilidade´´, é simples faculdade, denominada ´´pretensão´´.

(...) Quando alguém exige a observância de seu direito, ocorre o exercício da pretensão de direito material, que deixa de ser, portanto, mera potencialidade".

            Mais à frente continuam os processualistas:

            "Na verdade, se é possível, em face do Estado contemporâneo, exigir a observância de um direito, e assim exercer a pretensão de direito material, não é possível agir forçadamente para que o direito seja observado, uma vez que foi proibida a autotutela".

            Assim, excluída pelo Estado Moderno [04] a possibilidade de se fazer justiça pelas próprias mãos (autotutela), a defesa de direitos eventualmente desrespeitados, com raríssimas exceções previstas expressamente em lei (v.g., desforço necessário na defesa da posse ou legítima defesa contra injusta agressão na seara penal), somente se trava no palco próprio do Poder Judiciário, conjunto orgânico criado pelo Estado a quem foi atribuída a função primordial de solucionar os conflitos de interesse, aplicando o direito ao caso concreto.

            Nesta perspectiva, é justamente essa possibilidade, essa faculdade conferida pelo ordenamento jurídico ao titular do direito lesado de deduzir seu pleito (ressarcitório, mandamental ou reintegratório) perante o órgão jurisdicional que se denomina pretensão.

            Em termos claros e expondo-se a situação sob uma perspectiva dinâmica, o que ocorre é o seguinte: ocorrido o fato ou situação fática prevista abstrata e genericamente na lei como idônea a fazer nascer o direito subjetivo, este se integra na esfera jurídica do sujeito. Violado este direito por um terceiro (particular ou o Poder Público) surge a pretensão, cujo exercício não pode ser protraído indefinitivamente no tempo, sob pena de, escoado in albis o prazo peremptório estabelecido na lei, operar-se o efeito destrutivo da prescrição.

            Como se observa, o termo a quo do prazo prescricional, ou seja, o momento a partir do qual este começa a correr, coincide exatamente com o ato transgressor do direito subjetivo atingido. Isto é, o lapso temporal da prescrição nasce concomitantemente com a pretensão. Tal fato, na realidade, é mera decorrência lógica de sua própria definição, já que a prescrição é, como já ficou dito, o período de tempo em que a lei garante ao titular da situação jurídica de vantagem violada a possibilidade de deduzir sua pretensão em juízo, pleiteando a prestação da tutela jurisdicional apta à proteção de seu direito.

            A decadência, por sua vez, consiste no perecimento do próprio direito material em razão do seu não exercício, aqui, exercício das faculdades inerentes ao referido direito, pelo prazo estipulado na lei.

            De fato, grande é a semelhança entre a prescrição e a decadência. Em ambos, uma inação injustificada por certo lapso de tempo faz perecer um direito. Contudo, na primeira o que se extingue é um direito processual, o direito de ação tendente a proteger anterior direito material violado, já na segunda o que caduca é o direito substantivo mesmo, é a própria situação jurídica de vantagem atribuída pelo ordenamento jurídico ao sujeito.

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            Nas palavras de Washington de Barros Monteiro [05]:

            "A prescrição atinge diretamente a ação e por força oblíqua faz desaparecer o direito por ela tutelado; a decadência, ao inverso, atinge diretamente o direito e por via oblíqua, ou reflexa, extingue a ação".

            Decadência, desta forma, é a extinção do direito substantivo que não se tornou vivo e efetivo pela falta de seu exercício pelo titular no prazo fixado legalmente. De fato, em alguns casos a lei subordina a eficácia do direito ao seu correspondente exercício em lapso temporal normalmente curto.

            Segundo a lição de Sílvio de Sávio Venosa, "o objeto da decadência, portanto, é o direito que nasce, por vontade da lei ou do homem, subordinado à condição de seu exercício em limitado lapso de tempo. Todo direito nasce de um fato a que a lei atribui eficácia para gerá-lo. Esse fato pode ser acontecimento natural, assim como pode emanar da vontade, transfigurando-se em ato jurídico (negócio jurídico) praticado no intuito de criar direitos. Em ambos os casos, quer o acontecimento seja proveniente de acontecimento natural, quer proveniente da vontade, a lei pode subordinar o direito, para se tornar efetivo, à condição de ser exercido dentro de certo período de tempo, sob pena de decadência" [06].

            Convém relembrar, porque inteiramente pertinente à matéria sob enfoque, a clássica distinção entre direitos a uma prestação e direitos potestativos.

            Em termos sucintos, os primeiros visam à satisfação de um dever obrigacional, contratual ou extracontratual, que, ao menos em princípio, necessita de um comportamento do devedor ou de um terceiro. Os segundos, pelo contrário, são exercitáveis tão-somente pelo seu titular, independentemente da conjugação da vontade/comportamento de outrem. É o que ocorre nas demandas constitutivas ou anulatórias.

            Assim, somente os direitos a uma prestação é que são suscetíveis de lesão, concretizável através do não cumprimento da prestação devida no prazo, lugar e modo próprios. Deste modo, como visto, nascida a lesão, conjuntamente com ela surge a pretensão e passa a correr o prazo prescricional.

            Já os direitos potestativos, nas palavras do mestre Chiovenda, "por sua própria natureza, já que não se dirigem contra uma obrigação, mas se exaurem no poder jurídico de produzir um efeito jurídico, e se exercitam com uma simples manifestação de vontade, com ou sem o concurso da sentença judicial, não podem ser lesados por ninguém. [07]" Desta forma, não havendo lesão, não há, conseqüentemente, pretensão, não havendo que se falar em prescrição.

            Conclui-se facilmente que os direitos a uma prestação, uma vez descumprida esta, subordinam-se a prazos prescricionais no que concerne à correspondente ação ressarcitória, executória ou mandamental [08], enquanto o direitos potestativos subordinam-se a prazos decadenciais, judicialmente exercitáveis nas ações constitutivas positivas e negativas.

            No mesmo sentido é a posição de Sílvio de Sávio Venosa, para quem "só as ações condenatórias podem sofrer os efeitos da prescrição, porque só elas pretendem alcançar prestações e só os direitos que visam a uma prestação possibilitam ação condenatória. (...) Desse modo, as ações constitutivas ligam-se à decadência. As ações declaratórias, que só visam obter certeza jurídica, não estão sujeitas nem à decadência nem à prescrição [09]".

            Pois bem, como já se deixou assente, o novo Código Civil tratou os institutos da decadência e da prescrição de maneira muito mais precisa e pragmática, propiciando aos estudiosos e aplicadores do direito maior facilidade em sua diferenciação conceitual e na classificação exata dos prazos previsto ao longo do aludido diploma, com a conseqüente maior segurança na identificação dos efeitos jurídicos próprios de cada um ( v.g., reconhecimento ex officio ou por provocação da parte interessada; possibilidade de renúncia; possibilidade de ser convencionado o prazo; possibilidade de ser obstado, interrompido ou suspenso; oponibilidade ou não contra os absolutamente incapazes, etc).

            O aspecto pragmático e possibilitador da fácil distinção entre os prazos prescricionais e decadenciais encartados no corpo do código deve-se à disposição contida na parte final do já transcrito art. 189, segundo o qual os prazos de prescrição são aqueles apontados nos arts. 205 e 206.

            Assim, afora aquelas hipóteses ali elencadas todos os demais prazos fixados pelo código, seja na parte geral ou especial, referentes a institutos específicos, dentro dos quais deve-se exercer determinado direito, constituem espécies de prazos decadenciais, com todos os efeitos que lhe são inerentes.


3. PRESCRIÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA - DECRETO Nº 20.910/32

            Antes do advento do vigente Código Civil, e até mesmo após tal marco para a maioria da doutrina e da jurisprudência nacionais, o lapso prescricional de todas as ações a serem exercidas contra a Fazenda Pública, salvo ações reais e outras hipóteses previstas em leis específicas, era (é) regido pelo Decreto nº 20.910, de 6 de janeiro de 1932:

            "As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescreve em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originaram".

            Seu conteúdo foi estendido (esclarecido) pelo Decreto-Lei 4.597, de 19 de agosto de 1942:

            "O Decreto 20.910, de 6 de janeiro de 1932, que regula a prescrição qüinqüenal, abrange as dívidas passivas das autarquias, ou entidades e órgãos paraestatais, criados por lei e mantidos mediante impostos, taxas ou quaisquer contribuições exigidas em virtude de lei federal, estadual ou municipal, bem como a todo e qualquer direito ou ação contra os mesmos".

            Pelos termos das disposições supras, percebe-se já de início a importância da obtenção de um conceito preciso e inequívoco do que deva ser entendido como "Fazenda Pública".

            Com bem esclarece Leonardo José Carneiro da Cunha, "A expressão Fazenda Pública identifica-se tradicionalmente como a área da administração pública que trata da gestão das finanças, bem como da fixação e implementação de políticas econômicas. Em outras palavras, Fazenda Pública é expressão que se relaciona com finanças estatais, estando imbricada com o termo erário, representando o aspecto financeiro do ente público. (...) em direito processual, a expressão Fazenda Pública contém o significado de Estado em juízo. Daí, por que, quando se alude à Fazenda Pública em juízo, a expressão apresenta-se como sinônimo de Estado em juízo ou do ente público em juízo, ou, ainda, pessoa jurídica de direito público em juízo [10]".

            Irreparável a conclusão do eminente procurador do Estado de Pernambuco. De fato, com adiante se verá, a lei processual, tendo em vista os princípios da supremacia do interesse público e da igualdade material, em diversas oportunidades confere prerrogativas aos entes de direito público com vistas à preservação do interesse coletivo, a quem lhes é confiada a guarda e consecução, assim como para equalizar a potencialidade defensiva das partes em juízo. Quando assim opera, qualifica as pessoas jurídicas de direito público com a expressão Fazenda Pública.

            Para efeito do gozo das prerrogativas processuais outorgadas pela lei, revela-se indiferente a classificação entre Administração Pública Direita e Indireta. Não repercute substancialmente nos atributos levados em consideração pelo legislador ser o ente pertencente à estrutura centralizada do Poder Público ou ser produto do já não tão recente processo de descentralização administrativa. Em ambos os casos, verificada a personalidade pública, o que implica a persecução direta de fins eminentemente públicos, caracterizada estará o critério diferenciador elegido pela ordem jurídica como idôneo à diferenciação de tratamento na seara processual.

            Deste modo, podemos, para fins de repleto esclarecimento, elencar de forma taxativa os entes que aderem à qualificação aludida, gozando, assim, das prerrogativas correspondentes. São eles a União, os estados federais, os municípios, bem como as respectivas autarquias, nestas compreendidas as agências executivas e reguladoras, e as fundações públicas.

            Excluem-se do citado conceito as empresas estatais, compreendido neste termo as empresas públicas e as sociedades de economia mistas, que por apresentarem personalidade jurídica de direito privado, apesar da derrogação parcial do direito comum por disposições publicísticas, gerando um regime jurídico híbrido [11], não podem gozar de tratamento processual favorecido em relação às demais empresas privadas atuantes na ordem econômica.

            Esclarecido o conceito de Fazenda Pública, passemos à análise das prerrogativas que lhe são reconhecidas pela ordem jurídica.

            Sabe-se que a Constituição Federal, no caput do art. 5º, consagra o princípio da isonomia, ao afirmar que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Contudo, é igualmente de amplo conhecimento que desde a superação do Estado Liberal e de sua correspondente ideologia jurídica pautada no individualismo e no extremo zelo para com a liberdade pessoal, restou suplantada a compreensão do princípio isonômico como mera igualdade formal, simples proibição de tratamento legal díspare ante objetos formalmente idênticos.

            As condições sócio-econômicas que propiciaram o surgimento do Estado Social, do qual nosso Estado Democrático de Direito não passa de uma ulterior fase evolutiva, com a inevitável superação dos dogmas liberais, também imporam uma remodelação dogmática do princípio da igualdade. De fato, este deixou de ser percebido unicamente como vetor axiológico protetor das liberdades do indivíduo, da contenção da atuação do Estado e da preservação das regras disciplinadoras do mercado econômico. Passou o princípio da isonomia a ser encarado como alavanca propulsora de medidas legais e concretas tendentes á equalizar distorções verificadas no meio empírico. Assumiu um sentido primordialmente substancial, passando a levar em consideração as condições concretas em que se inserem os indivíduos envolvidos no objeto da regulação normativa.

            O princípio da igualdade, em sua vertente material, é compreendido, assim, segundo a lição aristotélica de que se devem tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida das respectivas desigualdades.

            Pois bem, é dentro dessa visão evoluída de igualdade material que se pode compreender a compatibilidade de tratamentos legais divergentes segundo o sujeito envolvido com o mandamento constitucional que proíbe distinções de qualquer natureza.

            Na realidade, o que nossa Lei Fundamental veda são as distinções desarrazoadas ou desproporcionais. Toda lei para regular determinada matéria segundo padrões que elege como convenientes ao bem comum precisa necessariamente proceder à discriminações. São eleitos casos, hipóteses, pessoas ou situações específicas que passam a ser regidas conforme os ditames do novo diploma legal. Nisso nada há de inconstitucional. Pelo contrário, faz parte mesmo da essência da atividade legiferante.

            A jaça da ilegitimidade constitucional aparece quando se elege como padrão diferenciador, como ponto de descrímen critério irrazoável ou incompatível com a finalidade pretendida. Para se levar a bom termo esse juízo acerca da razoabilidade do elemento escolhido como apto a justificar o tratamento díspare, imprescindível é o manejo do princípio da proporcionalidade. Sobre tal princípio, convém registrar o lúcido magistério do Min. Gilmar Mendes [12]:

            "É possível que o vício de inconstitucionalidade substancial decorrente de excesso de poder legislativo constitua um dos mais tormentosos temas de constitucionalidade hodierno. Cuida-se de aferir a compatibilidade da lei com os fins constitucionalmente previstos ou de constatar a observância do princípio da proporcionalidade, isto é, de proceder à censura sobre a adequação e a necessidade do ato legislativo. (...)

            O conceito de discricionariedade no âmbito da legislação traduz, a um só tempo, a idéia de liberdade e de limitação. Reconhece-se ao legislador o poder de conformação dentro de limites estabelecidos pela Constituição. E, dentro desses limites, diferentes condutas podem ser consideradas legítimas. Veda-se, porém, o excesso de poder, em qualquer de suas formas.(...)

            A doutrina identifica como típica manifestação do excesso de poder legislativo a violação do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso, que se revela mediante contrariedade, incongruência e irrazoabilidade ou inadequação entre meios e fins".

            Transportando-nos para a área processual, verificamos que em mais de uma oportunidade o Código de Processo Civil, levando em conta as condições peculiares que envolvem determinadas partes, outorgou tratamento diferenciado, até mesmo flagrantemente protetor a algumas delas. É o que se observa quando determina que o juiz dará curador especial ao réu preso e ao revel citado por edital ou com hora certa (art. 9º, II), ou ainda quando prevê a obrigatoriedade da intervenção do Ministério Público nas causas em que há interesse de incapazes (art. 82, I).

            Nesses casos, como em outros que se poderia citar, vislumbramos a plena atuação do princípio da igualdade em sua vertente material, perfeitamente compatível, pois, com as prescrições constitucionais vadatórias de tratamentos descriminantes.

            É nesse contexto que se insere o tema das prerrogativas da Fazenda Pública, dentre as quais se encontram os prazos prescricionais diferenciados, tema que especialmente nos interessa nesse trabalho.

            É importante, primeiramente, ressaltar que revela conotação pejorativa e dissonante dos princípios subjacentes à ordem jurídica o termo "privilégios", quando empregado com a finalidade de referir-se ao tratamento diferenciado que recebe a Fazenda Pública pela lei quando atua em juízo. Privilégios, na verdade, consistem em diferenciações imotivadas, irrazoáveis, sem fundamento plausível e, por isso mesmo, incompatíveis com os princípios que regem nosso Estado Democrático de Direito. As prerrogativas, por sua vez, relacionam-se com a concretização do princípio da igualdade material, porque tendentes a, considerando a disparidade intrínseca dos sujeitos envolvidos, propiciar um palco de batalha efetivamente justo e harmonioso com os objetivos do Estado – o bem comum.

            Feita essa necessária diferenciação terminológica, passemos ao estudo dos motivos que orientam o legislador ordinário na instituição das prerrogativas da Fazenda Pública.

            Constitui dogma jurídico operante em todo o Direito Público o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Como ficou dito, superado o individualismo jurídico, o Estado abandonou sua postura passiva e contemplativa para assumir o papel dirigente e ativo de guardião dos interesses da coletividade, não como seu soberano titular, mas sim como constrito gestor, cuja função sublegal direciona-se no exclusivo sentido de, no lastro previamente traçado pela lei (princípio da legalidade), concretizar o bem público. Nessa nova ideologia estatal, os interesses públicos surgem com preponderância e se sobrelevam aos interesses privados, que somente passam a gozar da proteção legal na medida em que não se choquem com aqueles.

            Nas valiosas palavras de Celso Antônio Bandeira de Melo, "o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é princípio geral de Direito inerente a qualquer sociedade. É a própria condição de sua existência. Assim, não se radica em dispositivo algum da Constituição, ainda que inúmeros aludam ou impliquem manifestações concretas dele, como, por exemplo, os princípios da função social da propriedade, da defesa do consumidor ou do meio ambiente (art. 170, III, V, VI), ou tantos outros. Afinal, o princípio em causa é um pressuposto lógico do convívio social [13]"..

            Desta feita, estando o Estado predisposto à consecução do bem comum, do interesse geral, da finalidade pública, da felicidade plena dos indivíduos habitantes em seu elemento especial, ou qualquer outra expressão que se utilize para designar o interesse público, não se pode conceber que interesse privados de certos indivíduos ou de um grupo determinado se sobreponha àquele, sob pena de completa subversão dos sistema e dos valores axiológicos que lhe são inerentes.

            Já se percebe que o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular constitui a primeira razão justificante do tratamento diferenciado dispensado pela legislação material e processual em relação à Fazenda Pública.

            A segunda razão fundante da existência das aludidas prerrogativas consiste no dado fático e empírico de que na quase a metade dos feitos tramitantes perante o Poder Judiciário nacional figura algum dos entes públicos compreendidos no termo Fazenda Pública (União, estados, municípios e respectivas autarquias e fundações de direito público). Isto revela o excessivo volume de trabalho que sobrecarrega os procuradores e advogados públicos (Advogados da União, Procuradores da Fazenda Nacional, Procuradores Federais, Procuradores dos Estados e Procuradores dos Municípios).

            Os membros destas instituições vêem-se afogados em processos, com a obrigação de proceder a uma defesa jurídica de qualidade, não dispondo de quaisquer poderes de avaliação quanto à conveniência ou oportunidade de se contestar determinada ação ou recorrer de certa decisão judicial desfavorável ao interesse público [14]. Como se vê também nesta sede impera o princípio da indisponibilidade do interesse público.

            Diante desse quadro crítico é que se erige como justa e razoável a atribuição legal de certas prerrogativas à Fazenda Pública quando atuante em juízo. Nossa legislação é farta em exemplos. Vejamos:

            Prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer (art. 188, CPC); dispensa do adiantamento de despesas e custas processuais (art. 27, CPC) dispensa de depósito prévio na interposição de recursos (art. 1º-A, Lei nº 9.494/97); princípio da modicidade na fixação dos honorários advocatícios (art. 20, § 4º, CPC); dispensa do pagamento de honorários advocatícios nas execuções não embargadas (art. 1º-D, Lei nº 9.494/97); prazo de trinta dias para embargar execução (art. 730, CPC), reexame necessário (art. 475, CPC); limitação de liminares cautelares ou satisfativas (art. 5º, Lei nº 4.348/64 e art. 1º Lei nº 8.437/92) e, por fim, o que mais de perto nos interessa agora, prazo prescricional reduzido (art. 1º, Decreto nº 20.910/32, art. 2º, Decreto-Lei nº 4.597/42, Art. 12º-C, Lei nº 9.494/97).

            Pois bem, o revogado Código Civil de 1916, em seu art. 177, estabelecia regra geral referente aos prazos de prescrição nos seguintes termos:

            "Art. 177. As ações pessoais prescrevem ordinariamente em vinte anos, as reais em dez entre presentes e, entre ausentes, em quinze, contados da data em que poderiam ter sido propostas".

            A seguir, elencava o Código uma série de prazos específicos para determinadas ações que não nos interessam nesta sede.

            Ações pessoais, às quais a legislação civil codificada estabelecia prazo prescricional de 20 (vinte) anos, são aquelas que veiculam pedido condenatório, mandamental ou reintegratório [15], em que se exigem de um terceiro – o devedor – o cumprimento de uma obrigação de dar, fazer ou não fazer alguma coisa, seja o surgimento do direito oriundo de prévia relação processual travada entre ambos ou não.

            Como vimos, são exatamente os direitos a uma prestação, quando descumpridos, que fazem nascer a pretensão, exercitável mediante o ajuizamento de ação condenatória, mandamental ou executiva tendentes a ressarcir o prejuízo sofrido, ordenar o cumprimento da obrigação insatisfeita sob a ameaça de multa ou determinar a execução material da prestação devida, que por sua vez extingue-se pela prescrição.

            Assim, diante das razões justificantes já expostas, e visando a preservação do interesse público, o legislador optou por conferir em favor da Fazenda Pública prazo prescricional reduzido. É aí que se inserem as disposições do Decreto nº 20.910/32, do Decreto-Lei nº 4.597/42 e da Lei nº 9.494/97.

            O primeiro - Decreto nº 20.910/32 – dispôs que as dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, assim como qualquer direito ou ação a ser exercido contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, não importa a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados do ato ou fato do qual se originarem.

            O segundo diploma – Decreto-Lei nº 4.597/42 – estendeu o referido prazo reduzido de prescrição em favor das "autarquias, ou entidades e órgãos paraestatais, criados por lei e mantidos mediante impostos, taxas ou quaisquer contribuições exigidas em virtude de lei federal, estadual ou municipal, bem como todo e qualquer direito ou ação contra os mesmos".

            Já vimos que a orientação dominante caminha no sentido de reconhecer como detentoras das prerrogativas processuais somente as pessoas jurídicas de direito público, excluídos os entes administrativos descentralizados a que se tenha dado estrutura de direito privado, a despeito da redação demasiado genérica do art. 2º do Decreto-Lei nº 4.597/42, acima aludido, que, à primeira vista, poderia ensejar interpretação equivocada, por abranger hipóteses que não merecem o tratamento favorecido dispensado. No caso, lex dixit minus quan voluit. O inconveniente se resolve com através de uma interpretação restritiva.

            Por fim, o terceiro comando legal, inserto no art. 1º-C da Lei 9.494/97, com a redação dada pela Medida Provisória nº 2.180-35/2001, dispõe que "prescreverá em cinco anos o direito de obter indenização dos danos causados por agentes de pessoas jurídicas de direito público e de pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos".Com facilidade, nota-se que este último preceptivo refere-se à hipótese de responsabilidade objetiva, fundada na teoria do risco administrativo, previsto no art. 37, § 6º da Constituição Federal [16].

            Diante de tal quadro normativo, prescrição vintenária das ações pessoais em geral, prevista no art. 177 do Código Civil de 1916, e prescrição qüinqüenal das mesmas espécies de ações quando propostas contra a Fazenda Pública, emerge incontroverso que a finalidade explícita do legislador foi conferir tratamento favorecido às pessoas jurídicas de direito público quando litigantes em juízo.

            Pelas razões já expostas (princípio da igualdade material, princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, excessivo número de feitos em que os entes públicos figuram), conclui-se com segurança que nenhuma mácula de inconstitucionalidade se vislumbra nesse tratamento legal diferenciado, visto que proporcional e justificado.

            Constatada a situação dos prazos prescricionais no período anterior à entrada em vigor do Código Civil de 2002, vejamos a irracional reviravolta verificada após o advento desse diploma normativo.

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Sobre o autor
Bernardo Lima Vasconcelos Carneiro

juiz federal substituto em Belém (PA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARNEIRO, Bernardo Lima Vasconcelos. A prescrição trienal em favor da Fazenda Pública.: Para uma interpretação sistêmica e dialógica à luz do Código Civil de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1098, 4 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8594. Acesso em: 29 mar. 2024.

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